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Criada para explicar o desconforto que sentimos diante de robôs, o Vale da Estranheza explica também a falta de empatia da nova versão de "O Rei Leão".
Criada para explicar o desconforto que sentimos diante de robôs, o Vale da Estranheza explica também a falta de empatia da nova versão de “O Rei Leão”.| Foto: Divulgação

Quem foi ao cinema assistir à versão hiper-realista de O Rei Leão provavelmente se deparou com uma sensação estranha, um certo desconforto, um mal-estar de difícil identificação. Sim, as imagens da Savana são deslumbrantemente perfeitas, a juba de Mufasa parece ter sido desenhada fio a fio e dá até para sentir o toque frio da rocha sobre a qual Simba é apresentado aos seus súditos.

Ainda assim, em alguns momentos o filme fracassa em fazer aquilo que as animações da Disney sempre fizeram com esmero: emocionar. A animação dirigida por Jon Favreau nos pede, nos implora que acreditemos no que estamos vendo na tela, mas o estranhamento causado pela estética hiper-realista do novo O Rei Leão, quando não impede que nos emocionemos com a queda e redenção de Simba, atrapalha.

Apesar de ser difícil de definir, o estranhamento tem nome e sobrenome: uncanny valley, ou “vale da estranheza”, na tradução consagrada para o português. O termo foi originalmente cunhado pelo professor de robótica Masahiro Mori para explicar a reação emocional de uma pessoa a um objeto – um robô – semelhante ao ser humano. De acordo com a teoria, o ser humano reage positivamente só até certo grau de semelhança, a partir do qual as diferenças são inconscientemente ressaltadas, o que causa um incômodo – e até mesmo uma repulsa.

Várias pesquisas têm sido feitas para se comprovar a existência do fenômeno. Numa das mais recentes, pesquisadores da Universidade da Califórnia mediram a atividade cerebral de voluntários expostos a robôs semelhantes a seres humanos. O resultado foi o que se esperava obter a partir dos estudos teóricos: o ser humano reage mal a objetos artificialmente humanizados, sobretudo quando em movimento.

Apesar de empiricamente comprovado, não se sabe ao certo o que faz com que alguns espectadores se sintam afetados pelo vale da estranheza e outros não. Mas, para nosso deleite, há várias teorias. A maioria delas trata especificamente de robôs e não se aplicam exatamente aos filmes hiper-realistas.

Uma dessas teorias diz que nos percebemos presos ao vale da estranheza porque robôs despertam sensações incômodas de imortalidade. Isso mesmo. Vemos aquele ser todo perfeito e, de repente, nos damos conta de que vamos morrer, mas eles não. E isso, dizem os teóricos, provoca um afastamento instintivo, como se estivéssemos diante de algo visivelmente repugnante.

No caso de O Rei Leão, a teoria da “violação das normas humanas” é mais útil para explicar o estranhamento do espectador mais sensível. A teoria diz que, se um ente (no caso, os personagens do desenho) parece não-real o bastante, suas características humanas, isto é, os trejeitos e emoções próprios de uma fábula, são notados com mais ênfase pelo espectador, gerando, assim, mais empatia. Mas se o ente é real a ponto de você sentir até mesmo o odor do engraçado Pumbaa, o espectador tende a interpretá-lo como uma expressão da realidade, tirando dele qualquer traço de fantasia que poderia causar identificação e, por consequência, empatia no espectador.

É o que se vê, por exemplo, na cena da famosa música Hakuna Matata – uma das mais emblemáticas da animação original de 1994 e que, na versão hiper-realista de 2019, é plenamente esquecível.

No caso de O Rei Leão, o caráter hiper-realista do que um dia foi fábula e hoje talvez seja mais bem descrito como um “documentário ficcional” também entra em conflito com a sensação irracional de que somos especiais, isto é, de que nós, e apenas nós, os seres humanos, temos certas emoções e habilidades, como a fala. Novamente, talvez a estética documental do filme destrua a ponte emotiva que liga o espectador à trama porque uma coisa é ver um leão desenhado e animado falando e rindo e chorando; outra completamente diferente é ver um Panthera leo refreando seus instintos predatórios para formar uma amizade com um javali e um suricato.

Outra teoria é a de que a experiência hiper-realista de O Rei Leão provoca um desconforto cognitivo ao bagunçar a forma como categorizamos as coisas a fim de criarmos com elas uma relação de empatia. Ocorre uma “tensão perceptiva” quando vemos que o leão retratado na tela é mesmo um leão, e não um personagem assemelhado a um leão. Essa é a teoria mais aplicada aos estudos empíricos. No caso dos robôs, ela diz que, quanto mais próxima da realidade a face de um humanoide, maior a nossa dificuldade em aceitar o caráter robótico da criatura. Daí porque o C-3PO da saga Star Wars tem as feições e o jeito caricato de andar que tem.

O termo e as teorias que tentam explicar o vale da estranheza, contudo, não são imunes a críticas. O roboticista David Hanson, por exemplo, diz que a própria existência de uma teoria para explicar o vale da estranheza é motivo bastante para refutá-la. No caso dos robôs, o suposto estranhamento e repulsa, segundo Hanson, poderiam ser contrabalanceados com a inclusão de características menos realistas aos humanoides. É o caso, aqui já citado, de C-3PO.

No caso de O Rei Leão, seguindo o raciocínio de Hanson, o vale da estranheza seria facilmente transposto pelo acréscimo de expressões mais humanas aos personagens, sobretudo aos felinos, os protagonistas da história. Mas daí o filme fugiria à proposta semidocumental de Jon Favreau. Outra possibilidade, essa um tanto quanto deprimente, seria a de que o vale da estranheza é tão-somente um fenômeno geracional. Isto é, as gerações mais novas, acostumadas às representações hiper-realistas como O Rei Leão, Mogli e Dumbo, estariam menos sujeitas à repulsa e ao distanciamento sentidos pelos mais velhos.

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