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Rio de Janeiro – Membros da Força Nacional patrulham entorno do complexo de favelas da Maré durante o 1º turno das eleições 2016. (Fernando Frazão/Agência Brasil)
Rio de Janeiro – Membros da Força Nacional patrulham entorno do complexo de favelas da Maré durante o 1º turno das eleições 2016. (Fernando Frazão/Agência Brasil)| Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Das bizarrices que surgem no noticiário, o presidente mostrando cloroquina para a ema é das mais leves, pueril até. Lemos que traficantes anunciaram em redes sociais ter fundado uma espécie de califado gospel, com direito a uma grande estrela de David. Destruíram imagens de Santa Edwiges e depredaram o terreiro de um babalorixá porque Jesus é o novo dono do pedaço.

Até aqui, podemos contar com as condolências dos sabichões progressistas, porque atentar contra uma religião que cultua divindades de origem africana negra é o mesmo que ser racista, e racismo é um dentre a meia dúzia de coisas a serem combatidas. Esqueçamos o catolicismo, portanto.

Está fora de moda a sua instrumentalização: o integralismo se reduz a poucos excêntricos, a teologia da libertação não colou com o povão. Se alguém quiser procurar imagens de Jesus com fuzil, terá que ir à Venezuela. Aqui, os sabichões respeitáveis escolheram agora o candomblé para a instrumentalização. Por isso, em vez de ler o atentado à liberdade de consciência da maneira correta, reinterpretam-no como racismo estrutural. Cunharam até o termo “racismo religioso” para isso, para abandonar a simples da liberdade religiosa, universalista. O nome de racismo “estrutural” serve para não culpar pessoa nenhuma (o traficante sequer é branco) e jogar a culpa nas “estruturas”, ou seja, no capitalismo.

Mas a formação do “Complexo de Israel” vem acompanhada de algo mais grave e irreversível: o terror implantado pelos traficantes de Jesus custou a vida de cidadãos fluminenses. Desapareceram ao menos oito moradores. Segundo informa o RJ TV, os bandidos organizam blitz para revistar moradores (incluindo seus celulares), invadem casas, dão chá de sumiço a moradores, e ninguém tem coragem de denunciar os desaparecimentos à polícia. O cômputo de oito desaparecidos foi feito informalmente. Destes, um caso teve desfecho. O corpo de Luciano Castro Bonfim foi achado na Baía de Guanabara. A polícia encontrou mais “restos mortais” em tonéis, mas não mencionou que tenham sido identificados, nem se estavam em avançado estado de decomposição.

Gente comum, independente da opinião política, há de se solidarizar com as famílias de esquerdistas mortos na última ditadura cujos restos mortais nunca foram encontrados. Em 2020, traficantes invadem casas, aterrorizam moradores, fazem-nos sumir, e isso não é visto como uma questão de Estado. Os sabichões montam palanques em cima dos desaparecidos da década de 70, mas não falam do tráfico e só difamam a polícia.

Quem é Luciano Castro Bonfim? Ele era de classe média ou alta? Não, era pobre. Ele era militante do PSOL, como Marielle? Não. A morte dele pode ao menos servir à causa antipolícia, como a de Amarildo? Não. Então, que se lasque! Vida de pobre não-instrumentalizável não vale nada, nada, nada. Dos outros desaparecidos, não sabemos sequer o nome. Não têm nome, não têm cara, não vão virar filtro de Facebook nem nome de rua em Paris.

Mas calma, que o STF cuida de nós!

Os sabichões já decretaram que os males do mundo advêm do capitalismo, e que a polícia é um braço racista genocida. Na candidatura de Brizola ao governo do Rio, em 1982, argumentava-se, com algum traço de plausibilidade, que a polícia era o braço da ditadura. Por isso, quando eleito, protegeria o favelado contra a polícia, proibindo-a de subir o morro.

Coisa que nunca vi ninguém explicar: se a polícia era um braço da ditadura, por que não retirá-la dos bairros de classe média, que sempre foi a mais politicamente ativa? E outra, mais grave: se segurança pública é um serviço custeado por impostos, por que a privação desse serviço não implicou uma redução de impostos para os moradores do morro? Parou-se de prover um serviço custeado por impostos sem nenhuma reparação. Isso, sim, é roubar o pobre.

Para a surpresa de ninguém, a bandidagem cresceu nos morros cariocas, e as milícias, segurança privada, se formaram para substituir a pública. Depois, ganharam vida própria e passaram a extorquir moradores. Finda a ditadura, a polícia, composta por gente de todas as cores, foi identificada como “estruturalmente” racista, uma espécie de SS que vai para a favela matar negros (supõe-se que em toda favela só haja negros, como se as favelas não tivessem sertanejos).

Tendo experiência tão auspiciosa por detrás, o valoroso (nesta coluna não se fala mal do  STF, vai que…) dizia eu que o valoroso, sagaz, brilhante e virtuoso ministro Fachin decidiu que a polícia do Rio de Janeiro não pode subir o morro durante a pandemia do coronavírus.

Como será que ele acha que é a vida sob o tráfico? É verdade que a polícia fluminense está longe de ser a melhor do país, mas eu me pergunto de onde vem a convicção de que tirá-la de campo irá ajudar em alguma coisa. Se um hospital tem médicos carniceiros, é necessário resolver o problema, e isso não se faz fechando todos os hospitais. Por que com segurança pública é diferente? Como trocar a polícia por tráfico e milícia pode ser bom?

Talvez seja satisfatório para os sabichões. Afinal, vida de pobre não importa, mesmo. Se o traficante tomar conta do pedaço sem violar os mandamentos dos progressistas, tudo bem. Pode matar Luciano Castro Bonfim, sumir com sete anônimos, botar corpos em tonéis, invadir lares, revistar os celulares dos moradores e perseguir católicos, mas praticar “racismo religioso”, não!

Cidadania VIP

O STF cuida tanto, mas tanto dos direitos dos cidadãos, que garante o direito a não ser ofendido, nem a ter mentiras inventadas contra si. Outros países dão o direito a processar quem espalhou calúnias, e nós temos até mecanismos para punir calúnia e difamação. Mas todo mundo sabe que a justiça é lenta, no final tudo prescreve, e, se não prescrever e ainda resultar em algum preso, cumpre-se só um terço da pena.

Isso se um juiz virtuoso não resolver sair soltando todo mundo por causa de pandemia, de superlotação, de cometa ou sabe-se lá do quê. Veja-se Marielle: caso se seja assassinado, é bom ter amigos na imprensa e na política para cobrar solução. Ainda assim, é mais fácil ganhar rua em Paris do que solução de crime. E quando se é Luciano Castro Bonfim? Nem rua em Paris tem.

Se homicídio não é punido, que dirá calúnia e difamação. Por isso os ínclitos ministros do maravilhoso STF resolveram acelerar logo as coisas, e punir preventivamente seus possíveis caluniadores e difamadores. Suspendam-se logo as contas, que aí os crimes não são cometidos, e então não se tem nem que investigar nada, muito menos mandar para a justiça comum.

Brilhante solução. Pena que seja para poucos. No Brasil, existem os Luciano Castro Bonfim mais sete anônimos, que são pobres, e existem os ministros do STF. Entre eles, há um espectro de cidadania. Num polo, está o cidadão que não tem sequer direito à vida; no outro, está o ministro do STF, que tem direito a não ser ofendido nas redes sociais. No meio do caminho, estamos nós e Marielle.

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