"Acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la"
(Tocqueville)

3 razões pelas quais a decisão do STF sobre as urnas eletrônicas foi uma das piores da história

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Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF
Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF

Em artigo publicado na Folha de São Paulo em 23 de fevereiro deste ano, o ministro Luiz Roberto Barroso do Supremo Tribunal Federal defendeu papel “iluminista” do STF e afirmou que, às vezes, é dever daquele tribunal “empurrar a história”.

Pois bem. A julgar pela decisão do Supremo no caso das urnas eletrônicas – em maioria formada pelo mencionado ministro – é possível concluir que a Corte está comprometida em empurrar a história… para trás. De fato, a decisão do Supremo empurrou a história eleitoral brasileira para a “futurista” década de 90 do século passado, quando foram criadas as urnas eletrônicas de primeira geração que o Brasil ainda usa.

De lá para cá foram criadas novas tecnologias que mantêm os benefícios da primeira geração de urnas eletrônicas (velocidade na votação, sigilo do voto, celeridade da apuração etc.), mas superam suas limitações, por exemplo, viabilizando a auditoria do resultado apurado das eleições.

Todavia, a Corte parece decidida a manter o Brasil estagnado na tecnologia de quase três décadas atrás, num papel nada iluminista…

Como funcionaria o “voto impresso” (na verdade, comprovante impresso de voto eletrônico)

Nova urna eletronica

Em 2015 o Congresso Nacional aprovou o Projeto de Lei 75 daquele mesmo ano, o qual foi convertido na Lei 13.165/15.

A lei passou a exigir a impressão de comprovante do voto efetuado na urna eletrônica.

O dispositivo que criou a obrigação do voto impresso chegou a ser vetado por Dilma Rousseff, apesar das inúmeras denúncias de fragilidade das urnas eletrônicas. Inclusive, empresa que atuou em procedimentos da apuração das eleições de 2014, a venezuelana Smartimatic, reconheceu recentemente problemas no sistema de voto exclusivamente eletrônico e denunciou manipulação em votação ocorrida na Venezuela.

De todo modo, o veto da ex-presidente foi derrubado pelo Congresso Nacional.

Basicamente, segundo a sistemática que havia sido instituída pela nova lei, o eleitor continuaria votando de igual maneira, isto é, de modo eletrônico. Porém, após o registro do voto na urna eletrônicao equipamento imprimiria um comprovante do voto. O eleitor verificaria a correspondência entre seu voto e o contido no comprovante. Estando tudo positivo, confirmaria o voto. O comprovante seria automaticamente depositado em urna física acoplada na cabine de votação, sem acesso do eleitor ao documento impresso.

A apuração seguiria sendo eletrônica, a fim de manter sua agilidade. Porém, em caso de pedido de recontagem ou suspeita de fraude, seria possível auditar a apuração checando o resultado consolidado com os comprovantes físicos.

Vê-se diante dessa sistemática que sequer era correto falar em voto impresso. Na verdade, o voto permanecia totalmente eletrônico. O que passava a haver era um comprovante impresso do voto eletrônico permitindo a auditoria do resultado da votação. São as chamadas urnas eletrônicas de segunda geração.

O detratores da medida passaram a utilizar o chavão “voto impresso” para lançar uma campanha de desinformação chamando a novidade de “retrocesso”, tentando passar para a população a sensação de que estaríamos voltando ao sistema pré-96, quando o eleitor precisava passar alguns minutos preenchendo uma cédula de voto que após era depositada em uma urna.

Na verdade, as urnas de geração ulterior (segunda e terceira) aliam os benefícios do voto eletrônico, com a segurança e transparência do papel impresso.

A nova medida, todavia, enfrentou resistências no TSE, que inclusive se manifestou contra a instituição do comprovante impresso de voto perante o STF. Houve ajuizamento de ação contra a nova legislação perante a Suprema Corte.

Conforme relatamos em post neste blog, membros do Ministério Público e do Poder Judiciário lançaram Nota Técnica em defesa do comprovante impresso do voto.

Não obstante, no último dia 6 de junho, o STF deferiu liminar para barrar o avanço das urnas eletrônicas.

A seguir, apontamos três razões pelas quais essa foi uma das piores decisões da história. Basicamente, a decisão é: primeiro, equivocada; segundo, autoritária; e, em terceiro lugar, perigosa.

1) Decisão do STF sobre urnas eletrônicas foi equivocada

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Na decisão o STF afirmou que não haveria motivos razoáveis e proporcionais para instituição do comprovante impresso nas urnas eletrônicas, de modo que os custos para adoção dessa sistemática não se justificariam.

É um equívoco.

Existem motivos mais do que proporcionais para adoção do novo modelo. É o que vamos mostrar agora.

Voto exclusivamente eletrônico impede fiscalização pelo cidadão comum

Inclusividade

Conforme salientamos em post anterior sobre a democracia, um dos elementos essenciais do sistema democrático é a possibilidade de participação efetiva pelo cidadão comum.

Para poder participar, o cidadão tem de possuir entendimento esclarecido sobre uma política. Para isso, ela tem de ser acessível a ele, razão pela qual entre várias formas possíveis de atuação, deve-se adotar aquela mais simples e que facilita, assim, a compreensão e participação popular.

Contudo, as urnas eletrônicas possuem um intrincado e complexo funcionamento que requer conhecimento técnico-eletrônico especializado para sua compreensão.

Com isso, fica prejudicada a tarefa de acompanhamento e fiscalização pelos atores sociais desprovidos desse tipo de conhecimento técnico específico, o que engloba a esmagadora maioria da população.

O eleitor não tem como conferir sequer o próprio voto. O cidadão comum, por não possuir, de modo geral, conhecimento técnico-eletrônico, não tem como exercer a sua cidadania na fiscalização do sistema eleitoral.

Resta, assim, violado o princípio do Estado Democrático de Direito.

O sistema de voto exclusivamente eletrônico é frágil e não permite auditoria da votação

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Conforme apontamos no post já citado sobre a democracia, uma das instituições essenciais do sistema democrático são as eleições livres, justas e periódicas.

Eleições justas, segundo Robert Dahl, nada mais são do que eleições em que cada voto é contado igualmente: one man, one vote. Ou seja, ela exige que o resultado apurado corresponda aos votos efetivamente depositados.

Logo, é necessário um sistema seguro e transparente de votação.

A sistemática atual de voto exclusivamente eletrônico não atende a essas exigências.

O modelo possui inúmeras fragilidades, apontadas por expertsAuditorias já constataram a insegurança das urnas e de seu sistema de apuração, bem como de sua capacidade em assegurar o sigilo do voto.

Quanto a este ponto existe uma guerra de narrativas. Os defensores da sistemática criada no século passado afirmam que o sistema é seguro e descrevem suas virtudes. Os que propõem o avanço para modelos de urnas de gerações mais modernas descrevem as falhas do sistema atual.

Em relação a isso temos duas conclusões:

1) a defesa da segurança das urnas atuais depende de questões técnicas intrincadas para sua compreensão, retornando à crítica antes exposta de que isso é inacessível ao eleitor comum. Experimente ler qualquer texto ou post que explique efetivamente como funciona o sistema atual e por que ele seria seguro. Você perceberá que a compreensão da explicação demanda conhecimentos inacessíveis à maioria das pessoas. Reputamos isso insuficiente para legitimar o modelo atual. De fato, não basta um sistema em que uma minúscula parcela de experts pode entender que sua confiabilidade. O sistema eleitoral tem de ser “mulher de César”, como diz o ditado popular. Ou seja, aparentar idoneidade mesmo para as pessoas comuns.

2) o simples fato de peritos sérios e gabaritados arguírem que a geração de urnas usadas no Brasil tem níveis de confiabilidade, segurança e transparência inferiores a uma tecnologia passível de ser adotada é o suficiente para deslegitimar o modelo atual. Para haver interesse na reforma do modelo não é necessário demonstrar que ele seja extremamente inseguro. O que, de toda forma, alguns afirmam (o Juiz Eleitoral aposentado Ilton Dellandréa diz que fraudar urnas é mais fácil do que infectar um PC com vírus). Não é necessário tamanho grau de insegurança. Basta que haja um risco real e a uma tecnologia disponível que reduza esse risco. Esses dois elementos estão presentes.

Quanto à vulnerabilidade das urnas o número de matérias e trabalhos é interminável. Salientamos, apenas a título ilustrativo, as constatações dos seguintes pesquisadores:

  • Diego Aranha: professor da UNICAMP, demonstrou que as urnas são suscetíveis a fraudes no voto e também à quebra do sigilo;
  • Pedro Rezende:  professor de segurança de dados da Universidade de Brasília (UnB), afirma que as urnas são vulneráveis;
  •  Amilcar Brunazo Filho: engenheiro, coordena o Fórum do Voto eletrônico, autoridade em segurança de dados, conclui que nosso modelo de urnas é ultrapassado e inseguro.

Ademais, o resultado da apuração pelo sistema atual é inauditável, violando a transparência e publicidade que se exige em qualquer ato público como uma eleição.

Esse é um ponto importante: o Ministro Alexandre de Moraes em seu voto arguiu que nunca foram provadas fraudes generalizadas. Ora, mas como isso poderia ser provado num sistema impassível de ser auditado? Na verdade, nunca houve prova de que foram praticadas fraudes generalizadas; nem de que não foram. Esse o ponto. Ao exigir essa prova para que fosse razoável e proporcional a mudança, o ministro obriga os defensores da impressão de comprovante do voto ao que no direito é chamado de prova diabólica, uma prova impossível de ser feita.

Inúmeros países já rejeitaram o sistema de voto exclusivamente eletrônico

Sessão do Poder Judiciário na Alemanha
Sessão do Poder Judiciário na Alemanha

Alguns países que adotaram o sistema de urnas eletrônicas, após o aparecimento das versões mais avançadas dessa tecnologia, passaram a adotar o sistema de impressão do comprovante do voto, sistema em inglês chamado de paper trail ou verifiable paper record.

Em alguns países o sistema brasileiro foi, inclusive, reputado inconstitucional.

O Tribunal Constitucional Alemão, por exemplo, já rejeitou essa sistemática, alegando que “um ‘evento público’ como uma eleição implica que qualquer cidadão possa dispor de meios para averiguar a contagem de votos, bem como a regularidade do decorrer do pleito, sem possuir, para isso, conhecimentos especiais.”

Também na Índia, a Suprema Corte determinou à comissão eleitoral que se adeque e adote sistema com impressão do comprovante do voto.

Nos Estados Unidos, desde 2010 há um processo em curso de migração para o sistema de impressão do comprovante do voto. Lá quem decide isso é a legislação dos estados-membros, já tendo a imensa maioria (mais de 40 estados) adotado o sistema de impressão do comprovante de voto.

Ademais, consoante notícia veiculada na rede mundial de computadores, “a credibilidade das urnas eletrônicas já foi descartada em mais de cinquenta países”.

2) Decisão do STF é autoritária

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 O que se espera de uma Suprema Corte não é que ela governe um país. Enquanto órgão composto por burocratas não eleitos, sem voto, é inaceitável que um Tribunal de Cúpula se arvore no governo do país e passe a buscar substituir os representantes eleitos, tomando decisões por motivos de conveniência e oportunidade política, ao invés de argumentos sobre sua constitucionalidade.

De fato, o papel de uma Suprema Corte é manter as decisões de governo dentro dos limites normativos da Constituição, anulando-as quando os extrapolam. Todavia, dentro desses limites a população, diretamente ou por seus representantes eleitos, é a senhora da decisão.

Utiliza-se em teoria jurídica constantemente a analogia da moldura de um quadro. A Constituição serve com uma moldura dentro da qual a população pinta e colore o desenho de acordo com o que entende mais conveniente e oportuno. Apenas quando as pinceladas tingem fora da moldura cabe ao STF entrar em cena e anular o ponto que transbordou os limites da constitucionalidade.

No caso, a adoção de comprovante impresso de voto não contraria qualquer norma constitucional. O comprovante é inacessível ao eleitor, logo não há risco ao sigilo. Ao menos não maior do que em outros modelos, visto que o sigilo não é invulnerável em qualquer sistema. Aliás, na reportagem citada acima, o professor Diego Aranha da UNICAMP demonstra que na sistemática atual é possível violar o sigilo de voto.

Ademais, a própria adoção em democracias muito mais desenvolvidos e consolidadas do que o Brasil lançam a arguição de inconstitucionalidade e retrocesso no mais absoluto descrédito.

A escolha do sistema de votação mediante comprovante impresso do voto é uma decisão absolutamente legítima por parte do legislador. E o STF se imiscuir nesse tocante, condenando a população brasileira a conviver com uma tecnologia ultrapassada e insegura, é uma imposição da opinião dos ministros sobre o povo e sobre o Parlamento.

Em ciência política é comum se falar de constituições outorgadas quando elas são impostas pelo detentor do poder político, sem consulta à população. Ele se auto-atribui o poder constitucional. Fala-se, por outro lado, em constituições democráticas quando elas são deliberadas por assembleias legitimamente constituídas pelo povo e permanecem durante sua elaboração abertas à participação popular.

Pois bem. É possível fazer um paralelo: quando o STF se auto-atribui um poder que a Constituição não lhe concedeu, decidindo sobre matérias da alçada de outros Poderes, esse é um poder outorgado. Ives Gandra da Silva Martins fala em “auto-outorga” pelo STF. Ele se auto-atribui a competência para fazer escolhas políticas dentro do quadro constitucional, ao invés de se limitar a impedir que esse quadro seja extravasado.

A decisão sobre as urnas foi um desses casos de decisão outorgada.

3) Decisão do STF é perigosa

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Todos esses elementos que descrevemos acabam por abalar a confiança nas eleições, minando a própria legitimidade dos eleitos e do resultado eleitoral perante a parcela da sociedade (majoritária, inclusive) que não confia no sistema atual.

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