"Acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la"
(Tocqueville)

O Brasil e a Capital de Israel – Aspectos Jurídicos e Possibilidades de Ação

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Por Marcello Paranhos de Oliveira Miller, advogado, ex-diplomata, ex-promotor de Justiça e ex-procurador da República. É mestre em Direito Internacional pela UERJ.

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Tudo sobre a Cidade de Jerusalém – encruzilhada de civilizações e cidade sagrada para as três grandes religiões – é sensível e intrincado. Os judeus nunca desistiram dela como sua sede espiritual e capital política. Os muçulmanos sempre a tiveram como um de seus três locais sacros. Os cristãos pouco a tiveram sob seu domínio, mas muito lutaram para a ela ter livre acesso, como símbolo dos eventos centrais de sua fé.

Nenhuma das formulações jurídicas e propostas diplomáticas até hoje apresentadas para o status de Jerusalém conseguiu atrair consenso das partes diretamente envolvidas ou do conjunto da comunidade internacional. Com a indicação do presidente eleito Jair Bolsonaro de que pretende transferir a Embaixada do Brasil de Telavive para Jerusalém, uma reflexão mais aprofundada sobre a situação jurídica da Cidade Sagrada passa a interessar a todos os brasileiros.

Este texto recapitula e examina, inicialmente, os marcos normativos essenciais à compreensão do tema. Formula, a seguir, proposições jurídicas a partir desses marcos. Discute, por fim, mediante flexão dessas proposições, possibilidades diplomáticas para o Brasil.

1. Marcos normativos

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Com o fim da Primeira Guerra Mundial e o colapso do Império Otomano, a Palestina foi posta pela Liga das Nações sob mandato britânico. O Reino Unido passou a administrar a região como mandatário da Liga, com a finalidade de desenvolvê-la em benefício de seus habitantes. A Turquia, sucessora do Império Otomano, reconheceu o mandato britânico em 1923.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, a Assembleia-Geral da recém-criada Organização das Nações Unidas formulou, pela Resolução 181(1947), um Plano de Partilha da Palestina, que previa status próprio para Jerusalém. Pelo plano, a cidade seria um corpus separatum, isto é, um ente distinto dos Estados árabe e judeu que se formariam na região. Ela ficaria sob regime internacional próprio e seria administrada pela própria ONU, por meio de seu já extinto Conselho de Tutela.

A Resolução 181 era bastante minuciosa quantos às diretrizes gerais do regime especial que previa para Jerusalém. A cidade se organizaria com separação de poderes, governador nomeado pelo Conselho de Tutela da ONU, conselho legislativo eleito pelos cidadãos e judiciário independente. Entre outros aspectos que reforçavam a característica de corpus separatum de Jerusalém, o governador não poderia ser nacional nem do Estado árabe nem do judeu; os Estados árabe e judeu credenciariam representantes junto ao governador; e os residentes da cidade teriam cidadania jerusalenense para fins internacionais se não optassem por preservar a nacionalidade que porventura já tivessem.

A Resolução 181 determinava que a organização política de Jerusalém seria pormenorizada em um estatuto, a ser adotado pelo Conselho de Tutela. Previa, ainda, que esse regime especial duraria no máximo dez anos, quando se realizaria consulta popular aos residentes da Cidade sobre possíveis modificações em seu regime.

As resoluções da Assembleia-Geral da ONU não são, contudo, vinculantes, e o escopo da Resolução 181 era o de recomendar ao Reino Unido, como potência mandatária, que adotasse e implementasse o plano nela previsto. Isso não ocorreu: os Estados árabes que integravam a ONU votaram contra a Resolução1, e no dia seguinte à sua aprovação eclodiu guerra civil entre as populações árabe e judia na Palestina. O Reino Unido, incapaz de conter o conflito, assistiu à erosão de sua autoridade sobre o território palestino e iniciou a retirada progressiva de seu pessoal civil e militar.

Em maio de 1948, Israel declarou independência, sem aceitar em todos os seus termos a Resolução 181 nem mencionar Jerusalém na declaração. No dia seguinte ao da independência de Israel, o Reino Unido deu por encerrado seu mandato e evacuou o restante seu pessoal civil e militar, sem transferir de forma ordenada a administração da Palestina para as Nações Unidas. No conflito internacional imediatamente subsequente à declaração de independência de Israel, o Estado judeu ocupou a parte ocidental de Jerusalém, e a Jordânia, a parte oriental. Em 1949, encerrado o conflito, Israel assinou acordo de armistício com a Jordânia, em que ficou reconhecido por cada Estado o controle de fato pelo outro de um segmento da cidade.

A Resolução 194(1948) da Assembleia Geral das Nações Unidas, que estabeleceu a Comissão de Conciliação das Nações Unidas para a Palestina, contém disposições de substância sobre o status de Jerusalém. Essas disposições reafirmam, em essência, o regime previsto no Plano de Partilha, assim dispondo: ‘A Assembleia Geral resolve que, em vista de sua associação com as três grandes religiões, a área de Jerusalém […] deveria receber tratamento especial e distinto do restante da Palestina e deveria ser posta sob efetivo controle das Nações Unidas.’

Ocorre que a Conferência de Lausanne, em 1949, convocada pela Comissão de Conciliação, não alcançou consenso entre Israel e os Estados árabes sobre Jerusalém. A maioria das delegações árabes aceitou a concepção de Jerusalém como corpus separatum sob administração da ONU, mas Israel a rejeitou, preferindo a divisão de Jerusalém e admitindo controle internacional apenas para os locais sagrados.

Israel ocupou Jerusalém Oriental em 1967, durante a Guerra dos Seis Dias, e, na sequência, declarou a incidência de sua administração, sua legislação e sua jurisdição àquela parte da cidade. Em 1980, Israel aprovou lei segunda a qual ‘Jerusalém, completa e unida, é a capital de Israel’, que corporifica a anexação da parte oriental.

O Conselho de Segurança da ONU adotou sete resoluções que tangenciam a questão de Jerusalém: Resoluções 242(1967), 252(1968), 267(1969), 271(1969), 298(1971), 465(1980), 476(1980) e 478(1980). A Resolução 242(1967) não faz referência à cidade, mas estabelece como princípio necessário à observância da Carta da ONU a retirada das forças armadas israelenses de territórios ocupados na Guerra dos Seis Dias. As Resoluções 252(1968) e 267(1969) declaram inválidas todas as medidas administrativas e legislativas de Israel tendentes a alterar o status jurídico de Jerusalém e conclamam o Estado Judeu a revogá-las e desistir de outras que tendam a alterar o status da cidade, sem, contudo, definir, ainda que por remissão, esse status. A Resolução 298(1971) apresenta sutil mas relevante inflexão, na medida em que, repetindo em parte a linguagem das resoluções anteriores, passa a se referir à ‘seção ocupada de Jerusalém’ como objeto das medidas inválidas. A Resolução 476(1980), por sua vez, embora não faça referência expressa à ‘seção ocupada’, reafirma a necessidade de encerrar a ocupação, por Israel, desde 1967, de territórios árabes, inclusive Jerusalém, o que sugere a vinculação do texto a Jerusalém Oriental. Por fim, a Resolução 478/(1980) declara, de forma expressa, a nulidade da ‘Lei de Jerusalém’, aprovada pelo Estado de Israel, na premissa de que essa lei materializa anexação de território conquistado por força militar.

A questão do caráter vinculante das resoluções do Conselho de Segurança da ONU que não tenham sido aprovadas com base no Capítulo VII da Carta das Nações Unidas – como é o caso das resoluções que tratam de Jerusalém – foi objeto de atenção da Corte Internacional de Justiça em opinião consultiva no caso Namíbia/África do Sul, de 1971. A Corte entendeu, na ocasião, que nada na Carta da ONU limita o efeito vinculante das resoluções do Conselho de Segurança às que tenham sido baseadas no Capítulo VII, devendo a linguagem da resolução constituir o elemento central de análise.2 É essa a posição que prevalece na doutrina internacionalista, embora também seja consistente a posição segundo a qual os poderes de organizações internacionais devam ser interpretados restritivamente, por ser a soberania estatal o princípio fundante da ordem internacional.

Um último ângulo relevante sobre a questão jurídica de Jerusalém diz respeito aos Acordos de Oslo, celebrados entre 1993 e 1995 entre Israel e a Organização para a Libertação da Palestina (OLP), compostos por dois instrumentos: a Declaração de Princípios sobre Ajustes para Autogoverno Provisório e o Acordo Provisório sobre a Faixa de Gaza e a Área de Jericó. Na Declaração de Princípios, Jerusalém é qualificada como uma das “questões de status permanente” (permanent status issues), que devem ser resolvidas por meio de negociações bilaterais. As questões de status permanente são distintas, na linguagem dos Acordos de Oslo, do chamado período provisório: as questões relativas a este período, inclusive a criação da Autoridade Palestina, são disciplinadas no próprio texto.

Os Acordos de Oslo não são tratados, pois a OLP não se qualifica como Estado. Mas a doutrina especializada conclui serem vinculantes, pois movimentos de libertação nacional têm capacidade para concluir acordos com Estados a respeito da situação jurídica do território sobre o qual reivindicam soberania, havendo múltiplos precedentes coloniais.

2. Proposições jurídicas

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Algumas proposições jurídicas podem ser formuladas com base nos marcos normativos até aqui examinados:

(1) O Plano de Partilha veiculado na Resolução 181(1947) da Assembleia-Geral da ONU não era vinculante e nunca foi adotado pelas partes diretamente envolvidas, em especial quanto a Jerusalém. O Reino Unido, ao qual se dirigia a recomendação da resolução, absteve-se em sua votação e nada fez para implementá-la. A declaração de independência de Israel refere a resolução, mas lhe dá interpretação enviesada: enquanto a resolução prevê um plano de partilha da Palestina, com igual ênfase para a existência de dois Estados, um árabe e outro judeu, a declaração de independência diz que ela ‘reivindica o estabelecimento de um Estado judeu na terra de Israel.’

(2) Não há instrumentos internacionais vinculantes que declarem ilícita a ocupação, por Israel, de Jerusalém Ocidental em 1948. O único instrumento que se opõe a essa ocupação é a Resolução 194(1948) da Assembleia-Geral, na medida em que, concomitantemente à Guerra da Independência, retoma o conceito de corpus separatum do Plano de Partilha. Mas, além de se tratar de resolução da Assembleia-Geral, a que a doutrina em regra não reconhece eficácia vinculante, a própria redação do texto, no tratamento da questão, não usa linguagem de determinação.

(3) Os instrumentos internacionais sobre a questão de Jerusalém que tendem a ser considerados vinculantes à luz do Direito Internacional são as Resoluções do Conselho de Segurança da ONU. A interpretação sistemática desses instrumentos, considerados em seu conjunto, conduz à conclusão de que eles declaram ilícita a ocupação e a anexação de Jerusalém Oriental, sem alcançar a situação de Jerusalém Ocidental. Isso fica claro não só pela inflexão de linguagem nas Resoluções 298 (1971) e 476(1980), mas também pelo aspecto temporal: o Conselho de Segurança só passa a pronunciar-se sobre a questão depois da Guerra dos Seis Dias, tendo permanecido inerte entre 1948 e 1967.

(4) Os Acordos de Oslo, que contam com eficácia vinculante para suas partes, tratam Jerusalém como questão de status permanente, isto é, cuja configuração definitiva está em aberto e deve ser resolvida por negociação bilateral.

O fato de Jerusalém ser considerada, nos Acordos de Oslo, questão de status permanente não significa que Israel e a OLP reconheceram a licitude do status quo de Jerusalém. Os Acordos de Oslo partem de premissa lógica diversa da que norteou as resoluções do Conselho de Segurança: em vez de se pautarem por licitude ou ilicitude, trataram a questão como aberta, de ordem político-diplomática. Não é necessário, com efeito, para que duas partes discutam questão de interesse comum, que ambas tenham a mesma posição sobre seu status jurídico: basta que tenham o status quo por insatisfatório. Cumpre reconhecer, contudo, que os Acordos de Oslo, na medida em que criam uma arquitetura de negociação sobre o status permanente de Jerusalém, ao menos atestam a provisoriedade – ainda que não a ilicitude – do status quo.

Tampouco há uma receita para o desate final da questão. Israel e a OLP podem inovar, desde que tenham presente a relevância de Jerusalém para os cristãos, que têm interesse em que o status permanente da cidade contemple a preservação de seu patrimônio religioso cristão e o amplo acesso dos cristãos a ele. Assim, se convier às duas partes a união de Jerusalém como cidade binacional, por exemplo, não haverá impedimento a tal status permanente, desde que haja amplo acesso para os cristãos a seus locais sagrados.

Para a tomada de posição diplomática por terceiros Estados, os pontos de partida jurídicos no feitio atual da questão são os seguintes:

(a) A tese de que o Direito Internacional exige que Jerusalém seja um corpus separatum sob administração da ONU – embora favorecida por muitos países e corporificada na modelagem da maior parte do corpo consular na cidade, cujo credenciamento é feito junto à ONU – não é compatível com a série de resoluções do Conselho de Segurança sobre o tema;

(b) O Direito Internacional, corporificado nas resoluções do Conselho de Segurança, criou um status jurídico provisório de Jerusalém, que não pode ser alterado unilateralmente; nesse status provisório se admite a ocupação de Jerusalém Ocidental por Israel, mas não a de Jerusalém Oriental.

(c) O Direito Internacional não afasta a possibilidade de solução permanente diversa do corpus separatum ou da divisão da cidade, desde que se assegure aos fieis das três grandes religiões amplo acesso aos locais sagrados.

A anexação de Jerusalém Ocidental por Israel é, com efeito, pouco questionável. O Reino Unido, quando recebeu o mandato para a Palestina, passou a exercer sobre a região os poderes emanados do atributo da soberania: o Plano de Partilha era, inclusive, dirigido ao Reino Unido. Ao não agir em face da eclosão da guerra civil de 1947, Londres essencialmente deixou o território à sorte de seus habitantes: não há como alegar que Jerusalém Ocidental tenha sido ocupada em detrimento de Estado algum. De resto, a divisão de Jerusalém, embora refuja ao Plano de Partilha, não deixa de guardar alguma simetria com a solução de dois Estados por ele preconizada.

Já a anexação de Jerusalém Oriental por Israel é praticamente inconciliável com o Direito Internacional. Israel não pode, por coerência, alegar terra nullius (território de ninguém), pois a Jordânia a anexara em 1948, como Israel fez com a parte ocidental. E a tese da anexação por legítima defesa é juridicamente insustentável: outros países gostariam de mover suas divisas para ampliar sua segurança externa, inclusive em face de vizinhos agressivos, mas a nenhum é lícito fazê-lo.

3. Possibilidades diplomáticas

Foto: Tereze Neuberger - Jornal de Brasília
Foto: Tereze Neuberger – Jornal de Brasília

Parte-se da premissa de que a política externa brasileira hoje – que, embora seja política de Estado, pode legitimamente experimentar flexões segundo as diretrizes do governo do dia – pretende sinalizar aproximação com Israel.

Um dos cânones da política externa brasileira sempre foi a adesão ao Direito Internacional. Isso não significa que o Brasil se inclina a adotar posições principistas, mas que avalia suas opções diplomáticas à luz dos condicionamentos e dos limites impostos pelas normas internacionais.

Aventou-se a transferência da Embaixada do Brasil em Israel de Telavive para Jerusalém. Para além do aspecto material, essa decisão envolve densos componentes jurídicos e políticos: o Brasil reconhecerá, em alguma medida, Jerusalém como capital de Israel.

Se passar a entender que a capital de Israel é Jerusalém inteira, o Brasil passará a inobservar as resoluções do Conselho de Segurança da ONU sobre a questão. Isso não interessa à política externa do País.

O Brasil poderia usar de criatividade jurídica no ato de reconhecimento para evitar ofensa direta ao Direito Internacional. A opção mais óbvia seria qualificar como de facto e, pois, revogável o reconhecimento, que poderia fazer referência tanto à densidade factual quanto à provisoriedade jurídica do status quo. Outra opção seria reconhecer Jerusalém inteira como capital conjunta de Israel e do Estado da Palestina e elevar o status da representação diplomática brasileira na Palestina à categoria de embaixada, tornando cumulativa a Embaixada do Brasil em Jerusalém; questões de ordem prática sugeririam a manutenção do escritório de representação em Ramala, como dependência da embaixada.

De um modo ou de outro, qualquer opção que envolvesse o reconhecimento de Jerusalém inteira como capital de Israel representaria, para o Brasil, aguda inflexão diplomática em mais de um nível. Haveria não só profunda mudança na política externa brasileira para o Oriente Médio, mas principalmente no próprio modo de ser da diplomacia brasileira a propósito de sua cânones: a defesa do multilateralismo.

A opção menos heterodoxa, na perspectiva de uma diretriz de política externa que imponha a transferência da embaixada, consistiria em reconhecer apenas Jerusalém Ocidental como capital de Israel. Essa opção é defensável inclusive por interpretação das resoluções do Conselho de Segurança, das quais se pode depreender que somente a ocupação e a anexação de Jerusalém Oriental foram ilícitas.

O reconhecimento de Jerusalém Ocidental poderia incluir múltiplas mitigações. Jerusalém Oriental poderia, no mesmo ato, ser reconhecida como futura capital do Estado palestino, solução adotada em 2017 pela Rússia, que, contudo, manteve sua embaixada em Telavive, beneficiando-se de propriedade imóvel que mantinha em Jerusalém.3 O reconhecimento poderia, ademais, ser qualificado como de facto e contingente, podendo acomodar desdobramentos de negociações entre as partes.

Em vez de transferir sua embaixada para Jerusalém, o Brasil pode considerar possibilidades intermediárias, como a abertura de repartição consular, com a inovação – e o gesto em favor de Israel – de obter o credenciamento junto ao Estado de Israel, e não à ONU4, ou a transferência de setores da embaixada para Jerusalém, mantido em Televive, porém não o gabinete do embaixador. Poderia, ainda, emular a solução russa, adquirindo propriedade imóvel em Jerusalém e afetando-a a uso oficial, mas não diplomático. Todas essas possibilidades teriam vantagem de criar presença oficial do Brasil em Jerusalém, que haveria de ser apreciada por Israel, sem a ruptura resultante da transferência da embaixada.

Reconhecer Jerusalém Ocidental como capital de Israel, além de evitar conflito com o Direito Internacional, teria o mérito da adesão, ao menos em alguma medida, à realidade. E o exemplo russo mostra que o reconhecimento desse estado de coisas, se levado a efeito com a cautela e criatividade, pode ocorrer sem prejudicar as relações do Brasil com os países árabes.

A análise não estaria completa se não considerasse a questão do reconhecimento, pelo Brasil, em 2010, da Palestina como Estado. Já então Brasília exerceu opção juridicamente pouco ortodoxa no tratamento da questão israelo-palestina. É induvidoso que a Autoridade Nacional Palestina, ente criado pelos Acordos de Oslo, não exerce nem de fato nem de direito controle efetivo e exclusivo sobre os territórios palestinos.5 Falta-lhe, portanto, o atributo da soberania, essencial à existência de um Estado.

Embora seja – e em 2010 já fosse – elevado o número de Estados que reconhecem a Palestina como Estado6, há ainda numerosos e relevantes Estados que não chegaram a tanto, embora adotem posições respeitadas e equilibradas sobre a questão israelo-palestina, como Alemanha, Candá, Espanha, Itália e Japão.

A doutrina majoritária considera irrevogável o reconhecimento de jure de um Estado7, como foi o da Palestina pelo Brasil. Embora haja notícia de revogações de reconhecimento, trata-se, em geral, de movimento desprovido de sentido jurídico, salvo se houver vício de consentimento do agente político (e.g., reconhecimento motivado por corrupção) ou na hipótese canhestra de o Estado que reconheceu afirmar que, reexaminando a situação, não divisa a presença de um ou mais elementos constitutivos de um Estado no ente que reconhecera como tal.

Mas o formato das relações diplomáticas do Brasil com o Estado palestino, com a presença de embaixada palestina em Brasília e de escritório de representação brasileiro em Ramala, constitui decisão de política externa. A reconfiguração dessas relações, que poderia incluir a alteração do status da representação palestina em Brasília, seria inteiramente admissível em Direito Internacional.

O movimento arrojado de reconhecimento do Estado palestino e a manutenção do status quo nas relações bilaterais são decisões brasileiras que compõem, necessariamente, o contexto de qualquer flexão ou inflexão diplomática em qualquer aspecto da questão israelo-palestina, inclusive Jerusalém. Não levar – e não fazer levar – em conta essas decisões a propósito de uma possível decisão sobre Jerusalém seria fazer sombra sobre importante segmento da diplomacia brasileira para o Oriente Médio em que a realidade jurídica foi sacrificada em favor do cálculo político.

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1A Agência Judaica, embrião do Estado de Israel, aprovou a Resolução, mas não tinha voto.

2Legal consequences for states of the continued presence of South Africa in Namibia (South West Africa) notwithstanding security council resolution 276 (1970). Advisory opinion of 21 june 1971.

3Há em Jerusalém um complexo arquitetônico russo, em parte pertencente à Igreja Ortodoxa Russa. Um dos edifícios desse complexo, chamado de Pátio Sergei, foi devolvido por Israel ao Estado russo em 2008. Em 2018, a Embaixada da Rússia em Israel optou por comemorar sua data nacional nesse local, cujas existência e utilização permitem a Moscou manter presença diplomática em Jerusalém sem transferir a embaixada.

4Há, hoje, múltiplos consulados em Jerusalém, mas eles formam o que se convencionou chamar de “Corpo Consular do Corpus Separatum” e são credenciados pela ONU.

5Os Acordos de Oslo incluem um Protocolo sobre a Retirada de Forças Israelenses da Faixa de Gaza e da Área de Jericó. O Protocolo expressamente exclui da estrutura, dos poderes e das responsabilidades a serem transferidos para a Autoridade Palestina nesses territórios as competências sobre segurança externa, relações exteriores, assentamentos e nacionais israelenses (Anexo II, item 3(b), da Declaração de Princípios). Ademais, as Minutas à Declaração de Princípios sobre Ajustes para o Autogoverno Provisório, além de confirmarem que Israel continuará, depois de sua retirada, responsável pela segurança externa e pela segurança interna e a ordem pública de assentamentos e nacionais israelenses, preservam o direito das forças militares e de civis israelenses de livre uso de estradas nos territórios.

6O Brasil foi 111º Estado – o quinto na América Latina, precedido do Paraguai, da Costa Rica, da Venezuela e da República Dominicana – a reconhecer o Estado palestino.

7Art. 5º da Resolução adotada na Sessão de Bruxelas de 23/04/1936 (La reconnaissance des nouveaux Etats et des nouveaux gouvernements) do Institut de Droit Interntional.

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