"Acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la"
(Tocqueville)

Dois membros do Ministério Público querem retrocesso no acesso a armas. Eles estão errados.

Imprimir Artigo

Artigo conjunto por:

André Borges Uliano, procurador da República, mestrando em economia, professor de Direito Constitucional, coordenador do blog Instituto Politeia;

Alexandre Schneider, procurador da República, mestre em Direito;

Ailton Benedito de Souza, procurador da República;

Cleber de Oliveira Tavares Neto, procurador da República, pós-graduado em Direito;

Domingos Sávio Tenório de Amorim, Procurador Regional da República, pós-graduado em Direito;

Eduardo de Oliveira Rodrigues, procurador da República, pós-graduado em Políticas Públicas.

Bolsonaro caneta

No dia 15 de janeiro de 2019, o presidente Jair Messias Bolsonaro, em cerimônia solene, cumpriu uma de suas principais promessas de campanha e assinou o novo decreto que regulamenta a posse de armas.

A medida é ainda tímida, mas é um primeiro passo na direção certa, tornando a política pública mais próxima da vontade popular, após anos de equívocos em matéria de segurança e legítima defesa.

Alguns grupos que militam pelo desarmamento civil reagiram contra o avanço no acesso do cidadão a armas. Uma das iniciativas nesse sentido foi encabeçada por dois membros do Ministério Público Federal: a PFDC, Deborah Duprat, e o PFDC adjunto, Marlon Alberto Weichert, apresentaram uma representação à PGR para que seja ajuizada ação perante o STF contra o novo decreto.

Vamos aqui buscar rebater os argumentos da representação, mas não antes de apontar um equívoco (talvez intencional) cometido pelo Portal G1 na veiculação da notícia referente a essa representação.

1) O que significa que “o MPF” tenha representado contra o decreto?

Foto: João Américo/PGR/MPF
Foto: João Américo/PGR/MPF

O Portal de notícias G1 lançou manchete sobre o tema com a seguinte redação: “MPF pede que Raquel Dodge vá ao STF contra decreto sobre posse de armas de Jair Bolsonaro”.

A chamada pode decorrer de mera ignorância sobre a estrutura do Ministério Público, mas também é possível que decorra intenção deliberada de emprestar um ar mais institucional à iniciativa, tentando passar a impressão de que se trataria de tema “consensual” dentro da instituição. Inclusive, no corpo da matéria, no trecho em que são expostos os argumentos da representação, o jornalista intitulou o tópico como “O que diz o MPF?”

Isso exige alguns esclarecimentos.

O MPF é um órgão dentro do Ministério Público que, por sua vez, é um órgão dentro do Estado. Esses órgãos não atuam por si só, visto que são entes legais. Logo, alguém tem de agir por eles. As pessoas capazes de fazê-lo são os seus membros no exercício de suas funções.

Assim, sempre que um membro do Ministério Público se manifesta no exercício de suas funções, de um certo modo é possível imputar isso ao órgão e afirmar que “o MPF agiu”, “o MPF alega”, “o MPF representou” etc.

Todavia, é interessante deixar claro que isso não quer dizer que seja uma opinião institucional e muito menos consensual. Trata-se de posição pessoal do membro no exercício de suas atribuições institucionais. Na verdade, não há exatamente posições institucionais no MPF, visto que os membros gozam de independência funcional e assim não podem ser compelidos pela cúpula a adotar este ou aquele posicionamento (embora algumas vezes se chame de “posicionamento institucional” posturas fortemente majoritárias e amplamente debatidas, o que definitivamente não é o caso do acesso a armas).

No caso concreto, a representação veiculada pelo G1 foi feita por dois procuradores: Deborah Duprat e Marlon Alberto Weichert, ambos com um viés pró-desarmamento. Certamente há outros membros que comungam da mesma posição quanto ao tema. Mesmo assim, esse entendimento está distante de representar qualquer consenso dentro da casa, mormente numa instituição plural por natureza como é o Ministério Público Federal.

De todo modo, se a defesa da liberdade de ter acesso a armas (dentro de critérios legais) é majoritária ou não dentro do Ministério Público Federal, não há pesquisa de opinião a respeito. Do que se pode ter certeza é que todos os seus membros têm o privilégio de poder portar armas de fogo (não somente possuir em casa ou em estabelecimento comercial), consoante o art. 18, I, “e”, da Lei Complementar 75, e jamais algum membro ajuizou ação contra isso.

2) Decreto obedece a Separação de Poderes

Brasilia_Congresso_Nacional

Diante do caráter extremamente equilibrado e ponderado do decreto, os grupos contra a liberdade do cidadão cumpridor da legislação de ter acesso a armas (os grupos que não cumprem nunca deixaram de ter acesso a armas ilegais) buscaram bater em pontos formais.

A representação em questão diz que o decreto violaria a Separação de Poderes e invadiria atribuição legislativa.

Bom, primeiramente há que se ressaltar aqui uma contradição entre o argumento exposto e a postura dos grupos militantes desarmamentistas. Esses se enquadram, de modo geral, à esquerda do espectro político, do meio do qual há anos surgem iniciativas buscando restringir a atuação do Parlamento por meio do ativismo judicial, a ponto de desfigurar o esquema organizatório expresso em nossa Carta de Liberdades. O que se tem visto por parte da militância ideológica esquerdista é a tentativa de sufocar os meios de democracia representativa, a fim de governar o país por meio de ações judiciais decididas por burocratas jurídicos sem voto.

Uma das subscritoras da representação, Deborah Duprat, em encontro ocorrido em junho de 2016, com a então secretária do Governo Temer, Flávia Piovesan, chegou a defender estratégia de atuação que pode ser interpretada como contrária à democracia parlamentar: “há que se considerar que este é um parlamento majoritariamente refratário à agenda de direitos humanos. Nesse sentido, é fundamental adotar iniciativas no campo da justiça: ‘Não se muda a cultura da violência sem o envolvimento do poder Judiciário’, defendeu”.

Na verdade, não é que o Parlamento seja refratário aos Direitos Humanos. Simplesmente a maioria do Congresso não acredita que muitas das pautas que tentam impor via Judiciário, como aborto, ideologia de gênero, ou desarmamento, sejam protetivas aos direitos humanos. E o Parlamento está completamente correto nesses pontos.

Por isso, causa estranheza que agora, seletivamentearvorem-se guardiães das competências legislativas para impor, a bem da verdade, retrocesso no tocante ao acesso a mecanismo relevante para o exercício da legítima defesa: armas de fogo.

De todo modo, para justificar essa posição, afirmam que o decreto teria ultrapassado o permissivo legal, e ampliado excessivamente o acesso à posse. Para isso afirmam que o requisito da “necessidade” teria sido assaz alargado por meio do decreto.

O argumento, todavia, não prospera. Aliás, da própria leitura da representação é possível perceber o contorcionismo argumentativo para tentar demonstrar o indemonstrável.

Percebe-se que ocorre exatamente o contrário do que a representação afirma. Na verdade, o Estatuto do Desarmamento não exige qualquer elemento material como condicionante para que se configure tal necessidade. O art. 4º é claro ao afirmar que “para adquirir arma de fogo de uso permitido o interessado deverá, além de declarar a efetiva necessidade, atender aos seguintes requisitos”. Ou seja, basta a declaração.

A rigor, era o decreto anterior que apresentava constitucionalidade duvidosa ao restringir excessivamente a posse, estabelecendo interpretação draconiana quanto à prova da efetiva necessidade.

O novo decreto estabelece, de modo absolutamente proporcional, algumas hipóteses em que se reconhece ipso facto a necessidade, como moradores de áreas rurais ou com número excessivo de homicídios. O decreto, por ora, acaba abrangendo todo o território nacional, o que deixará de acontecer paulatinamente à medida que a taxa de homicídios cair no país.

Frise-se, assim, que é inadmissível concluir que o decreto tenha alterado a lei ou modificado sua “filosofia” (digamos assim). Pelo contrário, atuou de acordo com ela, regulamentando espaços deixados em aberto pela legislação.

Inclusive, se o Parlamento entendesse que houve extrapolação dos limites legais, poderia sustar  o decreto, no exercício da competência prevista no art. 49, V:

Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional: (…) V – sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa;

Já que os grupos ideologicamente contrários ao decreto se dizem preocupados com a preservação das competências parlamentares, seria mais coerente que provocassem o Congresso Nacional a examinar a questão. O que vão descobrir ao final é que não houve qualquer extrapolação dos limites legais.

Assim, pode-se concluir que o decreto respeita perfeitamente a divisão de poderes.

3) Decreto não enfraquece atividade policial, mas amplia liberdades

justice-2060093_1280

A representação também afirma que o decreto teria enfraquecido a atividade policial, por não deixar mais espaço para o arbítrio do delegado em deferir ou não o registro para posse de arma de fogo.

Primeiramente, cabe deixar claro que não estamos falando aqui da atividade policial investigativa, mas da atividade policial burocrática.

Nesse caso, é interessante liberar o consumo de força de profissionais qualificados e bem pagos das funções burocráticas para as de investigação propriamente ditas.

Ademais, essa redução da discricionariedade dos agentes públicos é natural e até salutar. Ela decorre da melhor qualidade do decreto que deixa menos lacunas duvidosas, reduzindo o espaço para o arbítrio.

Passou a ser liberdade do cidadão que atenda aos requisitos concretos do decreto o acesso à armas de fogo.

4) Decreto foi resultado de amplo debate público durante referendo popular e eleições presidenciais de 2018

Bolsonaro Hospital

A representação afirma, ainda, que o decreto teria sido editado sem “debate público”. Talvez esse seja o argumento mais alienado e descolado da realidade.

Na verdade, o tema vem sendo debatido há anos no Brasil e foi alvo do mecanismo mais qualificado de participação popular que se tem no país: referendo popular sobre a matéria. Houve uma espécie de eleição só para esse tema.

Ademais, o assunto foi objeto recorrente durante as últimas eleições, sendo a postura do Presidente Jair Bolsonaro não só conhecida, como uma de suas marcas.

Esse argumento, em geral, decorre de um escapismo de militantes ante suas derrotas na arena democrática: quando não vencem, afirmam que não houve debate. Essa linha argumentativa corre o risco de ser fruto de uma postura fechada, isto é, do convencimento de que o único debate real seria aquele do qual se sai vencedor; crença essa que resultaria na negação da própria democracia.

5) Decreto concretiza e fortalece direito à segurança

Foto: Albari Rosa - Gazeta do Povo
Foto: Albari Rosa – Gazeta do Povo

A representação ainda afirma que o decreto enfraqueceria a segurança pública.

Essa até é uma opinião legítima dos representantes. Mas é apenas isso: uma opinião.

Não se trata de modo algum de um imperativo constitucional. Nossa Constituição não é desarmamentista. Ela não restringiu o acesso a armas em lugar algum.

Pelo contrário, previu o direito à segurança, e deixou para cada geração, por meio da democracia representativa, decidir como pretende concretizar esse direito. Uma das formas é a permissão à posse de armas.

Inúmeros países que preveem em suas constituições o direito à segurança e o garantem de modo muito mais efetivo do que o Brasil – como Suíça, Noruega, Canadá, e na América Latina o Uruguai – permitem de modo bastante amplo o acesso a armas de fogo.

A representação ainda invoca inúmeros dispositivos e tratados de direitos humanos, tentando de modo absolutamente despropositado concluir que daquelas previsões vagas e abstratas (verdadeiras platitudes) decorreria necessariamente a ideologia desarmamentista, o que é uma falácia.

Basta ver os dispositivos citados e perceber que vários dos países do mundo que são signatários daqueles acordos possuem legislações pouco restritivas quanto ao acesso a armas. Os representantes tentam transformar suas opiniões subjetivas em comandos legais, o que caso imposto por meio do Judiciário seria apenas mais um lamentável e triste caso de ativismo antidemocrático, este sim afrontoso à divisão e harmonia dos Poderes, em menoscabo do Executivo e Legislativo, eleitos pelas urnas.

Compartilhe:

8 recomendações para você

Desenvolvido por bbmarketing.com.br