"Acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la"
(Tocqueville)

Afinal de contas, o que é o Estado de Direito ou Império da Lei (Rule of Law)?

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O “Estado de Direito” está na boca de todos. Como todo valor liberal que alcança grande prestígio, ele muitas vezes acaba sendo usado como mero instrumento panfletário. No Brasil, atualmente, ele é invocado até por gente que defende Nicolás Maduro, a ditadura cubana, ou os assaltos ao país desmascarados pela Operação Lava Jato. De modo histérico, essas pessoas expressam uma fantasia comum de risco de ruptura sempre que elas não estão no poder.

Mas para além do mero uso panfletário e esquizofrênico: em que consiste o Estado de Direito, também chamado de Império da Lei, tradução mais próxima de seu correspondente anglo-saxão: Rule of Law?

Frise-se que não se trata de mera questão teórica. O respeito ao Estado de Direito tem, comprovadamente, implicações no nível de bem-estar de uma população. Com efeito, segundo estudos dos economistas Peter Boetke da George Mason University e Robert Subrick da Universidade James Madison, a análise empírica indica uma forte correlação entre a consistência do Estado de Direito numa nação e os resultados observados em termos de educação, saúde e renda.

Por isso, responder o que é o Estado de Direito será nossa meta neste e em um segundo artigo. No presente texto, buscaremos descrever a ideia central e os traços principais do Império da Lei. Num segundo artigo, iremos tratar da história da formação do conceito, sua consequências jurídicas e apontaremos alguma bibliografia básica para quem quiser aprofundar sobre a temática.

Vejamos, pois.

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A concepção atual do Estado de Direito pode ser descrita como um edifício teórico baseado em duas vigas mestras: liberdade e igualdade. Ou mais especificamente: igualdade perante a lei e os tribunais; e, liberdade para autoderminar-se perante o direito.

De fato, sobre a primeira viga, o professor de Direito Constitucional da Universidade de Boston, Paul Gowder1, em trabalho específico acerca da relação entre Rule of Law e igualdade, afirma:

o Estado de Direito (Rule of Law) é um valor ético porque ele exige que o Estado trate os sujeitos como iguais perante a lei (“tese da igualdade”). Especificamente, o Estado de Direito promove a igualdade vertical entre agentes públicos e agentes privados, e igualdade horizontal no tocante às relações dos agentes privados entre si.

Lição em igual sentido é encontrada na obra clássica de Albert Venn Dicey2, acerca do Rule of Law. Tratando especificamente do caso inglês, diz o autor:

quando falamos do “Rule of Law” como uma característica de nosso país, queremos dizer não apenas que ninguém está acima da lei, mas (o que é mais do que isso) que aqui absolutamente toda pessoa, qualquer que seja seu status ou condição, está sujeito ao direito comum e submisso à jurisdição ordinária dos tribunais.

Na Inglaterra, a ideia de igualdade perante a lei, ou de sujeição universal de todas as classes a um único direito administrado por Cortes ordinárias, tem sido levada ao limite.

Já no tocante segundo pilar, ou seja, no que concerne ao compromisso do Estado de Direito com a visão antropológica da pessoa como ser livre e capaz de autodeterminar-se perante regras de tratamento recíproco entre governantes e governados e entre estes últimos, diz Lon L. Fuller, em sua obra clássica, The Morality of Law3:

Embarcar na aventura de guiar a conduta humana por meio do governo de leis envolve necessariamente o compromisso com a visão de que o ser humano é, ou ao menos poderá ser, um agente responsável, capaz de entender e seguir regras, e responder por suas inobservâncias.

Pois bem, partindo dessas duas premissas e buscando desenvolvê-las, podemos dizer, em suma, que o Estado de Direito exige que todos sejam tratados segundo um parâmetro comum: leis gerais e abstratas, que se apliquem de igual modo a todas as pessoas e todos os casos nelas enquadrados, seja para obrigá-los juridicamente, seja para protegê-los diante de terceiros. Essas leis também precisam ser constantes, não se prestando a mudanças abruptas que dificultem seu conhecimento e internalização, tampouco a favorecer episodicamente determinados indivíduos ou grupos.

Essa igualdade perante a lei, ademais, não é apenas entre os cidadãos (igualdade horizontal, segundo classificação acima utilizada de Paul Gowder), mas também incide na relação entre governantes e governados (igualdade vertical4), o que exige que haja um tratamento de respeito recíproco entre eles. Isso ocorre, por um lado, mediante um compromisso generalizado dos cidadãos com os estatutos aprovados; e por outro, por meio de uma congruência entre o previsto e o efetivamente aplicado pelas instituições jurídicas. Além de que todos – agentes públicos ou não – devem estar sujeitos a accountability, sendo passíveis de responsabilização, ao mesmo tempo em que quedam protegidos por sua atuação dentro do âmbito do direito.

Do exposto, percebe-se que a construção de um Estado de Direito não é apenas uma questão de previsão de um sistema jurídico bem elaborado, mas de um efetivo governo dessas leis. Elas devem ser obedecidas na prática, ao menos de modo muito generalizado, o que exige, para além das características acima mencionadas, que elas sejam: factíveis e prospectivas, visto que é inviável autodeterminar-se por leis inexequíveis ou que só existirão no futuro; além de claras e coerentes, visto que só é possível escolher algo previamente conhecido, razão pela qual é impraticável decidir observar normas incompreensíveis, ininteligíveis ou contraditórias.

Essas ideias básicas estão bem sumarizadas nas seguintes lições de Jeremy Waldron:

A principal exigência do Estado de Direito é que as pessoas em posições de autoridade exerçam seu poder dentro de uma estrutura institucional de normas públicas bem estabelecidas que limitem seu poder de ação, e não de maneira arbitrária, ad hoc ou puramente discricionária, com base em suas próprias preferências ou ideologias. Exige, assim, que o governo opere dentro desse arcabouço em tudo o que faz e que haja possibilidade de responsabilização perante a lei, quando houver qualquer indício de ação não autorizada por parte daqueles que estão no poder.

Esse aspecto específico do Rule of Law foi também muito bem sintetizado pelo economista e cientista político, laureado com o Nobel de Economia em 1974, Friedrich Hayek, o qual aponta o Estado de Direito como aquele que prescreve que:

todas as ações do governo são regidas por normas previamente estabelecidas e divulgadas – as quais tornam possível prever com razoável grau de certeza de que modo a autoridade usará seus poderes coercitivos em dadas circunstâncias, permitindo a cada um planejar suas atividades individuais com base nesse conhecimento.5

Porém, consoante acertada lição de Jeremy Waldron: “o Estado de Direito não se refere apenas ao governo”:

Exige também que os cidadãos respeitem e cumpram as normas legais, mesmo quando discordem delas. Com efeito, quando seus interesses conflitam com os dos outros, eles devem aceitar as determinações legais sobre quais são seus direitos e deveres. Além disso, a lei deve ser a mesma para todos, para que ninguém esteja acima da lei e todos tenham acesso à proteção da lei. A exigência de acesso é particularmente importante, em dois sentidos. Primeiro, a lei deve ser epistemicamente acessível: deve constituir-se em um conjunto de normas promulgadas e tornadas públicas, para que as pessoas possam estudá-la, internalizá-la, e descobrir o que isso exige delas, sendo capazes de usá-la como uma estrutura para definirem seus planos e expectativas, bem como para resolver suas disputas. Em segundo lugar, as instituições legais e seus procedimentos devem estar à disposição das pessoas comuns para defender seus direitos, resolver seus litígios e protegê-las contra abusos do poder público e privado. Tudo isso, por sua vez, requer a independência do judiciário, a responsabilidade dos funcionários do governo, a transparência dos negócios públicos e a integridade dos procedimentos legais. (tradução nossa)6

É claro que não existe propriamente um governo de leis, visto que governar exige a tomada de ações, e leis não agem por si sós. Logo, o governo é sempre de pessoas. Um governo ou império das leis, portanto, é na verdade, uma expressão metonímica: é um governo de pessoas, porém de pessoas constrangidas por um arcabouço normativo que guie, limite, proteja e responsabilize-as por seus atos. O governo das leis, assim, é um governo de pessoas, mas de pessoas limitadas pelo direito. E não qualquer direito: mas um direito segundo descrito acima, com as características necessárias para que haja o devido respeito à igualdade perante a ordem jurídica e à liberdade de autodeterminar-se de acordo com a lei, ou de ser responsabilizado perante ela; e só perante ela, de modo que a liberdade das ações dentro da lei restam preservadas e protegidas.

Portanto, a base do Estado de Direito é a ideia de que uma sociedade seja governada por leis dotadas de certas perfeições formais, as quais permitam aos particulares, em igualdade de tratamento, autodeterminarem-se de acordo com elas; que haja instituições aptas a aplicá-las de modo geral e igualitário, e que o façam de fato; e que os agentes estatais também estejam circunscritos por esse arcabouço jurídico e sejam responsivos perante ele.

Compreendidas essas ideias básicas, para que se possa compreender melhor esse ideário, é fundamental a compreensão das fontes históricas que o foram formando. Será esse, portanto, o objeto de nosso próximo artigo.

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1“The rule of law is morally valuable, I argue, because it is required for the state to treat subjects of law as equals (“the equality thesis”). Specifically, the rule of law fosters vertical equality between officials and non-officials and horizontal equality among non-officials.” GOWDER, Paul. The Rule of Law and Equality. Law and Philosophy. n. 32, p. 565–618, 2013.Disponível em: <https://doi.org/10.1007/s10982-012-9161-2>, p. 565-566.

2“(…) when we speak of the ‘rule of law’ as a characteristic of our country, not only that with us no man is above the law, but (what is a differen thing) that here every man, whatever be his rank or condition, is subject to the ordinary law of the realm and amenable to the jurisdiction of the ordinary tribunals. In England the idea of legal equality, or of the universal subjection of all classes to one law administered by the ordinary Courts, has been pushed to its utmost limit”. DICEY, Albert Venn. Introduction to the Study of The Law of the Constitution. Indianapolis: Liberty Fund, 2014. E-book (não paginado).

3“To embark on the enterprise of subjecting human conduct to the governance of rules involves of necessity a commitment to the view that man is, or can become, a responsible agent, capable of understanding and following rules, and answerable for his defaults.” (FULLER, Lon L. The Morality of Law. 2ª ed. New Haven and London: Yale University Press, 1969, p. 162).

4GOWDER, Paul. The Rule of Law and Equality. Law and Philosophy. n. 32, p. 565–618, 2013.Disponível em: <https://doi.org/10.1007/s10982-012-9161-2>, p. 565-566.

5HAYEK, Friedrich A. O Caminho da Servidão. Trad. Anna Maria Capovilla, José Ítalo Stelle e Liane de Morais Ribeiro. 6ª edição. São Paulo: IMB, 2010. p. 89.

6WALDRON, Jeremy, “The Rule of Law”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (edição de outuno de 2016), Edward N. Zalta (ed.), disponível em: <https://plato.stanford.edu/archives/fall2016/entries/rule-of-law/>.

Texto original:“The most important demand of the Rule of Law is that people in positions of authority should exercise their power within a constraining framework of well-established public norms rather than in an arbitrary, ad hoc, or purely discretionary manner on the basis of their own preferences or ideology. It insists that the government should operate within a framework of law in everything it does, and that it should be accountable through law when there is a suggestion of unauthorized action by those in power.

But the Rule of Law is not just about government. It requires also that citizens should respect and comply with legal norms, even when they disagree with them. When their interests conflict with others’ they should accept legal determinations of what their rights and duties are. Also, the law should be the same for everyone, so that no one is above the law, and everyone has access to the law’s protection. The requirement of access is particularly important, in two senses. First, law should be epistemically accessible: it should be a body of norms promulgated as public knowledge so that people can study it, internalize it, figure out what it requires of them, and use it as a framework for their plans and expectations and for settling their disputes with others. Secondly, legal institutions and their procedures should be available to ordinary people to uphold their rights, settle their disputes, and protect them against abuses of public and private power. All of this in turn requires the independence of the judiciary, the accountability of government officials, the transparency of public business, and the integrity of legal procedures.”

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