"Acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la"
(Tocqueville)

Impopularidade é sinônimo de governo ruim na economia? A história parece demonstrar que não.

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Bolsonaro e Temer durante posse na terça-feira (1º). | Valter Campanato /Agência Brasil
Foto: Valter Campanato – Agência Brasil

No dia 1º de janeiro de 2019 iniciou no Brasil um novo governo. Faz poucos dias, mas parece que Eras já se passaram desde que Michel Temer deixou o Palácio do Planalto.

Próximo do encerramento de seu mandato, no dia 30 de dezembro de 2018, publicamos um artigo que buscou fazer um balanço dos pontos positivos da gestão Michel Temer. O artigo chamou a atenção para o controle da inflação, do gasto público, e algumas medidas de liberalização da economia, como a modernização das relações de trabalho, a abertura para o comércio internacional e a redução da burocracia, com consequente evolução do ambiente de negócios no Brasil, como percebido pelo ranking DoingBusiness do Banco Mundial.

Haveria pontos fora do aspecto econômico também a serem examinados, como a indicação de um excelente jurista para a Suprema Corte, o constitucionalista Alexandre de Moraes; e também aspectos negativos  serem sopesados. Porém, aqui preferimos nos fixar no âmbito econômico, pois o real intento do artigo anterior e do presente é traçar um paralelo entre a gestão Temer e um dos primeiros governos republicanos, o de Campos Sales (1898-1902).

No artigo anterior, apontamos que, apesar daqueles feitos positivos, o governo Temer encerrou seu governo com baixa popularidade (7% consideravam sua gestão boa ou ótima; e outros 29%, regular). E então perguntamos: não seria a impopularidade sinal de um governo ruim? A história parece mostrar que não.

E é aqui que entra o paralelo antes indicado.

Na verdade, o que se percebe é que a popularidade parece depender de outras variáveis, como apoio de grupos de pressão ou do impacto de curto prazo das políticas aplicadas.

Todavia, a qualidade de um governo não pode ser analisada por seus efeitos até a próxima eleição ou da opinião de grupos cooptados. São exatamente os efeitos mais prolongados e que atingem a população de modo geral os mais importantes. São eles os que devem levar à formação de um juízo sobre uma gestão. Mas eles parecem ter muito pouco impacto sobre níveis imediatos de popularidade perante o eleitorado.

Vejamos, pois, o mencionado governo de Campos Salles, especialmente no tocante à atuação de seu Ministro da Fazenda, Joaquim Murtinho. Aqui utilizarei como fonte histórica dois artigos de Mircea Buescu: “A experiência deflacionária de Joaquim Murtinho” e “Lições da História”.

Campos Sales – Presidente da República 1898-1902

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Campos Salles assumiu a presidência em 15 de novembro de 1898, investindo Murtinho na chefia da pasta econômica.

Sua gestão deparou com uma grave crise, ainda por efeito do Encilhamento (nome dado ao episódio de emissão de moeda e expansão do crédito no início da República). Aliás, política bastante semelhante e com propósitos parecidos à chamada “Nova Matriz Econômica” do petista Guido Mantega, ambas tendo destruído os alicerces da economia e deixado uma gigantesca herança maldita para seus sucessores.

Para se ter uma ideia, apenas no ano de 1890, em que realizada uma reforma no sistema bancário, afrouxando a política monetária, a emissão de papel-moeda subiu 53%. Entre 1889 e 1894: 261%. Resultado: entre 1890 e 1893 a inflação ficou entre 30% e 40% ao ano.

Tal como Dilma Rousseff e Guido Mantega, os dirigentes da época afirmavam que a finalidade era promover o desenvolvimento e a industrialização. Mas o efeito não foi alcançado, porque a inflação é incapaz de gerar desenvolvimento. As empresas surgidas no período eram de caráter tipicamente especulativo (fenômeno próprio da inflação) e tiveram curta existência. Alguns defendem que o período registrou algum avanço; porém, sem dúvida, devido a outros fatores que não à política inflacionista e “desenvolvimentista” do Estado, mas sim à abolição da escravatura, a consequente adoção de mão de obra livre e assalariada, crescente fluxo de imigrantes etc.

De um modo ou de outro, o fato é que os efeitos do Encilhamento não foram devidamente combatidos até o final de década de 90 do séc. XIX.

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Joaquim Murtinho, Ministro da Fazenda de Campos Sales

Quando Campos Sales chegou à chefia da nação e Murtinho à da Fazenda, em 1898, este último diagnosticou uma dupla crise:

1) inflação, que depois de amenizar em 1894 e 1895, voltava a acelerar principalmente por causa do déficit público (tendo fechado os anos de 1896 e 1897, respectivamente, nos patamares inaceitáveis de 27,8% e 18,7%) (sobre a correlação entre déficit público e inflação, escrevemos um artigo – aqui); e

2) queda na cotação da saca do café, a principal commoditie de exportação brasileira, que alcançava em 1898 um terço do valor que possuía em 1883.

Alcindo Guanabara, um contemporâneo, sumarizou as consequências da crise da seguinte forma: “criação e agravação contínua de impostos (…) abuso de crédito (…) aumento da dívida (…) uma situação insustentável”.

Murtinho deu uma explicação precisa, baseada no conceito clássico da economia: oferta e demanda. Havia excesso de oferta de moeda, o que gerava a perda do seu valor (inflação); e excesso de oferta de café (produção excessiva), o que fazia cair os preços.

Na verdade, ambos os fenômenos estavam ligados. O fato é que à medida em que o valor do café caía no exterior, o governo adotava políticas inflacionárias, a fim de derrubar o valor da moeda nacional, favorecendo a exportação do café e os lucros dos exportadores.

Para entender os efeitos perversos dessa política é necessário compreender um conceito de economia monetária: o da não neutralidade da moeda. Em síntese, diz-se que a moeda não é neutra, e isso faz com que a inflação se torne um fenômeno de transferência de renda de um grupo para o outro.

De fato, quando o Estado emite mais moeda, essa moeda não surge proporcionalmente nos bolsos de cada cidadão (caso em que a moeda nova seria neutra). Ele é gasto em determinado setor (por exemplo: o Estado fornece a nova moeda via crédito para fazendeiros produtores de café). Esse setor é favorecido, pois os preços dos objetos que as pessoas desse ramo econômico compram ainda não subiram. À medida que eles gastam em outras áreas da economia, os preços dos respectivos bens também sobem. E assim paulatinamente em toda a economia, como uma pedra lançada ao mar formando círculos concêntricos cada vez mais amplos. O último setor atingido será o mais prejudicado: ele vem desde o início do processo comprando os bens mais caros, enquanto os seus ganhos permaneciam congelados.

Sobre essa tema, recomendamos o seguinte artigo do economista Ludwig Von Mises, publicado no Instituto Mises Brasil: “Sobre a não neutralidade da moeda“. Ou o capítulo sobre “inflação” (nº XXIII) da obra do economista Henry Hazlitt: “Economia Numa Única Lição“.

No caso brasileiro de que estávamos tratando, a transferência se dava da população de modo geral para os exportadores, particularmente para os cafeicultores.

Disso já se pode presumir que o Brasil possuía ainda uma terceira crise: cambial. Um relatório do Ministério da Fazenda de 1898 exprimia o seguinte quadro: “a notável decadência a que chegou o câmbio no Brasil, excedendo já em muito os limites naturais do câmbio real, só pode ser atribuída em sua máxima parte ou quase totalidade à depreciação do papel-moeda”. E ainda: “as emissões bancárias determinaram a desvalorização do meio circulante na proporção expressa pelas taxas cambiais expostas, prova de sua superabundância e medida de sua depreciação”. Arrematando em palavras fortes: “é evidente que será legítimo qualquer expediente que liberte o país desta opressão (câmbio baixo)”.

Havia ainda uma quarta, ainda não citada: uma crise fiscal. O Brasil teve orçamentos públicos seguidamente deficitários no período monárquico. Foram 56 orçamentos deficitários num total de 67. O fenômeno se manteve durante a república: foram 70 orçamentos deficitários entre 1890 e 1990 (vide Mircea Buescu, História Econômica do Brasil, p. 175). Como bem disse Paulo Guedes em sua posse como Ministro da Fazenda: a questão fiscal sempre foi o calcanhar de Aquiles do Brasil.

Perceba como a situação lembra o Brasil de 2015: inflação, crise cambial e fiscal, em virtude de políticas monetárias frouxas com fins (pseudo)desenvolvimentistas.

Esse processo e a conexão entre essas várias crises é magistralmente explicado pela Teoria Austríaca dos Ciclos Econômicos.

A terapia apontada por Murtinho foi precisa: reduzir a oferta monetária, a fim de fazer cessar a inflação e a corrosão do poder da moeda nacional no comércio externo.

Indiretamente, isso corrigiria também o mercado de café. A valorização cambial deveria reduzir a remuneração do café em valores na moeda nacional, o que obrigaria os produtores que alcançavam lucros apenas pela manipulação do governo sobre o câmbio e às custas do resto da sociedade a saírem do mercado, reduzindo a produção e logo a oferta, arrefecendo a queda da cotação.

Num primeiro momento você poderia ter a seguinte reação: ora, mas isso criaria desemprego, visto que algumas fazendas iriam fechar. Mas não. Lembre que a inflação retira riqueza das pessoas ao esvaziar o valor de seu dinheiro. Cessando a inflação há uma tendência de paulatino crescimento da renda real. À medida que as pessoas voltam a ter mais riqueza, elas irão gastar esses valores e gerar empregos em outros setores para os quais há demanda real. Claro que até que a economia se acomode e corrija as distorções criadas pelo processo inflacionário haverá inevitável sofrimento que só teria sido poupado se a inflação simplesmente tivesse sido evitada desde o início, com o que se teria evitado o favorecimento de determinados setores que acabam por se expandir de modo insustentável, transferindo emprego de outros ramos. Mas é o único modo de no médio e longo prazo sanear a economia do país evitando resultados ainda mais dolorosos que viriam caso se desse livre curso à inflação.

Apenas uma crítica pode ser aqui apontada à política de Sales e Murtinho: eles tinham o almejo de restabelecer o valor da moeda frente ao ouro na proporção anterior à crise inflacionária. Algo semelhante ao que foi tentado por Churchill, na Inglaterra, após a Primeira Guerra. Em ambos os casos, isso forçou o processo deflacionário a ser mais rigoroso do que o necessário.

De qualquer maneira, com o diagnóstico e a terapia definida, Murtinho aplicou seu plano. Ele retirou papel-moeda do mercado. Entre 1898 e 1902 reduziu sua emissão em 12,6%, o que resultou numa diminuição dos depósitos de valores à vista em 52,1%, e numa queda de 24,9% dos chamados “meios de pagamento”.

Os preços em geral registraram uma deflação de cerca de 30% entre 1898 e 1902. A valorização cambial da moeda brasileira foi de mais de 60% no período.

Houve, então, uma natural crise dos bancos, visto que instituições financeiras atingem lucros artificiais com a inflação. A cessação dessa fez com que aqueles que sobreviviam da manipulação sobre a moeda tivessem de abandonar os negócios.

Novamente você poderia reagir achando que isso iria causar desemprego. Mas já explicamos: inflação é transmissão de renda. Quando você para de transmitir a renda, há fechamento de postos nos setores que recebiam; e passará a haver criação nos que eram penalizados com a depreciação da moeda.

Murtinho à época foi muito criticado pelos grupos de pressão prejudicados (cafeicultores, banqueiros, e políticos ligados a eles).

Todavia, a verdade é que os indicadores estatísticos não revelaram resultados recessivos. No ano de 1898 a produção nacional cresceu levemente. E em 1899 teria sofrido pequena retração. Mas já em 1900 e 1901, o PIB teve excelente resultado, de 11% e 7%, respectivamente. Levando a uma média anual de crescimento bastante satisfatória de 4,4% durante o mandato, com uma evolução total do produto de 18,7%. Bem superior ao resultado da década inflacionária anterior, cuja média de crescimento ficou anualmente em cerca de 1,5%.

Mas os grupos prejudicados buscaram manipular a opinião pública, o que conseguiram fazer com sucesso, mostrando o fechamento dos negócios, afirmando que estava havendo um colapso da economia e que haveria excessivo desemprego. Escondiam que os lucros daquelas atividades eram artificialmente mantidos pela manipulação das políticas do estado às custas do resto da população. E que aqueles empregos eram artificialmente mantidos à custa da extinção de postos de trabalho em setores para os quais havia demanda autêntica.

Outro ponto ainda prejudicou a opinião pública contra Campos Sales e Murtinho: eles não conseguiram realizar cortes no orçamento (o que mostra que vem de longe a dificuldade brasileira em cortar os gastos do Estado e fazer frente ao corporativismo dos clientes do governo). Isso obrigou-os a elevar tributos para conter o endividamento público crescente. Algo semelhante ao que ocorreu com Michel Temer, que não conseguindo levar adianta a Reforma da Previdência foi obrigado a aumentar os tributos sobre combustível. Medidas essas nada palatáveis à população em geral, que sofre do seguinte mal: deixa-se manipular pelos grupos de pressão, não apoiando o controle de despesas pelo Estado, mas depois reclama quando a conta chega.

Frise-se que, além daquele crescimento bastante satisfatório, as políticas de Murtinho ainda permitiram o crescimento posterior do país. O período entre 1903 e 1913 foi chamado de “Reerguimento Econômico”, mas suas raízes estavam no período anterior. Os sucessores de Campos Salles, Rodrigues Alves e Afonso Pena puderam colher os frutos plantados por Campos Salles e Joaquim Murtinho.

Ora: tendo combatido com sucesso a inflação, gerado crescimento econômico e deixado o país em excelente estado para os presidentes posteriores, era de se imaginar que Campos Salles obtivesse a opinião favorável da população. Mas veja essa descrição dos fatos por Mircea Buescu:

“Campos Sales e Murtinho tiveram que enfrentar os maiores vexames e adversidade e uma imensa onda de impopularidade – sabe-se que Campos Sales saiu da presidência sob as vaias populares. Entretanto – mais uma lição histórica – eles deram prova não apenas de coerência em relação aos seus planos, mas também de grande coragem cívica, sem a qual a política econômica fica submissa à demagogia”.

Esse pequeno relato parece confirmar duas lições antigas, mas que precisam ser sempre relembradas:

1) em primeiro lugar, políticas devem ser julgadas no longo prazo. Como diz o ditado: populistas pensam na próxima eleição, enquanto estadistas cuidam da próxima geração.

2) impopularidade não é sinônimo de má-gestão, a não ser da gestão do marketing pessoal.

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