"Acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la"
(Tocqueville)

Fala de Marco Aurélio sobre suposta “afronta” em Congresso analisar prisão em segunda instância é juridicamente infundada

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Constituição Federal
Foto: Edilson Rodrigues – Agência Senado

No último dia 7 de novembro, o STF, por apertada maioria de 6 votos a 5, julgou ilegal a prisão em segunda instância por força do art. 283 do Código de Processo Penal, segundo o qual “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.” A maioria dos membros da Corte entendeu que o dispositivo é constitucional e constitui um óbice à prisão em segunda instância.

A decisão é uma das piores da história do Judiciário brasileiro e provocou forte reação contrária da sociedade e dos grupos que apoiam o combate à corrupção.

Segundo noticiou a Gazeta do Povo:

Com bandeiras, faixas e camisetas amarelas, movimentos de apoio à Lava Jato e grupos de direita realizaram manifestações de rua, neste sábado (9), em diversas capitais do Brasil. Eles protestaram contra a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que permitiu a libertação de presos envolvidos em escândalos de corrupção, como o ex-presidente Lula e o ex-ministro petista José Dirceu.

Os manifestantes fizeram um apelo ao Congresso Nacional para que se aprove a proposta de emenda à Constituição (PEC) 410, que autoriza a prisão após a condenação em segunda instância. Também deram apoio ao ministro da Justiça, Sergio Moro, e à Operação Lava Jato, além de defender a abertura da “CPI da Lava Toga” para investigar atos do Judiciário.”

Em virtude desse fato, o Congresso passou a acelerar propostas capazes de corrigir o enorme equívoco do Supremo Tribunal. O presidente da CCJ da Câmara dos Deputados, Felipe Franceschini, em sua conta na rede social Twitter, passou a fazer várias postagens relatando os passos da PEC 410/2018, que analisamos em post anterior.
CCJ PEC 410

Segundo matéria da Gazeta do Povo, também no Senado tramita uma PEC para esclarecer o cabimento da prisão em segunda instância em nosso sistema jurídico.

A reação de Marco Aurélio

Marco Aurelio Impeachment

Inexplicavelmente, o ministro Marco Aurélio de Mello (um dos que votou contra a possibilidade de prisão em segunda instância) “afirmou (…) que uma eventual aprovação de mudança na regra das prisões de condenados seria afronta à corte”, consoante reportagem do Jornal do Comércio.

Ele alegou também que haveria o risco de a emenda ferir cláusula pétrea. Quanto a isso, todavia, já demonstramos em artigo anterior  que não há qualquer colisão com cláusula pétrea.

Por isso, aqui queremos nos fixar na equivocada afirmação de que haveria alguma afronta em virtude de o Congresso reapreciar um tema examinado pelo STF.

Superação Legislativa da Jurisprudência

 

De forma oposta à manifestação de Marco Aurélio, a superação via legislativo de decisões judiciais (mesmo que em controle de constitucionalidade) é uma prática absolutamente consagrada no direito brasileiro, reconhecida como legítima na própria Constituição e reiteradamente aceita pelos constitucionalistas e pela jurisprudência do STF.

Com efeito, a Constituição, ao prever no § 2º do art. 102 quem está vinculado pelas decisões do STF em controle de constitucionalidade, expressamente deixou a atividade legislativa de fora. Observe a redação do dispositivo:

§ 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.

Assim, ao vincular apenas os “demais órgãos do Poder Judiciário“, o dispositivo deixa o próprio STF de fora, permitindo mudanças futuras em seu posicionamento. E ao restringir o efeito vinculante à “administração pública direta e indireta”, ele alcança apenas as funções administrativas do Estado, ficando de fora a atividade Legislativa.

Vejamos por meio de um exemplo: digamos que o STF fixe uma determinada tese em controle de constitucionalidade acerca de um direito previdenciário. O Poder Executivo e o Poder Legislativo ao deferirem a aposentadoria de seus servidores estarão obrigados a observar aquela decisão. Estarão vinculados. Porém, a decisão não impede que o Poder Executivo encaminhe uma Medida Provisória ou que o Poder Legislativo aprove uma lei superando a tese fixada pelo STF.

A Lei 9.868/99, que regula o procedimento dos processos de controle de constitucionalidade, repete essa previsão, no parágrafo único de seu art. 28.

Por essas razões, a doutrina constitucionalista é unânime em afirmar que a atividade legislativa não está submetida ao efeito vinculante das decisões do STF.

Nesse sentido, por exemplo, afirma Luiz Guilherme Marinoni, na obra “Curso de Direito Constitucional” (6ª ed., 2017, p. 1178):

O Legislativo não está impedido, em razão da eficácia vinculante, de editar lei com conteúdo idêntico ao de lei já proclamada inconstitucional pelo STF. Até porque o Legislativo pode entender que existem novas circunstâncias, como a transformação da realidade ou dos valores sociais, que imponham a compreensão do texto num sentido constitucional.

Concorda Marcelo Novelino, em seu “Curso de Direito Constitucional” (13ª ed., 2018, p. 237), ao tratar das decisões em sede de controle de constitucionalidade pelo STF:

A decisão também não vincula o Poder Legislativo em sua função típica de legislar, razão pela qual, em tese, poderá se elaborada nova lei com conteúdo idêntico ao de ato já declarado inconstitucional. Entendimento diverso comprometeria a relação de equilíbrio existente entre os poderes e reduziria o legislador a um papel subalterno. 

Aliás, a própria jurisprudência do STF é pacífica nesse sentido:

PRETENDIDA SUBMISSÃO DO PODER LEGISLATIVO AO EFEITO VINCULANTE QUE RESULTA DO JULGAMENTO, PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, DOS PROCESSOS DE FISCALIZAÇÃO ABSTRATA DE CONSTITUCIONALIDADE. INADMISSIBILIDADE. CONSEQÜENTE POSSIBILIDADE DE O LEGISLADOR EDITAR LEI DE CONTEÚDO IDÊNTICO AO DE OUTRO DIPLOMA LEGISLATIVO DECLARADO INCONSTITUCIONAL, EM SEDE DE CONTROLE ABSTRATO, PELA SUPREMA CORTE. INVIABILIDADE DE UTILIZAÇÃO, NESSE CONTEXTO, DO INSTRUMENTO PROCESSUAL DA RECLAMAÇÃO COMO SUCEDÂNEO DE RECURSOS E AÇÕES JUDICIAIS EM GERAL. RECLAMAÇÃO NÃO CONHECIDA. – O efeito vinculante e a eficácia contra todos (“erga omnes”), que qualificam os julgamentos que o Supremo Tribunal Federal profere em sede de controle normativo abstrato, incidem, unicamente, sobre os demais órgãos do Poder Judiciário e os do Poder Executivo, não se estendendo, porém, em tema de produção normativa, ao legislador, que pode, em conseqüência, dispor, em novo ato legislativo, sobre a mesma matéria versada em legislação anteriormente declarada inconstitucional pelo Supremo, ainda que no âmbito de processo de fiscalização concentrada de constitucionalidade, sem que tal conduta importe em desrespeito à autoridade das decisões do STF. Doutrina. Precedentes. Inadequação, em tal contexto, da utilização do instrumento processual da reclamação. (Rcl 5442 MC, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO)

Por esse motivo, é corriqueiro que um entendimento do STF seja posteriormente modificado pelo advento de novo tratamento legal ao tema. Alguns exemplos:

a) a Lei da Ficha Limpa (LC 135/10) superou a posição consolidada do TSE e do STF no sentido de que era inviável a inelegibilidade antes do trânsito em julgado, em virtude do princípio da presunção de inocência. No julgamento da ADC 29/DF, ADC 30/DF, ADI 4578/DF, todas de relatoria do Min. Luiz Fux, o STF firmou que foi válida a inovação legislativa que reformava o entendimento jurisprudencial;

b) também no caso da Vaquejada, julgada inconstitucional pelo STF, o que depois foi revertido por meio da Emenda Constitucional 96/2017;

c) semelhante fenômeno ocorreu em relação à cláusula de barreira”, julgada inconstitucional pelo STF, recriada mais tarde mediante a Emenda Constitucional 97/2017.

O fenômeno é tão comum que para descrevê-lo foi, inclusive, cunhado o jargãosuperação legislativa da jurisprudência ou backlash legislativo.

STF não tem a “última palavra” sobre a interpretação constitucional

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Em discussão política travada em 1914, o famoso jurista e político Ruy Barbosa teria dito –  em palavras mais sofisticadas do que estas -, que cabe ao STF o direito de “errar por último”. A simpática expressão se introjetou na consciência jurídica brasileira e reforçou por aqui a ideia de que o Supremo Tribunal possuiria a “última palavra” em tema de interpretação constitucional.

Ledo – e autoritário – engano. Essa prerrogativa simplesmente não existe.

Na verdade, o que se verifica em nosso sistema é um autêntico diálogo institucional. Assim, o STF simplesmente participa de um diálogo sobre a leitura correta da Constituição ao proferir suas decisões. Mas essa manifestação não é última, nem se impõe sobre as demais. Os demais Poderes da República, órgãos do Estado e a sociedade como um todo, podem reagir – concordando ou não – diante da posição do STF.

O que temos, na verdade, consoante magnifica lição de Peter Häberle, é uma autêntica “sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. Nesse arranjo não há alguém que detenha a palavra final. Há, pelo contrário, mútua influência e um diálogo contínuo.

Dentro de tal dinâmica, o Poder Legislativo acaba por possuir grande relevância, por poder responder à posição do STF, manifestando uma leitura diversa mediante superação legislativa da jurisprudência.

Essa percepção, inclusive, já foi consignada em julgado do STF, numa das mais brilhantes exposições sobre o tema constantes de nossa jurisprudência.

Confira:

TEORIA DOS DIÁLOGOS CONSTITUCIONAIS. ARRANJO CONSTITUCIONAL PÁTRIO CONFERIU AO STF A ÚLTIMA PALAVRA PROVISÓRIA (VIÉS FORMAL) ACERCA DAS CONTROVÉRSIAS CONSTITUCIONAIS. AUSÊNCIA DE SUPREMACIA JUDICIAL EM SENTIDO MATERIAL. JUSTIFICATIVAS DESCRITIVAS E NORMATIVAS. PRECEDENTES DA CORTE CHANCELANDO REVERSÕES JURISPRUDENCIAIS (ANÁLISE DESCRITIVA). AUSÊNCIA DE INSTITUIÇÃO QUE DETENHA O MONOPÓLIO DO SENTIDO E DO ALCANCE DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS. RECONHECIMENTO PRIMA FACIE DE SUPERAÇÃO LEGISLATIVA DA JURISPRUDÊNCIA PELO CONSTITUINTE REFORMADOR OU PELO LEGISLADOR ORDINÁRIO. POSSIBILIDADE DE AS INSTÂNCIAS POLÍTICAS AUTOCORRIGIREM-SE. NECESSIDADE DE A CORTE ENFRENTAR A DISCUSSÃO JURÍDICA SUB JUDICE À LUZ DE NOVOS FUNDAMENTOS. PLURALISMO DOS INTÉRPRETES DA LEI FUNDAMENTAL. DIREITO CONSTITUCIONAL FORA DAS CORTES. (…)

1. O hodierno marco teórico dos diálogos constitucionais repudia a adoção de concepções juriscêntricas no campo da hermenêutica constitucional, na medida em que preconiza, descritiva e normativamente, a inexistência de instituição detentora do monopólio do sentido e do alcance das disposições magnas, além de atrair a gramática constitucional para outros fóruns de discussão, que não as Cortes.

2. O princípio fundamental da separação de poderes, enquanto cânone constitucional interpretativo, reclama a pluralização dos intérpretes da Constituição, mediante a atuação coordenada entre os poderes estatais – Legislativo, Executivo e Judiciário – e os diversos segmentos da sociedade civil organizada, em um processo contínuo, ininterrupto e republicano, em que cada um destes players contribua, com suas capacidades específicas, no embate dialógico, no afã de avançar os rumos da empreitada constitucional e no aperfeiçoamento das instituições democráticas, sem se arvorarem como intérpretes únicos e exclusivos da Carta da República.

3. O desenho institucional erigido pelo constituinte de 1988, mercê de outorgar à Suprema Corte a tarefa da guarda precípua da Lei Fundamental, não erigiu um sistema de supremacia judicial em sentido material (ou definitiva), de maneira que seus pronunciamentos judiciais devem ser compreendidos como última palavra provisória, vinculando formalmente as partes do processo e finalizando uma rodada deliberativa acerca da temática, sem, em consequência, fossilizar o conteúdo constitucional.

4. Os efeitos vinculantes, ínsitos às decisões proferidas em sede de fiscalização abstrata de constitucionalidade, não atingem o Poder Legislativo, ex vi do art. 102, § 2º, e art. 103-A, ambos da Carta da República.

5. Consectariamente, a reversão legislativa da jurisprudência da Corte se revela legítima em linha de princípio, seja pela atuação do constituinte reformador (i.e., promulgação de emendas constitucionais), seja por inovação do legislador infraconstitucional (i.e., edição de leis ordinárias e complementares), circunstância que demanda providências distintas por parte deste Supremo Tribunal Federal.

5.1. A emenda constitucional corretiva da jurisprudência modifica formalmente o texto magno, bem como o fundamento de validade último da legislação ordinária, razão pela qual a sua invalidação deve ocorrer nas hipóteses de descumprimento do art. 60 da CRFB/88 (i.e., limites formais, circunstanciais, temporais e materiais), encampando, neste particular, exegese estrita das cláusulas superconstitucionais.

5.2. A legislação infraconstitucional que colida frontalmente com a jurisprudência (leis in your face) nasce com presunção iuris tantum de inconstitucionalidade, de forma que caberá ao legislador ordinário o ônus de demonstrar, argumentativamente, que a correção do precedente faz-se necessária, ou, ainda, comprovar, lançando mão de novos argumentos, que as premissas fáticas e axiológicas sobre as quais se fundou o posicionamento jurisprudencial não mais subsistem, em exemplo acadêmico de mutação constitucional pela via legislativa. Nesse caso, a novel legislação se submete a um escrutínio de constitucionalidade mais rigoroso, nomeadamente quando o precedente superado amparar-se em cláusulas pétreas. (ADI 5105, Relator(a):  Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 01/10/2015)

Logo, conclui-se como absolutamente infundada a afirmação de que haveria qualquer espécie de afronta ao STF, em virtude de o Parlamento reapreciar a questão da prisão em segunda instância.

Pelo contrário, trata-se de dinâmica natural, em que o Poder Legislativo – reverberando forte sentimento e reação social – dará uma palavra consecutiva, no constante e interminável diálogo entre as várias instituições, acerca da melhor interpretação constitucional.

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