"Acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la"
(Tocqueville)

Reflexões sobre a retração das liberdades civis durante a pandemia

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Crises são fenômenos que, sabidamente, acarretam concentração de poder nas mãos do Estado e, consequentemente, retração de liberdades civis.

Os pesquisadores Eric Posner e Adrian Vermeule, em sua influente obra Executive Unbound, chegam a defender que crises só podem ser resolvidas pela alta concentração de funções nas mãos do Poder Executivo, por ser o mais dotado de informações e capacidades de implementação de medidas. Ademais, segundo eles, a exigência de respostas rápidas e num contexto de incerteza, implicam na necessidade de reduzir os mecanismos ordinários de controle. Nas palavras dos autores, crises exigiriam governos “Schmittianos”, em alusão ao teórico Carl Schmitt; e não governos “Madisionianos”, em referência a James Madison, cientista político e jurista defensor de democracias republicanas descentralizadas e com governos limitados, figura importante durante a fundação dos Estados Unidos e principal redator da respectiva Constituição.

Durante a crise do coronavírus, embora seja controverso se os Poderes Executivos de fato atuaram sem amarras legais ou em que medida esses controles foram efetivos, é indubitável que houve uma inédita redução nas liberdades civis. Segundo afirmaram em artigo acadêmico sobre o tema os professores Tom Ginsburg e Mila Versteeg, respectivamente, da Universidade de Chicago e Virgínia: “nunca antes as democracias do mundo experimentaram simultaneamente uma maior contração das liberdades civis como durante a pandemia de 2020”.

O fato provocou a reflexão de inúmeras autoridades de proteção a direitos humanos, bem como pesquisadores da temática. Nesse contexto, o centro de pesquisas da Universidade de Oxford Bonavero Institute of Human Rights elaborou um relatório tratando da situação dos direitos humanos no decorrer das medidas de enfrentamento à pandemia.

O documento é rico em detalhes sobre países específicos. Mas o que parece mais interessante para refletir sobre a situação brasileira são as recomendações gerais.

Na introdução do documento, a pesquisadora de Oxford Liora Lazarus afirma que o momento da pandemia foi de “retrocesso democrático e crescente iliberalismo.” E chama a atenção para o fato de que “o risco claro é que os ataques populistas iliberais aos direitos humanos, ao Estado de direito e aos valores democráticos constitucionais possam se intensificar”.

Algo que pode servir para ilustrar essas afirmações é a afirmação da atual ministra do Direitos Humanos, Damares Alves, de que até maio do corrente ano já contava com mais de 5 mil denúncias de violações a direitos humanos envolvendo governos estaduais e municipais.

A Drª. Lazarus realça que existe o risco de medidas excepcionais, desenhadas para combater o coronavírus, tornarem-se permanentes, e para evitar esse fenômeno é necessária constante mensuração e reanálise quanto a sua necessidade das restrições: “A natureza dessas limitações a direitos precisa ser constantemente avaliada dentro do contexto de saúde pública e sempre testada em face de princípios formais de legalidade e substanciais de proporcionalidade”.

O material relembra que o princípio da legalidade formal exige a promulgação de normas com “qualidade de lei” e que passem por testes exigentes de especificidade no que diz respeito aos poderes coercitivos autorizados.

Conforme ressalta o documento: “A accountability perante o sistema legal é essencial para o cumprimento de medidas excepcionais em conformidade com o Estado de Direito dentro uma estrutura constitucional liberal”.

Mais:

O princípio da legalidade exige que os poderes discricionários sejam rigorosamente especificados nas leis autorizativas e possam ser submetidos a rigorosa revisão judicial quanto a sua legalidade. Isso é inerente à proibição de governos arbitrários e à violação do requisito de reserva legal incorporado ao princípio da legalidade, dentro do regime dos direitos humanos.”

Esse lembrete parece bastante relevante para o o Brasil. De fato, após decisão do STF que entregou amplos poderes a Governadores e Prefeitos sem deixar claros os limites e requisitos para seu uso, várias medidas do mais alto grau de restrição foram impostas no país por chefes de Poder Executivo estadual e municipal ou até mesmo por juízes, sem qualquer lei de amparo, simplesmente mediante decretos ou decisões monocráticas desprovidas de quaisquer balizas. Lamentavelmente, a nosso ver, sob a retórica da crise sanitária, medidas dessa espécie foram constantemente validadas pelo judiciário.

De fato, mesmo que se entenda que Estados e Municípios possuem poderes para limitar alguns direitos fundamentais no contexto de combate a crises pandêmicas, é necessário que as entidades da federação tenham uma base legal clara para suas ações. Assim, ou elas atuam com base na legislação federal (que no caso do COVID não previa medidas de isolamento horizontal e lockdown); ou editam leis por meio de seus poderes legislativos, as quais deverão prever quais poderes poderão ser exercidos pela chefia do Executivo e em quais circunstâncias. Contudo, de modo geral, isso não foi respeitado no Brasil.

O documento de Oxford possui uma passagem específica sobre o lockdown, no qual a professora Liora Lazarus explica que, quanto às medidas que o Estado impõe para combate da pandemia:

é imperativo privilegiar os meios menos coercitivos pelos quais a saúde pública pode ser alcançada. Durante a vigência das ordens de lockdown, os Estados responsáveis devem demonstrar que buscaram todos os meios possíveis para ampliar a capacidade de saúde médica, financiar pesquisas de emergência, aumentar os testes e examinar medidas alternativas para limitar a propagação da doença. Em resumo, limitações excepcionais aos direitos humanos devem ocorrer apenas quando não houver alternativa adequada capaz de proporcionar uma proteção semelhante à vida e ao acesso à saúde. Ademais, essa avaliação de que a medida de bloqueio se justifica tem de ser temporária, de modo que mecanismos alternativos precisam ser avaliados como uma maneira de amenizar as restrições. Embora medidas extremas de bloqueio possam ser justificadas por curtos períodos no princípio do surto, o Estado deve procurar alternativas (como aumentar a provisão de testes e capacidade de atendimento) à medida que a pandemia progride. Não se pode confiar indefinidamente apenas em medidas extremas.”

A lição também é importante para o Brasil, visto que alguns governos estaduais estenderam ordens de isolamento vertical durante longos períodos, adotando tais diligências não como algo provisório, mas quase como estratégia ordinária e permanente de enfrentamento da doença.

Ainda quanto à duração de medidas excepcionais:

“(…) a temporariedade de medidas extraordinárias e a frequência das revisões democráticas programadas é um elemento essencial dos direitos humanos em relação à estrutura para a condução de emergências em saúde.”

Sobre essa questão da temporariedade, é interessante lembrar que, em vários estados e municípios, tentativas de redução das restrições, após meses de isolamento, e mesmo diante de planos responsáveis de reabertura, esbarraram em resistências junto a setores do Ministério Público e do Judiciário. A leitura da questão sob a ótica dos Direitos Humanos, no entanto, ressalta o necessário caráter extraordinário e transitório de medidas com tamanho impacto sobre relevantes direitos fundamentais e liberdades civis. Os standards de direitos humanos não impõem uma resposta pronta ou um limite cartesiano de tempo, mas exige essa constante averiguação e busca pelo uso dos mecanismos menos restritivos.

Conforme já registramos em outro artigo, cremos que houve uma abordagem midiática durante a pandemia que foi na contramão dessa perspectiva, transmitindo a impressão de que a única ferramente responsável para enfrentamento do coronavírus era a imposição de isolamento severo e duradouro.

Para além da temporariedade, o relatório também trata dos instrumentos legais utilizados para deflagrar restrições a liberdades civis. O texto afirma que o uso de mecanismos de exceção (como Estado de Sítio), traz o risco de autorizar poderes para além daqueles estritamente necessários para fazer frente à questão sanitária. Por outro lado, mecanismos dessa natureza, tem o benefício de que, em regra, as constituições impõem limitações de tempo e forma para sua utilização. Já o uso de medidas restritivas fora do contexto de instrumento de exceção corre o risco de ocorrer sem a previsão de um limite temporal e de requisitos formais compatíveis com sua gravidade.

Assim, a melhor saída parece ser: uso de mecanismos de emergência, definindo exatamente quais poderes poderão ser utilizados. Quanto a isso, a Constituição brasileira parece contar com um desenho institucional adequado para os Estados de Defesa e de Sítio. Embora não tenham sido utilizados no contexto da pandemia, eles possuem requisitos rígidos: o Estado de Defesa tem duração máxima de 60 dias (art. 136, § 2º, da Constituição); enquanto o Estado de Sítio tem de ser renovado a cada 30 dias, exigindo autorização do Congresso Nacional a cada solicitação, sendo que, em cada uma delas, o Presidente tem de indicar exatamente quais poderes serão necessários (art. 138 da Constituição).

O relatório da Universidade de Oxford também chama a atenção para o risco de uso excessivo do direito penal, o qual deve ser utilizado apenas como ultima ratio. O Brasil parece ter enfrentado abusos nesse tocante. Com efeito, houve em vários estados (particularmente São Paulo e Rio de Janeiro) inúmeros relatos de prisões arbitrárias, uso de algemas e força física desproporcional, para dar cumprimento às exigências sanitárias.

Diz o documento da universidade britânica sobre o tema, valendo-se de alguns exemplos concretos:

“Na Rússia, África do Sul e Zimbábue, a criminalização de notícias falsas foi usada (em diferentes graus) para silenciar certas críticas ao governo e a esforços da mídia para manter o governo responsivo. (…) A marca de um sistema compatível com os direitos humanos é o princípio da ultima ratio, tornando o uso do direito penal como o mecanismo de última instância. Consequentemente, os governos precisam resistir ao uso excessivo da lei criminal e das sanções penais para garantir o cumprimento das medidas destinadas à melhoria da saúde.

Além da proporcionalidade das sanções penais, também existem preocupações generalizadas sobre restrições excessivas aos direitos básicos, como a liberdade de circulação.”

O texto, ainda, trata dos riscos à privacidade. Cita como causas de preocupação o uso de drones e o rastreamento de celulares para fiscalizar a população. Nesse contexto, mencionou, ainda, as ameaças de restrição à liberdade de expressão e de manifestação pacífica, que de fato foram brutalmente restringidas no Brasil, como já relatamos em outro artigo.

Por fim, a análise da profª. Liora Lazarus encerra advertindo que o cumprimento dos standards relativos aos direitos humanos demandam em larga medida de transparência“um ambiente de contestação democrática, judicial e científica”. Cremos que essas últimas lições também são bastante válidas para o Brasil, onde parte da discussão sobre o tema foi obstruída, e vários Estados registraram baixa transparência e episódios de corrupção.

Nós, então, encerramos, salientando que ao contrário do que alguns poderiam acreditar, não é irrelevante debater todos esses pontos, mesmo que boa parte da pandemia já tenha sido atravessada. Todas essas experiências e sua análise crítica terão valor para o futuro, servindo como um repositório de diálogo e ideias para vindouros enfrentamentos a crises sanitárias ou de qualquer outra natureza.



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