"Acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la"
(Tocqueville)

Em decisão contra Bolsonaro, TSE compactua com discurso do ódio e baixo nível do debate no Brasil

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José Cruz/Agência Brasil
José Cruz/Agência Brasil

No dia 4 de setembro, última 3ª f., o Tribunal Superior Eleitoral, em decisão que reputamos incorreta e lamentável, negou direito de resposta ao candidato Jair Bolsonaro diante de agressiva charge publicada no blog de Ricardo Noblat, hospedada no site da Revista Veja, e reproduzida no perfil do Twiter do blogueiro, associando o presidenciável às figuras autoritárias de Hitler e Mussolini.

Em sua decisão, o Tribunal afirma que “o material impugnado pelos representantes é uma charge, que, como antes indicado, associa o nome do primeiro representante a personagens históricos identificados com regimes não democráticos e com violações aos direitos fundamentais da pessoa humana. Nesse contexto, é possível presumir, sem maior esforço de interpretação, que o chargista e o jornalista que reproduz tal material em seu blog querem expressar crítica às posições do candidato nesses dois temas, o que se coloca no campo da liberdade de expressão e de opinião”.

A decisão é condenável. Primeiro, porque juridicamente equivocada; segundo, porque os efeitos da conduta autorizada pelo julgado são perniciosos para a democracia.

Inicialmente, o art. 58 da Lei 9.504/97 dispõe que “a partir da escolha de candidatos em convenção, é assegurado o direito de resposta a candidato, partido ou coligação atingidos, ainda que de forma indireta, por conceito, imagem ou afirmação caluniosa, difamatória, injuriosa“.

Percebem-se daí duas coisas:

1) a liberdade expressão não impede a responsabilização posterior bem como o direito de resposta, vedando de modo terminante apenas a censura prévia;

2) impõe-se o direito de resposta quando a manifestação transpõe os limites da crítica e transborda em agressão que calunie (ou seja, atribua injustamente conduta criminosa), difame (isto é, atribua conduta desonrosa) ou injurie (o que significa conferir qualidade, não conduta, negativa).

No caso concreto, o fato de atribuir ligação com líderes dos regimes nazi-fascistas é, obviamente, difamatório. Trata-se de regimes tirânicos responsáveis pela morte de milhões de pessoas, experimentos com seres humanos, e solapamento das instituições democráticas em seus países. Saliente-se, inclusive, que a lei brasileira, no § 1º do art. 20 da Lei 7.716/89 criminaliza a apologia ao nazismo.

Logo, a associação de pessoas com tais personagens por meio de charge é extremamente difamatória e injuriosa.

Frise-se que até se poderia admitir que, por meio de razões e argumentos, se afirme que elemento X ou Y do discurso, das propostas ou da conduta de um candidato é semelhante aos de um figura historicamente execrada.

Porém, o uso de charge sem distinguir os caracteres criticados, associam a pessoa de modo geral ao personagem, tendo inegável caráter injurioso e difamatório.

Além disso, como aprofundaremos a seguir, as consequências da decisão são péssimas para a democracia, ao compactuar com a polarização e agressividade crescente, e conceder ainda mais influência aos detentores de poder econômico e midiático.

Decisão permite escalada do ódio e compactua com baixo nível do debate brasileiro

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A decisão do TSE basicamente permitiu o uso de elementos de comunicação apelativos, que atingem muito mais a emoção do leitor (como uma charge envolvendo um tirano responsável por milhões de homicídios), do que sua razão. Ou melhor: atingem apenas sua emoção.

Quando a decisão diz que “‘todas as questões de interesse público – incluindo, é claro, a capacidade e idoneidade dos candidatos e a qualidade de suas propostas – sejam abertas e intensamente questionadas’”, ele está corretíssimo. Porém, questionar aberta e intensamente equivale a apontar razões e argumentos pelos quais se acredita que determinado candidato ou proposta é ruim ou falho.

A charge em questão não faz nada disso. Por seu teor simbólico ele acaba sendo extremamente simplista, com mensagem intelectualmente confusa, principalmente para os leitores mais vulneráveis. Ela acaba apelando muito mais para o sentimento causado pela figura, transferindo o ódio do personagem utilizado para o candidato, do que causando uma crítica construtiva e racional que enriquecesse o debate.

Seu único efeito, basicamente, é inflamar opositores e ofender apoiadores.

Agora: se a ofensa não encontra resposta pelo sistema jurídico-institucional, a consequência mais provável é que esses apoiadores, então, busquem retorquir a agressão por conta própria, o que acabará numa escalada infinda de violência e brutalidade.

O resultado é a deterioração do embate político, mais focado em agredir pessoas que criticar propostas; destruir reputações que apresentar caminhos; ofender a honra que responder perguntas. Uma imagem clara do que tem acontecido no Brasil e, a nosso ver, é favorecido por decisões como essas.

Sobre isso, falamos em outro post, no qual descrevemos os efeitos negativos desse processo:

“O debate político tende a passar por um processo de deterioração à medida que as eleições se aproximam.

A tática de se utilizar de expressões grosseiras tende a ser utilizada como modo de aproveitar o clima de polarização que cercam as eleições.

O fenômeno tem efeitos negativos: primeiramente, desloca a atenção do principal: as ideias e propostas; em segundo lugar, envenena as discussões, convertendo-as em trocas de ofensas, acirrando polarizações e fanatismos; por fim, gera a tendência a uma escalada de insultos, irracionalidade, e consequente perda de qualidade no debate político.”

Decisão favorece detentores de poder econômico e midiático

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A capacidade de desferir ofensas sem ser punido representa um poder enorme por uma razão muito simples. Proferir mensagens aptas a promover o ódio a um candidato acaba por alavancar sua rejeição. Quanto mais isso é feito por meios simbólicos, mais irracional o processo cognitivo, maior o impacto principalmente pelo eleitor menos apto a racionalizar e verbalizar suas opiniões.

Ocorre que à medida que a eleição se aproxima os candidatos tendem a migrar para “o centro” em termo de propostas, tornando-se muito semelhantes uns aos outros, ao menos aqueles que se veem como competitivos. De fato, os candidatos tidos como competitivos tendem a ter uma fatia dos eleitores já conquistada irreversivelmente, e outra que sabem ser impossível conquistar. Então, lutam pelos eleitores no centro do espectro político. É isso que, durante o período eleitoral, causa aquela sensação no eleitor de que todos parecem “mais do mesmo”.

Isso tem como efeito que o resultado das urnas muitas vezes acabe sendo decidido pelo nível de rejeição.

Permitir que os veículos de mídia, ou candidatos mais próximos a eles, se valham desses métodos é uma posição que acaba concentrando enorme quantidade de poder nesses veículos, o que pode se revelar num problema para a democracia.

Conclusão

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Se queremos ter uma democracia madura, que promova o entendimento esclarecido e a participação efetiva do maior número de pessoas possível, devemos primar por instituições jurídicas e interpretações dos dispositivos de lei que favoreçam esses efeitos, tendendo a controlar a irascibilidade e irracionalidade das paixões políticas.

Ademais, temos de primar pelos direitos e sua efetiva proteção jurídica, entre eles o direito à honra, de modo a provocar o deslocamento dos debates para um eixo construtivo e propositivo.

Acreditamos que a decisão aqui criticada não faz isso.

Ela protege de modo insuficiente a honra, por permitir o discurso injurioso e difamatório, além de ser conivente com a escalada do ódio agressivo e conceder poder desproporcional a veículos de mídia e candidatos deles mais próximos.

Como dizia Mahatma Gandhi, “temos de nos tornar na mudança que queremos ver.” Esperamos que o direito eleitoral brasileiro enverede por esse caminho.

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