"Acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la"
(Tocqueville)

Fala de Weintraub em reunião ministerial não configura crime

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Marcos Correa - PR

Na fatídica reunião ministerial de 22 de abril deste ano – divulgada em sua integralidade pelo Ministro Celso de Mello, de modo aparentemente abusivo visto que a maior parte do conteúdo não tinha relação com o processo que resultou na apreensão do material –, o Ministro da Educação, Abraham Weintraub, fez a seguinte declaração: “Eu, por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia. Começando no STF”

Dada a forma pouco polida com que o ministro se referiu ao Tribunal, passou a haver inúmeras divagações acerca de possíveis consequências penais das palavras do ministro.

Afinal de contas: quais desdobramentos criminais que a fala pode ter? Absolutamente nenhum.

Explico por quê.

Mas antes gostaria de deixar claro que aqui não irei sequer cogitar a opinião que me parece mirabolante de que poderia haver um crime contra a segurança nacional na gravação, particularmente os artigos 18, 22, e 23 da respectiva lei. De fato, a simples cogitação de tal enquadramento parece-me completamente desligada da realidade e absurda. Assim, opto por me manter distante de tais elucubrações. Realmente, é necessário ter uma imaginação mais fértil do que a minha para conceber a ideia de que o ministro estava em uma reunião oficial gravada conspirando para derrubada violenta da ordem atual ou de alguns dos poderes da república.

Por isso, aqui me deterei à análise sobre eventuais delitos contra a honra. Já adianto: não há crime algum dessa natureza.

A razão é simples. A proteção penal da honra em nossa legislação é de duas espécies: há dispositivos legais que protegem a chamada honra objetiva e a honra subjetiva.

A honra objetiva é a consideração que os outros têm pela vítima. Essa espécie de honra é ofendida, basicamente, quando uma pessoa fala mal de alguém para um terceiro, podendo fazer com que esse terceiro tenha menor apreço pela vítima. É a honra que a vítima goza perante os demais.

Há duas figuras no Código Penal (no jargão jurídico chamamos tipos penais) que protegem essa espécie de honra: calúnia (art. 138 do Código Penal) e difamação (art. 139 da mesma lei). Aqui cabe uma ressalva quanto a meu comentário de que não haveria a menor chance de a fala do ministro incidir na Lei de Segurança Nacional. É que há uma previsão específica para o crime de calúnia e difamação contra o Presidente do STF (art. 26 daquela lei). Esse tipo específico seria, realmente, cogitável.

Esses delitos poderiam ter ocorrido. Com efeito, como eles visam proteger exatamente contra atos que reduzam o prestígio da pessoa perante terceiros, ele pune precisamente que alguém, grosso modo, “queime o filme” de outra pessoa.

Só que não é qualquer “queimada de filme” que incide nesses tipos penais. De modo algum. Do contrário incorreríamos num moralismo penal autoritário.

O tipo de difamação exige se impute fato ofensivo à reputação. Logo, não basta imputar atributos. Não é difamação dizer para Ciclano que “Fulano é vagabundo”. Você tem de imputar um fato. Por exemplo: “Fulano do STF não faz o trabalho direito e fica matando o trabalho na internet o dia todo, atrasando processos relevantes e prejudicando direito de pessoas”. Algo desse tipo. Obviamente, a imputação tem de ter relevância suficiente para autorizar o uso do aparato coercitivo do Estado.

No caso do crime de calúnia não é diferente: o autor do delito tem de imputar fato(s). Há aqui apenas uma especificação e uma diferenciação: um, o fato imputado tem de ser considerado crime; e, dois, a imputação tem de ser falsa. Ou seja, não basta dizer: “Fulano é irresponsável”. É preciso dizer algo como: “Fulano falta o trabalho, valendo-se de atestados falsos” (sendo que o atestado é verdadeiro, ou Fulano simplesmente jamais faltou ao trabalho).

Logo, ainda que do ponto de vista moral, as palavras de Weintraub possam ter ofendido a honra objetiva de pessoas que trabalham no STF, ele não cometeu quaisquer dos delitos que tutelam essa espécie de honra.

E a chamada honra subjetiva? Essa não se refere à opinião que os outros têm da vítima. Mas a opinião que ela tem de si mesma. É, de certo modo, a autoestima da pessoa. Essa honra é tutelada pelo tipo penal de injúria, previsto no art. 140 do Código Penal.

No crime de injúria não se exige que o autor do delito atribua fato, basta que ofenda de qualquer maneira a dignidade da pessoa, o que, obviamente, pode ser feito imputando atributos a ela.

Só que neste caso, como o que se tutela é a autoestima, é necessário para a configuração do crime que o autor queira ofender a pessoa, rebaixando sua autoestima. Em direito chamamos a isso de dolo. É preciso ter o dolo de injuriar. Ora, uma pessoa só pode ter sua autoestima reduzida se ela ficar sabendo da ofensa. Se você no seu quarto fechado atribui algo ofensivo a alguém a pessoa não será ofendida. Por isso, não haverá ilícito penal.

Logo, para que se configure o crime de injúria exigem-se duas coisas. Primeiro, que a ofensa tenha vítima definida, não basta atribuição genérica, você tem de individualizar a(s) vítima(s). Cito aqui precedente do STJ a respeito, no julgamento do HC 30.095/GO: “Palavras ou expressões ofensivas que não atinjam pessoa certa e determinada, não podem configurar os delitos de injúria e difamação” Em segundo lugar, a ofensa tem de ser direcionada à pessoa que se quer ofender, você tem de querer (ter o dolo de) que a ofensa chegue a ela.

No caso concreto, nenhuma dessas exigências está atendida. Weintraub não individualizou qualquer vítima. Ele falou de forma genérica: “começando no STF”. Ninguém sabe exatamente de quem ele estava falando. Ademais, a reunião era fechada e classificada como sigilosa, de modo que não havia, de modo algum, a intenção (dolo) de ferir a autoestima de alguém no STF, porque é impossível ofender a autoestima sem que a vítima tome conhecimento da ofensa.

Por essas singelas razões, o fato é penalmente irrelevante. Você ou qualquer outro pode achá-lo política ou moralmente relevante. Mas do ponto de vista penal não, visto que não houve qualquer crime.

É assim que a conduta será interpretada? Impossível dizer. Num país em que um parlamentar com imunidade pode ser processado por apologia ao estupro quando criticava um estuprador, e em que jornalistas podem ser alvo de operações policiais por levantarem hashtags no Twitter, tudo é possível. Digo o direito; mas, dependendo de interpretações do STF, ninguém mais é capaz de prever o futuro.

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