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A cena comumente se repete na televisão: ao relatar a história de um crime grave, como um homicídio, a reportagem se encerra com algum parente ou amigo da vítima dizendo: “só o que eu quero é justiça”. Na perspectiva de quem sofreu a perda de um dos seus, é como se tivesse havido um desencaixe da ordem natural das coisas. Algo passou a estar errado, fora do lugar, e a punição do criminoso funciona como uma vaga tentativa de restabelecimento da ordem – ainda que de forma incompleta, uma vez que, independentemente de haver ou não punição, a perda em si não se reverte, o que torna esse tipo de crime, em sua essência, irreparável.

Ainda que se expresse o clamor por justiça, via de regra esse pedido camufla um desejo mais basilar, que é o desejo de vingança. Nada mais natural e humano: já há algum tempo, cientistas e pesquisadores de diversos ramos da ciência têm aderido a uma explicação evolutiva para entender como a vingança pode ser considerada como um dos elementos estruturantes das sociedades humanas.

Do ponto de vista evolutivo, o sentimento de vingança tem uma utilidade bastante prática: evitar que um indivíduo (especialmente se mais fraco) seja explorado pelos demais (notadamente mais fortes ou poderosos). A fato de saber que o outro provavelmente revidará se for cometido algum abuso, de violência ou poder, serve como freio para evitar comportamentos inadequados – seja como recado para que alguém que cometa algum abuso não repita o ato, seja alertando os demais membros do grupo. Demonstrando que a vingança serve como um sinal de caráter coletivo, pesquisadores da universidade de Berkeley identificaram que, quando há uma discussão na rua entre dois homens, a mera presença de uma terceira pessoa no local dobra as chances de a discussão migrar para a violência física. 

Além de elemento de defesa, a vingança serve também como estímulo à cooperação. Como se sabe, o êxito do ser humano na escala evolutiva é baseado na cooperação. Ao cooperar, melhoramos nossa eficiência na busca por alimento, na fuga de predadores e na proteção do grupo como um todo. Mas, para funcionar, a cooperação tem de ser recíproca, ou como preferem os cientistas da evolução, baseada no altruísmo recíproco. Na prática isso significa que, por regra, os membros do grupo punem os chamados “free riders”, aqueles que querem obter benefícios da cooperação em grupo, sem contribuir para o resultado. 

O sociólogo americano Edward Alsworth Ross, um dos pioneiros em estudos sobre criminologia, cunhou, em 1901, o conceito sociológico de controle social. Na concepção de Ross, o ser humano herda quatro instintos: simpatia, sociabilidade, senso de justiça e ressentimento ao mau trato. É com base nesses elementos de cooperação é que se cria um senso de justiça reconhecido de forma praticamente universal.

“A não credibilidade das instituições e a sensação de impunidade promovem no cidadão a noção de que ele não tem a que instância recorrer”

Joyce PescaroloDoutora em Sociologia, pesquisadora do Centro de Estudos em Segurança Pública e Direitos Humanos da UFPR

Estudiosos das ciências comportamentais e especialistas em teoria dos jogos relatam diversos experimentos que demostram que as pessoas (assim como macacos e outros primatas), quando têm a chance, punem aqueles que ferem esse senso comum de justiça. Em dezembro de 2017, neurocientistas europeus publicaram, na revista científica Nature, um estudo mostrando que chipanzés e crianças com menos de seis anos de idade abrem mão de benefícios em troca do mero prazer de assistir a punição de colegas com comportamentos considerados antissociais (ou não cooperativos). 

Em teoria dos jogos, há um experimento chamado “jogo do ditador”, no qual a uma pessoa é dada a oportunidade de dividir um prêmio entre ela e um outro, na proporção que desejar. Ao outro, cabe apenas a decisão de aceitar a divisão proposta – ou recusá-la e ficar sem nada. O pensamento racional seria aceitar qualquer coisa, pois, racionalmente, qualquer coisa é melhor do que nada. Mas os estudos demonstraram que se a divisão não for minimamente justa (perto da metade), a maior parte das pessoas prefere ficar sem nada do que ser “injustiçado”. Em outra versão do experimento, na qual quem sofreu a “injustiça” não pode fazer nada, se for dada a um terceiro a chance de punir o primeiro que fez a divisão e beneficiou a si mesmo desproporcionalmente, essa pessoa irá fazê-lo, mesmo que isso implique um custo para ela (mesmo que ela não tenha sido pessoalmente prejudicada). 

Estudos feitos pela equipe do professor Mario Gollwitzer, da Universidade de Marburg, na Alemanha, mostraram que a predileção de se fazer justiça, ainda que com algum custo individual concreto, é ainda maior quando se permite que a pessoa que sofre a punição saiba exatamente a razão pela qual está sendo punida. Ou seja, demonstrou-se que o ato de fazer justiça, além de ter um caráter punitivo, tem também um caráter pedagógico. Todos esses estudos e experimentos indicam que fazer justiça é mais importante do que apenas promover a vingança, uma vez que o senso compartilhado de justiça costuma ser maior do que o sentimento pontual de vingança.

O poderoso chefão

Além desse aspecto ontológico, a justiça institucionalizada tem uma característica adicional, e ainda mais vantajosa, que é o de interromper um ciclo de retaliação. Desde a literatura de Shakespeare, com as famílias dos Capuletos e dos Montecchios em Romeu e Julieta, até a disputa da família Corleone com outros mafiosos em O Poderoso Chefão, sabe-se que a vingança tem o potencial de se estender indefinidamente, pois cada crime é revidado por um novo crime, em uma espiral que pode não ter fim.

Para isso há também uma explicação neurológica: em situações de punição, quem sofre um ato valoriza mais seu impacto do que quem o pratica. Um estudo conduzido por Arlene Stillwell, da Universidade de Nova York, mostrou que, em situações semelhantes, quem sofre uma punição por vingança costuma achar que sua pena foi desproporcional ao ato original, enquanto quem puniu tende achar que a resposta foi adequada. Como as perspectivas são diferentes, cada ato considerado inadequado gera o potencial para um novo revide: é a espiral da vingança.

Por essa razão, a aplicação da justiça de forma institucionalizada tende a frear essa espiral, uma vez que quem aplica a pena é um terceiro – e não quem sofreu a primeira agressão. Além disso, a institucionalidade prevê a proporcionalidade da pena, em contraste com a vingança direta, que, dependendo do caso, pode ser, ao calor do momento, mais violenta do que o próprio crime original. 

Conquista civilizatória

A lei escrita mais antiga de que se tem notícia é lei de talião, encontrada no Código de Hamurabi, datado de 1780 a.C., no reino da Babilônia. Ela consiste na rigorosa reciprocidade do crime e da pena – apropriadamente chamada de retaliação – e é expressada pela máxima: “olho por olho, dente por dente”. No decorrer dos anos, com o desenvolvimento da sociedade e o processo de maturação do Direito, aos poucos o conceito de reciprocidade direta foi sendo substituído pela ideia de proporcionalidade da pena. Um homicídio, por exemplo, em vez de ser punido sempre com a morte, passou a ser, na maior parte das sociedades, passível de prisão. Dessa forma, em lugar de igualar-se ao criminoso, causando uma nova morte, a aplicação da justiça, ao tirar a liberdade do criminoso, atua de três formas simultâneas: indica ao criminoso que não vale a pena repetir o ato; retira, ao menos temporariamente, o criminoso do convívio social; e passa uma mensagem aos demais integrantes da sociedade que o crime não compensa.

Essa mudança de entendimento significa um avanço civilizatório, mas, para que seja de fato entendida e aceita pela sociedade, é preciso que a aplicação da justiça seja eficaz – e que não exista a percepção de impunidade. Para a psicóloga Joyce Pescarolo, doutora em Sociologia e pesquisadora do Centro de Estudos em Segurança Pública e Direitos Humanos da Universidade Federal do Paraná, se as instituições forem falhas, e quanto menos legitimidade tiverem, mais os indivíduos se sentem desprotegidos e inseguros em recorrer a essas instituições – o que leva as pessoas a, em alguns casos, agir individualmente para tentar fazer justiça. “O cidadão não confia na polícia, acha a polícia corrupta e ineficaz, considera o sistema jurídico moroso, que privilegia determinados segmentos da população em detrimentos de outros e observa o baixo número de casos solucionados no Brasil”, analisa a professora. “A não credibilidade das instituições e a sensação de impunidade promovem no cidadão a noção de que ele não tem a que instância recorrer”, diz Pescarolo.

“Na medida em que os cidadãos, descrentes na Justiça e no Estado, decidem se igualar aos supostos criminosos que buscam justiçar, a lei perde força, e com ela a própria ideia de Estado”

Gabriel CarvalhoDefensor público no estado de Minas Gerais

“Tenho a impressão que as pessoas se sentem justiçadas quando o criminoso vai preso e efetivamente fica preso um tempo”, diz Gabriel Carvalho, defensor público no estado de Minas Gerais. “O problema é que confundem prisão com condenação e com pena. A pena é cumprida apenas parcialmente em regime fechado e a progressão de regime dá nas pessoas a sensação de impunidade, justamente porque não entendem que a principal função da pena não é a retribuição ou vingança, mas a prevenção, seja pela intimidação geral, seja pela neutralização específica daquele indivíduo”, explica o defensor.

Na análise da pesquisadora Joyce Pescarolo, a grande desigualdade social que existe no país dificulta o processo de identificação de uns indivíduos com os outros. Isso faz com que parte das pessoas vejam criminosos não como um ser humano igual, com suas fraquezas e potências, mas sim como um ser menor, menos importante e a cuja vida não se atribui o mesmo valor. Esse sentimento dificulta o estabelecimento de empatia e isso faz com que se permita aceitar a existência de grupos de extermínio ou linchamentos, expressões bárbaras e extremas da tentativa de se fazer justiça com as próprias mãos. O sociólogo José de Souza Martins, professor de Sociologia da Universidade de São Paulo tem avaliação semelhante: “Minha pesquisa revelou que os linchadores lincham porque a violência que os motiva já desumaniza a pessoa que a praticou”.

O professor Martins é autor do livro “Linchamentos: a justiça popular no Brasil”, no qual analisa mais de duas mil ocorrências de linchamentos no país, em um período de 20 anos. De acordo com o pesquisador, nem sempre linchamentos são motivados por sentimento de vingança, mas por impulso de justiçamento. “Na maioria dos casos os membros da multidão formada ao acaso para linchar nem conhecem a vítima do linchado, que os motiva”, diz. “Minha pesquisa revelou que, em prazo curto, linchamento em determinado lugar (cidade ou bairro) tende a ser seguido por outros linchamentos. Revelou, também, que a prazo mais largo o tipo de delito punido com o linchamento tende a desaparecer daquele lugar”, explica Martins. “Linchamentos são práticas violentas socialmente autodefensivas, cujo efeito, aqui e em outros países, tende a ser normativo, estabelecendo ou restabelecendo a ordem social”, conclui o professor da USP.

A psicóloga Joyce Pescarolo explica que o instinto de violência é natural ao ser humano. “Nós fomos domesticados, mas temos todo o potencial do mundo para sermos violentos”, diz. “A socialização é uma renúncia a isso, o que causa, de saída, um mal-estar no processo civilizatório”, analisa Joyce. “Mas ao mesmo tempo a civilização significa uma proteção. É um pacto: nós renunciamos a um desejo de prazer e satisfação pela violência em troca do benefício de são sofrer do outro a mesma violência”, explica a pesquisadora. 

Na visão de Gabriel Carvalho, a ideia de Estado pressupõe ser ele o único legitimamente autorizado a usar a força contra seus cidadãos. “Desde que se chegou à conclusão de que a existência de leis e seu cumprimento permitem o desenvolvimento da sociedade, o monopólio da força é a forma de o Estado fazer prevalecer estas leis”, analisa. “Na medida em que os cidadãos, descrentes na Justiça e no Estado, decidem se igualar aos supostos criminosos que buscam justiçar, a lei perde força, e com ela a própria ideia de Estado”, diz o defensor público.

Para além disso, explica Gabriel Carvalho, “o desenvolvimento da sociedade nos legou regras e princípios humanitários cujo desrespeito acaba por prejudicar os próprios cidadãos que se acham no direito de fazer justiça à revelia da lei”, diz. “Séculos de desenvolvimento de um processo penal, que tem o objetivo de assegurar que injustiças não serão cometidas, são jogados na lixeira por pessoas que ouviram dizer que alguém cometeu um crime e nisso justificam sua sede de vingança”, analisa o defensor. “O resultado é o de sempre: retrocessos em nosso nível civilizatório, incremento da sensação de insegurança, inocentes linchados rotineiramente e o esfacelamento da lei como cimento da sociedade, único meio até hoje conhecido capaz de assegurar um mínimo de segurança contra a barbárie”, conclui.

Alheios ao estado, tribunais do crime criam justiça paralela

Se a descrença na institucionalidade estimula o desejo de se fazer justiça com as próprias mãos, as relações sociais constituídas de forma alheia ao Estado, como é o caso do crime organizado, também constroem, à sua própria maneira, mecanismos de aplicação da justiça e de se fazer cumprir as regras estabelecidas, ainda que sejam informais. Um exemplo marcante é a existência de “tribunais do crime”, que costumam ocorrer entre integrantes de grupos criminosos que funcionam totalmente à margem da sociedade – e, por consequência, da institucionalidade jurídica. 

Não há estatísticas oficiais sobre esse tipo de crime, mas um levantamento feito pelo portal de notícias G1 mostrou que, em 2017, somente no estado de São Paulo, houve pelo menos 42 mortes cometidas por criminosos em uma espécie de julgamento paralelo. Os mecanismos costumam imitar a estrutura jurídica: se há a suspeita algum desvio da conduta esperada pelos criminosos, faz-se um julgamento do caso. Ao acusado é dado o direito de defesa, eventuais vítimas ou testemunhas se manifestam. Só que o rito é sumário: a sentença é dada imediatamente – e cumprida na sequência. 

“Eu não sabia que isso existia, achava que era uma lenda, mas de fato existe”, diz Camila Umpierre, que há dois anos atua como defensora pública no estado de Minas Gerais. De acordo com a defensora, cada facção criminosa têm uma espécie de código de postura, que inclui, por exemplo, a proibição de se aproximar da mulher de outro integrante de facção, ou de cometer estupros. “O estupro costuma ser punido mesmo que não se conheça a vítima”, conta a defensora. “Isso às vezes não é bem evidente no processo, pois os acusados quase sempre negam as acusações, mas fica subliminar”, diz Camila. Segundo ela, é comum em algum momento do processo alguém dizer que tal pessoa morreu porque estava “caminhando errado”. “Mais do que uma punição, às vezes a morte é um aviso aos demais”, diz.

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