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| Foto: Dorivan Marinho/SCO/STF

A tecnologia torna ultrapassado imaginar pilhas de papeis se acumulando, mas essa é a representação mais adequada para a Suprema Corte brasileira quando o assunto é o número de processos que ali se encontram. A instância máxima da Justiça brasileira recebe, em média, 70 mil ações por ano – e embora boa parte delas já tramite via Processo Judicial Eletrônico, muitas outras ainda correm no papel, já que existem desde antes mesmo do advento dos meios digitais. É o caso da mais antiga ação do Supremo Tribunal Federal (STF): um conflito entre o estado de São Paulo e a União sobre a propriedade de terras do interior paulista e que já dura 49 anos, sem previsão de fim. 

Atribuir a lentidão do STF ao enorme volume de processos, no entanto, pode ser equivocado. Ainda que a quantidade de trabalho seja realmente considerável, outras causas contribuem para essa morosidade, como o fato de o tribunal ter que analisar assuntos além dos constitucionais. Aliem-se a isso também a conduta dos ministros e a ausência de uma cultura administrativa para tratar de assuntos judiciários – presente não apenas no STF, mas em toda a estrutura da Justiça no país – e temos a receita perfeita para a ineficácia, a prescrição das ações e a impunidade.

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Por definição, cabe ao STF, desde sua criação em 1828 com o nome de “Supremo Tribunal de Justiça”, a salvaguarda dos valores constitucionais, o julgamento de conflitos entre estados ou entre os estados e a União e de ações penais em que o réu ocupa certos cargos públicos. Até hoje, essas são chamadas ações de competência originária da Corte. Os 11 ministros, porém,  também têm sido responsáveis por julgar pedidos de extradição, de habeas corpus e de habeas data e, pelo menos, uma dezena de outras situações mais. Isso explica a origem das milhares de ações ao ano e torna o STF brasileiro uma Corte incomum, se comparada às equivalentes em outros países democráticos.

‘É um equívoco dizer que a Suprema Corte dos Estados Unidos recebe pouquíssimos casos. Ela recebe milhares de casos, chegando até a uma dezena de milhares. Só que a Suprema Corte americana tem, desde a década de 1910, a seu favor, uma lei federal que diz que ela pode filtrar sua competência recursal e dizer o que ela vai e o que não vai examinar’, afirma Paulo Blair, professor de Direito, Estado e Constituição da Universidade de Brasília.

A Corte norte-americana “não precisa nem justificar o porquê não examina, ela simplesmente devolve. Aqui, as competências nossas e as condições de conhecimento de recursos estão definidas na Constituição e em leis federais tão rígidas que fica complicado para o STF tratar desse filtro como um filtro muito eficiente”.

Blair explica que, mesmo quando o STF rejeita uma ação ou recurso, isso gera nova carga processual e ainda cabem recursos. “Se você chegar num gabinete de ministro, tem um verdadeiro exército de assessores trabalhando de manhã, de tarde e muitas vezes de noite. O volume de trabalho dos ministros é extraordinário, é impressionante, e na prática nós ficamos desse jeito que estamos aí. Existem alguns processos no STF que, realmente, por força desse desenho institucional, estão lá há décadas”, conta.

Ação de 49 anos

Pelo menos 200 processos têm mais de 20 anos de tramitação no Supremo. Segundo relatório do Conselho Nacional de Justiça (órgão presidido pelo mesmo ministro que dirige o STF, neste momento, Cármen Lúcia), 18,8% das ações que tramitavam na Corte em 2016 caducaram – um total de 2.803.

O mais antigo processo ainda em tramitação é a Ação Civil Originária (ACO) 158. Sozinho, conserva 1.500 folhas de papel em 16 volumes. Trata-se de uma ação em que a União reivindica uma área do interior de São Paulo que o governo estadual entendeu ser terra devoluta e alienou a particulares.

É um caso atípico, mas pode ser considerada exceção que confirma a tese de Paulo Blair, de que a Corte tem atribuições demais. “o caso confirma a análise. Atribuir ao STF competência originária de primeira instância pra tratar desse tipo de ação é algo raro de se ver em qualquer outra democracia. E o resultado disso é esse, é o tipo de processo que pode se prolongar por muito, mas muito tempo”, aponta.

Grandes litigantes e a conduta dos ministros

Para o professor da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo e coordenador do Centro “Supremo em Pauta”, Rubens Glezer, apesar dos números chamativos que cercam o volume de processos, não é verdade a crença de que a população recorre demais ao Judiciário. Ele defende que os ainda poucos que o acessam acabam sendo responsáveis por um grande número de ações.

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“O Brasil vive apenas recentemente o acesso à Justiça, de fato. Apesar de haver uma reclamação do Judiciário e de que se judicializa demais, é muito importante distinguir quem que está no Judiciário. Ele é ocupado muitas vezes por grandes litigantes, que são responsáveis por grande parte dos processos porque geram muitas questões trabalhistas, tributárias, ações lesivas ao consumidor. A gente ainda não tem uma estrutura em que a população se sinta confortável e de fato acesse o Judiciário pra resolver uma grande parte dos seus problemas”, defende Glezer.

Outro fator apontado pelo especialista para a morosidade da Corte é a conduta dos ministros. Todos têm autorização para julgar monocraticamente, ou seja, sem que o assunto passe por deliberação colegiada: “como os ministros se sentem à vontade para seguirem, cada um, a sua orientação ideológica ao julgar monocraticamente, vale a pena você arriscar. Você pode ter a sorte de o processo cair com um ministro que acolha ao seu pedido. Essa atuação individual dos ministros é também fator que leva ao aumento do número de processos e, num segundo nível, à morosidade”.

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Em alguns casos, a análise individual é determinante para a definição de conflitos. É o caso da ação que afastou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva do cargo de ministro da Casa Civil e que foi analisada monocraticamente pelo ministro Gilmar Mendes, sem nunca ter sido julgada em plenário ou nas Turmas. Ela perdeu o efeito com o impeachment de Dilma Rousseff.

Para continuar em exemplos envolvendo Lula, Glezer cita o mais recente: o habeas corpus que tentava evitar a prisão do ex-presidente. “Às vezes os ministros estabelecem regras que eles mesmos não seguem. Pelas regras estabelecidas, o HC do Lula não poderia sequer ter sido analisado, mas o próprio Tribunal diz: não pode julgar, exceto quando a gente quer, quando nós aceitamos. Com essa conduta os ministros estimulam que os agentes tentem recorrer ao Judiciário, porque tem uma chance de conseguir o que querem, porque as regras podem ter exceção”, diz.

Foro privilegiado: a solução?

Outra causa comumente apontada pela comunidade jurídica como fator de morosidade do STF é o excesso de ações com foro privilegiado, que devem ser julgadas apenas lá. A recente decisão que restringiu o foro por prerrogativa de função pode resultar em “desatulhamento” dos processos. Ou não.

Rubens Glezer não parece muito confiante: “um dos requisitos é que se trate de crime realizado em decorrência da função. Quais são os crimes que ocorrem em decorrência da função? E a própria postura do tribunal é esperar os casos chegarem e ir dizendo, um a um, o que é e o que não é. Então há um processo inteiro para dizer que está nulo ou pra dizer que está aceito. Isso também gera não só morosidade, como atrai mais processos para o tribunal”.

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Paulo Blair observa que “é óbvio que, como o texto constitucional não mudou, e por se tratar de uma construção interpretativa, sempre vai caber questionamento. No julgamento recente [8 de maio] do ex-ministro Geddel Vieira Lima, já houve uma questão de ordem sobre a competência do STF para julgar aquele caso”, exemplifica. Para ele, esse questionamento pode trazer alguma esperança. “Torço para que o Supremo entenda, a partir de agora, ao enfrentar essas questões, que sua competência para ações penais é para assuntos extraordinários”, disse.

Uma solução? Para Blair, não poderia ser caseira, mas no Poder Legislativo. “Torço pela aprovação da emenda constitucional, que já saiu do Senado, e que acaba com o foro por prerrogativa de função para todos os cargos, exceto para os presidentes do Supremo, do Congresso e da República”, defende. 

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