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O Direito Administrativo brasileiro nasceu no maravilhoso mundo do ato unilateral: manifestação de vontade, por meio da qual a própria Administração Pública cria, modifica ou extingue relações jurídicas. Tais atos repudiavam as pessoas privadas, eis que gerados interna corporis e repletos de atributos extraordinários (imperativos, auto-executórios, com presunção de legitimidade, etc. etc.). Boa parte do sistema administrativo brasileiro pressupõe essa exclusão: não se negocia com a Administração Pública, mas se obedece ao que ela decide sozinha. 

Todavia e muito embora nem sempre nos apercebamos disso, relacionamentos com autoridades públicas expressam séries intermináveis de negociações. Isso é natural. Negociamos todos os dias, nos mais variados cenários e com inúmeros agentes públicos. Isso se dá desde débitos tributários até acordos de leniência, passando pelos procedimentos de manifestação de interesse. Também os pregões eletrônicos são negociações plurissubjetivas, nas quais a Administração faz com que os interessados concorram entre si, uns a pautar as propostas dos outros. Igualmente, o momento das férias dos servidores distribui benefícios que não podem ser livremente concedidos. Se pensarmos na Operação Lava a Jato, estamos a cogitar de técnicas para obter informações que ancorem a discussão e permitam alavancar acordos. 

Enfim, a negociação administrativa faz parte do nosso cotidiano banal. Está na TV e nos jornais. Assim, será que quem estuda o ato administrativo está a tratar do que efetivamente se passa na Administração Pública brasileira? Ou só de parte do que nela acontece? Tenho para mim que os tempos mudaram – e bastante. Parece-me que quem deixa de lado as negociações está ignorando algo de muito sensível, que pode harmonizar as relações e permitir a participação – democrática, por que não? – das pessoas privadas no funcionamento da Administração Pública. Quem faz acordos participa da decisão e fica em harmonia com os demais. 

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Logo, está mais do que na hora de nos esforçarmos em aprender a negociar em Direito Administrativo. Se não o fizermos, as autoridades permanecerão a conduzir sozinhas o processo e a pautar soluções qualificadas pelo imenso poder político e econômico de que dispõem (isso sem se falar na coerção cível e penal). Permanecerão a viver e a se comportar naquele deslumbrante reino em que o príncipe decide sozinho e os súditos só cumprem ordens. 

Como na resposta à tricky-question “onde dormem os gigantes?” (R: “onde eles quiserem”), precisamos desenvolver técnicas que permitam acomodar os interesses das autoridades com os das pessoas privadas, a fim de que todos durmam tranquilos em lugares aconchegantes. Não basta, portanto, aprendermos os requisitos legais, objetivos e subjetivos, dos atos e negócios jurídicos, tal como positivados pelos códigos: é indispensável adquirir habilidade prática para negociar os próprios interesses. 

Mas também aqui há contratempos jusadministrativos aos métodos de negociação tradicionais, que foram desenvolvidos para pessoas privadas negociarem entre si. Afinal, um dos tópicos mais importantes nas mesas de negociação não está só em saber quais são os próprios interesses (o que se ambiciona com o alvará, contrato ou acordo de leniência), mas, especialmente, os da pessoa do outro lado da mesa. Em tese, é viável conhecer o que você deseja ao se sentar na mesa de negociações. Por exemplo, para pagamento de tributos vencidos, é normal pensarmos em parcelas a perder de vista, desconto nas multas, juros menores e índice de correção monetária palatável. 

Porém, é só isso? Essa perspectiva revela algo, mas não a integralidade dos interesses subjacentes. O ideal seria que o pagamento de tributos fosse espontâneo em face do dever cívico de financiar o bem-estar social, mas nem sempre esse é nosso principal motivo. Boa parte das vezes, a execução fiscal impede o desenvolvimento de novos negócios ou a obtenção do financiamento para a casa própria – ou o status necessário para conseguir ser admitido no sofisticado clube de sommeliers que há tanto tempo desejávamos integrar. 

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O importante, no entanto, é saber muito mais do que os nossos próprios desejos. O desafio está em trazer à tona os interesses daquele com quem negociamos. Desvendar tal enigma é essencial. Como Deepak Malhotra, da Harvard Business School, esclarece em seu Negotiating the Impossible, é imperioso descobrir interesses, constrangimentos, alternativas e perspectivas da outra(s) parte(s). Quem está sentado do outro lado da mesa valoriza o quê e por quê? Quais assuntos são flexíveis e quais proibidos? Há alternativas em aberto, presentes ou futuras, caso a negociação não seja fechada? O que se busca com o acordo e onde ele se encaixa na lista de prioridades? Em suma, qual é o espaço de negociação do outro protagonista? Quais são os interesses subjacentes? Mas, se essa investigação é delicada em negociações privadas, assume outra envergadura nas tratativas com autoridades públicas. 

Afinal de contas, a Administração Pública não negocia direitos e interesses de titularidade das respectivas autoridades. Ela não pode abdicar do interesse público, mas precisa se esforçar em descobrir os meios mais eficazes de o atender. No exercício da função administrativa, são manejadas técnicas de concretização do interesse público positivado em lei e tornado mais denso, muitas vezes até específico e minucioso, por meio de regulamentos e contratos. 

Por isso as autoridades públicas são titulares de competência discricionária privativa em determinados assuntos – dentre os quais, a possibilidade de celebrar acordos que prestigiem a lei e o Direito (Lei 9.784/1999, art. 2º, par. ún., inc. I, c/c LINDB, art. 26). Mas, se é verdade que isso implica certa margem de manobra para desenvolver negociações, não revela os interesses verdadeiramente perseguidos. Não nos iludamos, pois o mergulho pode ser mais profundo e nem sempre revela tudo ao nosso redor. 

Por exemplo, é óbvio que a autoridade concorrencial não tem qualquer interesse em poupar participantes de cartel de eventuais sanções jurídicas e econômico-financeiras. Não está à procura de sujeitos a quem possa conceder indultos. No mais das vezes, deseja obter informações que permitam o desbaratamento do cartel e a punição, célebre e adequada, dos demais membros. Porém, pode ser que nem isso seja o principal interesse na negociação: é viável que, se o cartel houver operado em licitações, o mais valorizado seja descobrir quais foram as autoridades envolvidas, qual a tecnologia usada, o modus operandi e a trilha financeira. O escopo não é apenas punir as pessoas privadas que cometeram o ilícito, mas sobretudo fornecer incentivos ao mercado de contratações públicas e impedir que o modelo seja replicado. 

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O mesmo se diga em procedimentos de manifestação de interesse. O investidor privado quer formatar o contrato que melhor se encaixe nas suas perspectivas. Pode ter como objetivo valorizar o nome no empreendimento como marketing e ingressar em setor estratégico, inclusive abdicando de margens de lucro. Ao seu tempo, pouco ou nada disso interessa ao gestor público: este precisa valorizar um modelo que permita o máximo de competição, os menores preços e os melhores bens e serviços (às vezes, com temperos advindos do calendário eleitoral). Muitas vezes, o investidor privado se pergunta: “por que ele não quer rodovias com pistas duplas?”, quando deveria estar se questionando “a tarifa de pedágio pode distribuir riqueza aos menos favorecidos?” Tudo isso orientado por cenários complexos de longo prazo. 

Note-se bem que, em ambos os casos, as situação pode ser ainda mais complexa. Isso porque tais negociações tendem a ser plurissubjetivas (se não em seus sujeitos, quando menos nos respectivos efeitos), dos dois lados da mesa. O acordo de leniência celebrado com autoridades de defesa da concorrência poderá repercutir na CGU, no TCU, no MP, na administração direta, no respectivo mercado, nos acionistas, nas licitações em curso, etc. etc. 

Já o procedimento de manifestação de interesse gera interesses em muitas sociedades, individualmente ou em consórcios, lado a lado com financiadores, usuários e até proprietários de imóveis lindeiros. Isso não pode ser deixado de lado. Mas, se é bem verdade que tudo tem o seu limite e que determinadas informações e prioridades jamais serão compartilhadas, uma coisa é certa: quem negocia precisa se preparar e tentar descobrir quais são os interesses do outro lado da mesa. Não pode abdicar desse esforço. 

Estes rápidos exemplos permitem que constatemos o óbvio: as negociações com as autoridades públicas são essenciais para o eficiente atendimento do interesse público. São técnicas, desenvolvidas à luz do direito, que permitem o seu cumprimento eficiente. Louvemos a história de glórias do ato administrativo unilateral, que bons serviços prestou, mas pode estar a viver o seu crepúsculo.

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