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Na imagem, Penitenciária Central do Estado (PCE), em Piraquara (PR). | Albari Rosa/
Gazeta do Povo/Arquivo
Na imagem, Penitenciária Central do Estado (PCE), em Piraquara (PR).| Foto: Albari Rosa/ Gazeta do Povo/Arquivo

Ao mesmo tempo em que se vive no Brasil um momento ímpar com operações como a Lava Jato, que cumprem o papel de colocar atrás criminosos que antes pareciam inalcançáveis, como políticos e grandes empresários, verifica-se que a grande massa carcerária do país tem cor e classe. É a essa conclusão que chega o pesquisador Victor Martins Pimenta, autor de "Por trás das grades: o encarceramento em massa no Brasil", lançado recentemente pela Editora Revan.

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Pimenta, membro fundador do Laboratório de Gestão de Políticas Penais da Universidade de Brasília (LabGEPEN/UnB), conversou com o Justiça sobre a atual situação do sistema prisional brasileiro, boas práticas e possíveis soluções. O autor também procura desvendar por que a coleta de dados de segurança pública é tão precária no país. Confira a entrevista:

Justiça: Qual é a principal característica do encarceramento no Brasil? 

Victor Martins Pimenta: Se eu tivesse que eleger a principal característica para do encarceramento, ela seria a seletividade: são os negros e pobres que estão presos no país. A chance de um negro ser preso é 66% maior do que um branco. 

Vivemos hoje a ilusão de que houve uma “democratização da prisão”, com operações como a Lava Jato, mas não é verdade. O país tem hoje mais de 726 mil pessoas presas, e é possível contar quase que nos dedos os empresários e políticos presos. O discurso de que a “lei é para todos” acaba neutralizando ainda mais a violação de direitos, o descumprimento de garantias constitucionais e processuais penais. 

No livro, aponto que 73% dos presos no país estão condenados ou respondendo a processo por crimes patrimoniais e relacionados ao comércio de drogas. Em sua maioria, são jovens, negros, pobres e pouco escolarizados. A lei penal é para essas pessoas. Mas essa não é uma exclusividade nossa. Desde seu surgimento, a prisão destina-se aos excluídos. No Brasil, ela é uma expressão do racismo estrutural da sociedade. 

Então a sua pesquisa confirma o jargão de que a Justiça brasileira é bastante “punitivista”. 

Sim, pude confirmar isso tanto na pesquisa como em minha atuação profissional, trabalhando no Departamento Penitenciário Nacional (Depen) e depois no Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Legislativo e Executivo têm uma importante parcela de culpa [na questão], mas o Poder Judiciário é o grande responsável pela situação em que nos encontramos, pois é ele quem deveria assegurar o cumprimento da lei, da Constituição, da dignidade humana. 

Na área penal, caberia aos juízes “conter o poder punitivo”, ou seja, exigir o cumprimento aos limites legais na atuação das polícias e garantir a liberdade de quem, por lei, deveria ou poderia estar solto. O que vemos na prática é o completo oposto: juízes se enxergam como agentes de segurança pública, e não da Justiça. A missão dos juízes criminais hoje é prender. 

A produção do encarceramento é “fordista”, sendo os ritos meros passos formais para dar ares de legalidade a uma condenação que já era certa. Isso, claro, para um determinado público. Negros e pobres sofrem mais abordagens e prisões em flagrante pela polícia. Eles também têm maiores chances de ter a prisão preventiva decretada e de serem condenados pelos juízes, como várias pesquisas empíricas demonstram. 

Esse encarceramento em massa tem alguma ligação com a Lei de Drogas (Lei 11.323/2006)? É comum ler e ouvir que, atualmente, tem muito usuário preso como traficante. 

A Lei de Drogas é hoje a principal estratégia para justificar o recrudescimento da polícia e o encarceramento em massa de homens e mulheres negras. Nenhuma “promessa” dessa política de combate às drogas foi cumprida, pelo contrário. Além da prisão de centenas de milhares de pessoas por tráfico, sem qualquer efeito positivo, nós vemos também o crescimento no número de homicídios, o aumento da corrupção e da truculência policial e também uma maior circulação de armas de fogo. 

Por que a insistência nesse caminho fracassado por tanto tempo? Porque a intenção não é proteger a sociedade contra as drogas, reduzir o consumo ou salvar vidas. Se fosse, os meios seriam as políticas de prevenção, informação, saúde e assistência social. O enfrentamento às drogas serve, na verdade, para perpetuar a exclusão de grupos marginalizados da sociedade e para legitimar a violência praticada pelas polícias, contando com a conivência e apoio do sistema de Justiça. 

O que você descobriu de novo no seu trabalho que talvez escape às mídias ou a outras pesquisas? 

Há muita pesquisa empírica de qualidade sendo realizada nos últimos anos no Brasil, mas o sistema de Justiça e grande parte da mídia escolhem ignorar esse conhecimento produzido. Continuam repetindo as mesmas mentiras, que encobrem a realidade do que está ocorrendo. O que busquei fazer na pesquisa e relatar no livro foi justamente esmiuçar os dados sobre encarceramento e explicar como chegamos até aqui. A partir daí, discuto as funções reais desempenhadas pela prisão no país. 

Não é mais possível seguir com a crença na boa-fé desse encarceramento em massa, ele não está aí para atender aos interesses da sociedade de aumentar a segurança, produzir justiça ou "reintegrar" os criminosos. Por trás das grades – que é o título do livro – , o que encontramos é o racismo nu e cru, uma política de Estado que tem por finalidade promover o controle pela truculência e violência, garantindo a perpetuação de uma sociedade excludente e desigual. 

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Por que a coleta de dados sobre segurança pública no Brasil é tão difícil? Falta interesse dos pesquisadores de modo geral? Do Poder Público? Como isso poderia ser resolvido? 

O sistema prisional opera no escuro, e assim as violações se perpetuam com maior facilidade. O mesmo ocorre com a segurança pública, especialmente com as atividades da polícia. Nessas áreas, não valem os direitos previstos na lei, a Constituição é letra morta. 

Como instituições públicas conseguem manter por tanto tempo práticas que violam direitos das pessoas privadas de liberdade, das pessoas abordadas, presas ou mortas pela polícia? Uma das estratégias é a falta de transparência e a criação de óbices para a entrada da sociedade e da academia nas prisões. Em geral, pesquisadores têm grande dificuldade de obter dados de qualidade sobre o sistema prisional e sobre a atuação policial. 

É preciso exigir do Poder Público a produção qualificada e padronizada de dados, com total transparência sobre essas informações. Além disso, para que possamos garantir o controle e participação social e diminuir as práticas ilegais na segurança pública e no sistema prisional, outras medidas de transparência são necessárias, como o uso de câmeras nas viaturas das polícias militares e nas delegacias de polícia civil, ou a adoção de sistemas informatizados por todos os órgãos, com divulgação dos dados coletados. 

Há uma precariedade muito grande em relação às informações nessa área, sem padronização entre os estados. Falta também a troca de dados entre os órgãos do sistema de Justiça, que dificulta o cumprimento e a garantia de direitos fundamentais - por aí, ainda temos muita gente que continua presa após o cumprimento da pena ou após reunir os requisitos para a acesso a direitos, como progressão de regime. Nos últimos anos tem havido um esforço para produção de informações e realização de pesquisas que envolvem o sistema penal. Mas é preciso aliar os esforços acadêmicos à prática da política penal e investir em soluções e coletas sistemáticas, que permitam fazer avaliações, identificar tendências, problemas, políticas que estão inadequadas, que não têm alcançado o seu objetivo e efetivamente corrigir os rumos apontados. 

Sei que é difícil afirmar, mas o que pode ser feito? Tanto em relação às políticas públicas quanto à consciência do Poder Público e da própria população, que costuma relacionar o número de prisões à segurança. 

Há caminhos concretos a serem seguidos. Precisamos investir em penas e medidas alternativas ao cárcere, a exemplo da prestação de serviço à comunidade, das medidas cautelares diversas da prisão, da mediação e da conciliação. Não são utopias ou planos para o futuro distante. Há muitas experiências concretas já testadas e muito bem-sucedidas em todo o mundo e inclusive no Brasil. Os resultados são imediatos: a reincidência é menor, os custos são menores, os laços familiares e comunitários não são rompidos, como ocorre com a prisão. 

Vários governos estaduais, como Bahia, Minas Gerais, São Paulo e Ceará já possuem políticas na área de alternativas penais. Os dois primeiros, aliás, com metodologias de acompanhamento de pessoas em cumprimento de alternativas penais muito sólidas, que são referência para todo o país. O Paraná também possui centrais e uma política sendo desenvolvida nesse sentido. Infelizmente, apesar os resultados positivos, esses esforços ainda são bastante incipientes. A prioridade continua sendo a construção de unidades prisionais, o uso da prisão como resposta para todo e qualquer caso. 

Também devemos apostar em experiências de Justiça restaurativa, que apresentam resultados muito mais interessantes para as pessoas envolvidas nos conflitos e para toda a sociedade do que as respostas típicas da justiça tradicional punitiva. O Rio Grande do Sul é uma importante referência nessas iniciativas, que estão se espalhando por todo o país, com incentivos por parte do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Contudo, ainda são muito dependentes da boa vontade de alguns juízes – e no Poder Judiciário ainda prevalece, como sabemos, a visão “punitivista”.

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