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Um dos argumentos das autoras da ADPF 442, que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gravidez, é que o atual regramento do Código Penal deve ser declarado inconstitucional por ser uma restrição desproporcional a uma série de direitos das mulheres. Neste texto da série Análise da ADPF 442, o Justiça & Direito vai começar a analisar a possibilidade da aplicação da regra da proporcionalidade à questão do aborto.

primeiro texto da série questionou a distinção entre “pessoas constitucionais” e “criaturas humanas intrauterinas”. A matéria mostrou que essa divisão entre duas classes de seres humanos não encontra fundamento na tradição jurídica brasileira. O segundo texto questionou os fundamentos morais e jurídicos dessa distinção, já que outros países adotaram esse entendimento para legalizar o aborto.

A petição inicial da ação propõe, como exercício argumentativo, que mesmo se embriões e fetos tiverem direitos fundamentais – o que, na visão das autoras, eles não têm, porque não são “pessoas constitucionais” –, a proibição irrestrita do aborto seria inconstitucional, porque violaria desproporcionalmente uma série de direitos das mulheres: a sua dignidade; a proibição da discriminação; a liberdade e a vida das mulheres; a proibição da tortura e de tratamentos desumanos e degradantes; o direito à saúde; e o direito ao planejamento familiar. 

O método da proporcionalidade foi desenvolvido pelo Tribunal Constitucional da Alemanha e ganhou sua mais acabada expressão teórica na obra de Robert Alexy, um dos autores mais citados nas decisões judiciais que buscam aplicá-lo no Brasil, principalmente desde os anos 1990. A versão mais utilizada desse método consiste em avaliar medidas estatais que restrinjam direitos fundamentais a partir de três perguntas: 

  1.  Essa medida é adequada?
  2. Essa medida é necessária?
  3. Essa medida é proporcional?

O exame dessas perguntas é sempre subsidiário: se a resposta à primeira pergunta for “não”, nem será necessário passar para o exame da segunda. A ação estatal será declarada inconstitucional desde logo. Para as autoras da ADPF 442, a ação estatal de criminalizar o aborto não passa nem pelo crivo da primeira questão. Mas elas propõem que se analise o tema sob o prisma das outras duas para não deixar dúvidas. É o que o Justiça & Direito fará também.

Ponderar o direito à vida, entretanto, causa estranheza em muitos juristas. Para Angela Gandra Martins, advogada e Ph.D. em Filosofia do Direito, que assina um dos pedidos de amicus curiae na ADPF 442, a discussão sobre o aborto não permite a aplicação da proporcionalidade, porque não há conflito de direitos. “A mãe não tem direito a dispor do filho, porque o filho é ser humano desde o momento da concepção. O direito da mulher ao seu próprio corpo existe: ela dispôs do corpo dela para uma relação sexual e assumiu as consequências. Mas o feto não é um membro da própria mãe”, afirma.

Marcelo Azevedo, advogado e doutor em Direito pela PUC-SP, destaca que “em princípio, ninguém se opõe a ponderar direitos, mas isso depende das premissas que se assumem”. Para Azevedo, os direitos das mulheres citados na petição inicial de fato existem, mas encontram uma barreira na vida do ser humano em gestação. “Homens e mulheres têm direitos sexuais e reprodutivos e ao planejamento familiar, mas com responsabilidade. Eu posso matar minha vó paraplégica com Alzheimer por que ela está atrapalhando minha família? O planejamento familiar vai até o limite de não ofender o direito de outras pessoas”, afirma. “Esses exemplos extremos nos ajudam a entender as consequências de uma determinada posição”, completa.

Muitos juízes e doutrinadores costumam repetir a platitude de que não há direitos absolutos no ordenamento jurídico brasileiro para justificar o uso da proporcionalidade e o abuso dela, o que se convencionou chamar de “farra dos princípios”. Em geral, lembram que nem o direito à vida é absoluto, porque a Constituição prevê a existência de pena de morte em caso de guerra declarada (artigo 5º, XLVII, “a”). 

“Há uma única exceção ao direito à vida colocada na Constituição Federal. E o que se diz é exatamente isso: que o direito à vida é um direito absoluto, salvo no caso de guerra declarada”, explica Azevedo. “Da mesma forma, em todos os casos em que o Estado pode tirar a propriedade de alguém, exige-se indenização, salvo em um único caso: expropriar no caso de cultivo de drogas; daí não se segue que o Judiciário possa ampliar as hipóteses em que isso é permitido”, completa. 

Adequação

Diante da primeira etapa do teste da proporcionalidade, as autoras da ADPF 442 escrevem que “a criminalização do aborto seria considerada inconstitucional por falta de objetivo legítimo, porém, para seguir a aplicação completa do teste, será avaliada ainda se a criminalização se justificaria como estratégia legislativa capaz de impedir a prática do aborto” e que “os dados empíricos sobre os efeitos da criminalização mostram que a lei penal não impede que abortos sejam feitos e, injustamente, força as mulheres comuns à ilegalidade e aos riscos da clandestinidade, favorecendo um mercado desregulado e arriscado de medicamentos e clínicas inseguras”.

Em um artigo publicado em 2002, fartamente citado na petição inicial da ADPF 442, Virgílio Afonso da Silva, professor de Direito Constitucional da USP e um dos mais destacados estudiosos do método da proporcionalidade, explica a confusão entre “alcançar” e “fomentar” – que seria o termo correto – um fim,  criada a partir da tradução do alemão. “Uma medida somente pode ser considerada inadequada se sua utilização não contribuir em nada para fomentar a realização do objetivo pretendido” [destaque nosso], escreve Afonso da Silva. 

Não se trata, portanto, de exigir que a medida alcance completamente o fim visado; do contrário, qualquer medida estatal poderia ser julgada inadequada pelos tribunais. A conclusão lógica dessa confusão seria a declaração da inconstitucionalidade de todo o Código Penal, na medida em que ele limita a liberdade das pessoas sem conseguir extinguir a criminalidade. Ou o Brasil não registrou 59 mil homicídios em 2015? 

Essa confusão aparece nas palavras das autoras da ADPF 442, por exemplo, quando argumentam que, a despeito da proibição do aborto, ele continua sendo praticado no Brasil e que sua criminalização seria, portanto, inadequada como medida para fomentar a diminuição do número de abortos. As autoras simplesmente desconsideram que, sem a lei, o número de abortos poderia aumentar. 

O agregado de estatísticas mundiais sobre o aborto, como o reunido no Abortion Worldwide Report, de 2017, mostra que, em diferentes países, um padrão emerge depois da legalização: o número de abortos realizados cresce vigorosamente, em um intervalo de 5 a 25 anos, até atingir um pico. Da mesma forma, medidas restritivas, incluindo a proibição, tendem a baixar a taxa de abortos realizados. Desse ponto de vista, não parece haver dúvidas de que se se quer fomentar a proteção à vida desde a concepção, a proibição do aborto é uma medida adequada. 

Na petição, as autoras afirmam, ao comparar as taxas de aborto em diferentes regiões do mundo, que “não há evidências de que leis altamente restritivas ao aborto possam ser associadas a menores taxas de aborto”. Mas a análise mais adequada para entender o papel da lei no número de abortos realizados em um país também envolve questões sociais e culturais, bem como a consideração de quanto variam as taxas de aborto, em um determinado país, com a mudança no regramento sobre isso. A lei importa, assim como importam políticas públicas de conscientização contra o aborto, educação e planejamento familiar, além de uma miríade de outros fatores.

No próximo texto da série, o Justiça & Direito vai analisar os argumentos da ADPF 442 no tocante à aplicação da segunda etapa da proporcionalidade: a regra da necessidade. De acordo com ela, uma ação estatal só é necessária se não houver nenhuma outra tão ou mais efetiva que seja, ao mesmo tempo, menos restritiva aos supostos direitos fundamentais atingidos. Para enfrentar essa pergunta a contento, será necessário analisar as estatísticas sobre o aborto.

Diálogo 

 Não só a convicção de que vida deve ser protegida desde a concepção motiva essa série de análises sobre a ADPF 442, mas também nossa crença no poder da razão e do diálogo. O filósofo Christopher Kaczor, que se posiciona a favor da proteção da vida desde a concepção, faz um agradecimento especial, no primeiro parágrafo de seu livro, ao também filósofo David Boonin, que defende a posição contrária: “David Boonin, autor de Uma Defesa do Aborto, merece especial reconhecimento e gratidão. David leu meu manuscrito inteiro duas vezes e, na segunda vez, me mandou 23 páginas, em espaçamento simples, de comentários, questões, objeções e desafios. Estou especialmente em débito para com ele por este trabalho”.

Confira a série completa: Análise da ADPF 442

1. Bebê na barriga é gente? Para defensores do aborto, é “criatura” com menos direito 

2. Há diferença entre os direitos do ser humano que nasceu e os do que não nasceu? 

3. É proporcional descriminalizar o aborto? 

4. Números sobre aborto mostram pontos fracos da legalização como alternativa 

5. Aborto: a liberdade da mulher deve mesmo ser o direito mais relevante? 

6. Decisões anteriores do STF não servem como base para descriminalizar o aborto

7. Não pode abortar? Há alternativas para a defesa da vida, com dignidade para a mulher

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