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| Foto: Heuler Andrey / AFP

Presença constante nas falas de Jair Bolsonaro (PSL) antes mesmo de sua candidatura à Presidência da República ser oficializada, o excludente de ilicitude para policiais em serviço é uma das frentes do plano de governo do presidenciável no que diz respeito à segurança e ao combate à corrupção. Segundo Bolsonaro, precisa-se desse tipo de proposta porque “muitos desses [policiais em operação] morrem porque não atiram, porque se atirar vão para a cadeia”.

O plano de governo do candidato traz o seguinte: 

Policiais precisam ter certeza que, no exercício de sua atividade profissional, serão protegidos por uma retaguarda jurídica. Garantida pelo Estado, através do excludente de ilicitude. Nós brasileiros precisamos garantir e reconhecer que a vida de um policial vale muito e seu trabalho será lembrado por todos nós! Pela Nação Brasileira! 

É preciso frisar que a Parte Geral do Código Penal (CP), em seu artigo 23, já prevê hipóteses de excludentes de ilicitude para todos os cidadãos, incluídos aqui os policiais, e aplicáveis a qualquer delito. São situações em que, falando de forma grosseira, o indivíduo teria “autorização” para cometer um crime. Pela legislação penal brasileira que vigora atualmente, não são puníveis as infrações cometidas I) em estado de necessidade, II) em legítima defesa e III) em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito.

O fato de um sujeito agir amparado em um excludente de ilicitude, contudo, não significa que ele automaticamente se livrará de uma punição. Conforme explicou, em matéria anterior do Justiça, o advogado e professor de Direito Penal do Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba) Gustavo Scandelari, é a Justiça que decide se o ato realmente foi praticado em uma das situações previstas no artigo 23 do Código Penal. Isso quer dizer que a polícia é obrigada a iniciar uma investigação e o Ministério Público deve apresentar denúncia, cabendo ao juiz arquivar o processo, após uma análise de fatos e provas, geralmente testemunhais, se entender que o caso é abarcado por uma das hipóteses de exclusão da ilicitude.

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A reportagem tentou contato com a campanha do candidato a fim de se aprofundar nessa proposta específica, mas não obteve sucesso. Declarações do candidato à mídia, como na entrevista concedida ao Jornal Nacional no último mês de agosto, e o projeto de lei apresentado à Câmara dos Deputados pelo então deputado federal em fevereiro, contudo, levam a crer que o que Bolsonaro almeja é que o excludente de ilicitude seja aplicada automaticamente a policiais que, eventualmente, matem em serviço, sem necessidade de investigação.

“Isso é bastante preocupante no sistema democrático porque bagunça a ordem do processo legal. O controle da atividade policial e do uso da força pelas polícias é necessário, inclusive, para o bom funcionamento das instituições policiais”, opina David Marques, coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 

Na visão de Marques, para que a polícia possa fazer um controle da criminalidade, ela também precisa passar por um controle – tanto interno, por parte das corregedorias, quanto externo, por parte do Ministério Público, Justiça e da própria sociedade. 

“É necessário ter elementos técnicos de avaliação para saber se a polícia está atuando de acordo com os marcos legais e constitucionais. [Sobre a proposta de Bolsonaro] É como se você quisesse trazer para a legislação uma situação que já existe, mas com a lógica invertida, para fazer frente em relação a um discurso social de pouca valorização policial”, complementa. 

Do ponto de vista técnico-jurídico, o advogado e professor de Direito Penal Marcelo Lebre argumenta que um projeto com esse propósito sequer passaria pelas Comissões de Constituição e Justiça do Congresso, pois viola tanto o devido processo legal quanto a presunção de inocência, garantias constitucionais. Isso porque ninguém tem “licença para matar” sem que haja uma análise posterior do caso, já que, numa operação policial, todos são tratados como suspeitos. 

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“É o juiz o único que tem o poder de dizer, e em decisão fundamentada, que alguém é culpado ou inocente”, diz o professor. 

Em entrevista ao Globo na última terça-feira (16), Luiza Frischeisen, subprocuradora-geral da República, deu declaração no mesmo sentido: “o excludente de ilicitude já existe, mas depende de prova. Qualquer um pode dizer que é legítima defesa. Mas, para comprovar, é preciso ter inquérito, investigação”. 

Letalidade policial em números 

Para Marcelo Lebre, a proposta de Bolsonaro é mais “propagandista” do que técnica. Além de o candidato não abordar de forma mais aprofundada o tema, a legislação, do jeito como está posta hoje, já garante a retaguarda jurídica almejada por Bolsonaro. Tanto o é que é pequeno o número de policiais militares que são presos por suspeita de homicídio. 

Tome-se como exemplo São Paulo, unidade da federação com o maior número absoluto de policiais militares – no início de 2017 eram 86,3 mil PMs, cerca de 92,7% do efetivo ideal para o estado. Segundo levantamento do UOL, desde 2014, São Paulo mantém uma média de 25 policiais militares presos por ano suspeitos de cometer homicídio. 

O número é baixo não apenas se comparado à quantidade de oficiais no estado, mas também quando se observa o número de mortes decorrentes de ações policiais. A edição de 2018 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, produzido com dados de 2017, mostra que 643 civis foram mortos em São Paulo durante operações envolvendo policiais militares. Em contrapartida, é 11 o número de PMs que morreram em serviço no estado no mesmo período.

No Brasil, foram 5.144 indivíduos mortos em intervenções policiais (tanto da Polícia Civil quanto Militar) e 367 policiais (civis ou militares) mortos em serviço. Nos Estados Unidos, país constantemente citado como exemplo por Bolsonaro, foram 987 suspeitos mortos em confrontos policiais em 2017. Já o número de oficiais que morreram em serviço foi de 137.

Marques lembra, no entanto, que a polícia norte-americana goza de índices de confiança maiores perante a população em comparação ao Brasil, onde se privilegia muito o policiamento ostensivo, realizado pelos policiais militares, em detrimento de um policiamento mais investigativo. Mas não seria possível, segundo o pesquisador, melhorar o cenário “tirando controles mínimos da atuação policial”, mas sim valorizando a categoria. 

“Resolve-se o problema aproximando a polícia da comunidade. Além disso, se o que se quer é uma política de segurança pública que preze pela questão técnica e pelos resultados, necessariamente é preciso articular isso com outras políticas públicas. Se você consegue trabalhar as políticas de segurança para além das polícias, e equalizar melhor esse balanço entre Polícia Militar e outras políticas públicas, é possível, sim, ter resultados melhores e que não vão depender do PM, na maior parte das vezes, na ponta, trocando tiros com [supostos] criminosos”, pontua o coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

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