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| Foto: Caroline Groussain/AFP/Getty Images

Um decreto do governo estadual de Ohio, nos Estados Unidos, adiou por oito vezes a execução de Ronald Phillips, condenado à penal capital em 1994. Preso em 1993, ele foi considerado culpado pela morte de sua enteada de 3 anos. A garota era constantemente estuprada e agredida pelo padrasto. 

O atraso na execução de Phillips ocorreu para que o Poder Público pudesse deliberar acerca de um pedido bastante específico do prisioneiro: a possibilidade de doar seu coração à sua irmã, um rim para sua mãe e tecidos e outros órgãos a pacientes que aguardam por um transplante no país. O pedido acabou recusado, e Phillips foi executado julho de 2017. 

Desde o início de 2011, Christian Longo pleiteia pelo direito de doar seus órgãos após ser executado. Preso em Oregon, onde a pena de morte se encontra suspensa desde novembro de 2011, Longo foi condenado à morte em 2003 pelo assassinato de sua esposa e dos três filhos do casal. 

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“Eu passo 22 horas dos meus dias trancafiado em uma cela de, aproximadamente, 4 m² no corredor da morte do Oregon. Não há nenhuma maneira de compensar meus crimes, mas eu acredito que a sociedade pode se beneficiar de forma profunda dos meus atos”, escreveu Longo em artigo publicado no New York Times sete anos atrás.

Ele chegou a fundar um movimento em prol do direito de condenados à morte de doar órgãos, mas ainda não obteve sucesso em sua empreitada.

Cerca de 115 mil pessoas estão na lista de espera para o transplante de um ou mais órgãos nos Estados Unidos, segundo o Departamento de Saúde e Serviços Humanos do governo norte-americano. Já outras 2,7 mil se encontram no corredor da morte. Não existe, no país, uma lei que proíba os condenados à morte de doar órgãos – ainda que, ao mesmo tempo, não exista nenhuma norma que os autorize. 

Do ponto de vista utilitarista, por que esses indivíduos não podem ser encarados como doadores em potencial? Há tanto questões técnicas quanto éticas envolvidas.

Aspectos práticos

No artigo The Use of Prisoners as Sources of Organs – An Ethically Dubious Practice (“O Uso de Prisioneiros como Fontes de Órgãos – Uma prática eticamente duvidosa”, em português), o especialista em bioética Arthur Caplan, hoje professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Nova York, traz como primeiro empecilho para a prática o baixo número de potenciais doadores. Isso porque a tendência é que as execuções diminuam a cada ano. Até o momento, por exemplo, foram executados 16 prisioneiros nos EUA em 2018. Outras 12 execuções estão previstas para o restante do ano.

Ainda, segundo o professor, muitos prisioneiros não seriam aceitos como doadores devido à idade e/ou ao seu estado de saúde. Caplan afirma que a média de tempo despendido entre a condenação e a execução é de 10,6 anos, o que significa que a maioria dos prisioneiros têm 50 anos ou mais na data da morte – o que reduz as chances de doação de órgãos. 

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O fato de muitos prisioneiros possuírem comportamento promíscuo nas instituições também aumenta as taxas de HIV, hepatite e outras DSTs entre a população prisional, outro empecilho para a doação. 

Shu S. Lin e Lauren Rich, do Centro Médico da Universidade Duke, também em artigo, rebatem Caplan ao afirmar que “o número de pacientes beneficiados diretamente pela doação de condenados à morte pode, realmente, ser relativamente pequeno, mas o impacto desses transplantes certamente será extremamente significativo para os receptores e suas famílias”. Os pesquisadores também afirmaram que não raramente doadores considerados “marginais” fornecem órgãos completamente saudáveis para receptores.

Outro empecilho prático diz respeito ao método de execução. A maioria dos estados norte-americanos lança mão da injeção letal para executar seus prisioneiros, sendo a escolha mais comum uma combinação de três drogas (tiopental de sódio, brometo de pancurônio e cloreto de potássio), que acaba tornando os órgãos impróprios para doação posterior.

Em seu artigo para o New York Times, Christian Longo escreve que já há localidades que utilizam uma injeção letal de apenas uma droga, um barbitúrico de ação rápida (tiopental sódico) que não causaria mal aos órgãos. Já faz alguns anos, porém, que a indústria farmacêutica dos EUA vem tentando frear o fornecimento de compostos para a fabricação de injeções letais, sejam elas compostas por três ou apenas uma droga.

Questões éticas 

Aqueles que se opõem à doação de órgãos por condenados à morte também citam o fato de que, quando executados, os presos não se encontram em nenhum tipo de sustentação artificial de vida. Muitos órgãos só são passíveis de doação no caso de morte encefálica, quando a função cardiorrespiratória é mantida por meio de aparelhos e medicações. 

No caso das execuções, após a aplicação da injeção, aguarda-se um período que varia de 10 a 15 minutos para examinar o prisioneiro em busca de evidências de atividade cardíaca. Apenas após constatada a ausência de batimentos é que a morte é declarada. Aqui, surge um problema ético. 

“[Uma mudança nesse cenário] pressupõe que equipes médicas estariam dispostas a participar dos procedimentos necessários [para a doação de órgãos]”, escreve Caplan. Para ele, o “ato de monitorar um paciente no pós-execução, bem como lançar mão de intervenções para preservar os órgãos antes, durante e depois a morte, participando da retirada do corpo da câmara de execução até uma sala cirúrgica” é eticamente problemático, pois poderia violar normas profissionais médicas. 

Jay D. Pal, da Universidade do Colorado-Denver, complementa que “qualquer alteração no método de execução a fim de diminuir esse tempo de espera resultaria numa morte devido [justamente] à retirada de órgãos, o que colocaria o cirurgião no papel de carrasco”. 

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Outro ponto levantado pelos especialistas é o consentimento. Embora haja variações de estado para estado, certo é que todos os presos perdem algum componente de sua cidadania quando são encarcerados. Além do mais, encontram-se em um ambiente física e psicologicamente estressante, o que pode afetar suas decisões. Eles não estariam, portanto, numa posição ideal para consentir. 

Caplan também escreve que permitir a doação de órgãos por condenados à morte iria na contramão das verdadeiras intenções da pena de morte, que são a dissuasão da prática de novos crimes e de justiça. Nos EUA, estão sujeitos à pena capital os crimes de homicídio com ao menos um agravante.

“O efeito dissuasivo da pena capital pode diminuir se um bem social for associado à prática. Embora as necessidades daqueles à espera de um transplante sejam reais, o objetivo do sistema penal não é o de servir às necessidades médicas, mas sim de alcançar justiça para a vítima, sua família e amigos, bem como para deter futuros crimes. Mitigar o horror da execução ao permitir a doação de órgãos não é consistente com os propósitos da execução”, argumenta.

E os prisioneiros comuns? 

Algumas prisões aceitam que prisioneiros comuns - ou seja, aqueles que não foram condenados à morte - cadastrem-se como doadores de órgãos caso morram quando ainda estiverem encarcerados. O único estado a legislar sobre o assunto até o momento, no entanto, é Utah. Em 2013, o governador Gary R. Herbert sancionou uma lei que permite aos encarcerados comuns no estado de se cadastrarem, de forma voluntária, como doadores de órgão se morrerem enquanto estiverem sob custódia do Poder Público.

Na época, a decisão levantou polêmicas. Professor da Escola de Medicina da Universidade de Indiana, Paul R. Helft disse à NBC logo que a lei entrou em vigor que a prática usaria pessoas que não se encontram em estado de liberdade somente “como meios para um fim”.

Já Ruth Faden, fundadora do Instituto de Bioética Johns Hopkins Berman, escreveu, em artigo publicado no New York Times, que “não queremos que o pêndulo [da ética] se mova tanto a ponto de que vidas perdidas poderiam ter sido salvas por um doador de órgãos, disposto ao ato, encarcerado”.

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