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 | Beto Barata/Arquivo Gazeta do Povo
| Foto: Beto Barata/Arquivo Gazeta do Povo

É raro que as pessoas cumpram a lei. Ao menos é o que pensa a maioria dos curitibanos entrevistados para a produção do Índice de Democracia Local (IDL), levantamento inédito desenvolvido pelo Instituto Atuação, com o objetivo de melhorar a qualidade da vida democrática a partir das cidades – nesse caso específico, na capital paranaense. 

Das 900 pessoas que responderam a pesquisa, 43,22% acreditam que é rara a frequência com que os outros obedecem à lei, enquanto 12,22% pensam que a legislação nunca é observada. O resultado do IDL, lançado em junho de 2018, reflete o que já foi constatado em outros estudos nacionais. A edição de 2015 do Índice de Percepção do Cumprimento da Lei (IPCLBrasil), produzido pela Escola de Direito da FGV-SP, apontou que 80% dos brasileiros acreditam ser fácil desobedecer à lei no país. 

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Quando se analisa a percepção da confiança em relação ao outro de modo geral, não apenas limitada ao cumprimento da lei, os números fazem sentido. Quando se fala em confiança interpessoal, 84,2% dos entrevistados para o IDL afirmaram que a maioria das pessoas não é confiável, sendo apenas amigos e familiares confiáveis. Henrique Raskin, gestor de pesquisa do Instituto Atuação e mestre em ciência política pela Universidade Columbia, afirma que esses indicadores de relacionamento demonstram que existe um problema de coesão social.

“As pessoas não confiam umas nas outras, não confiam nas instituições, não confiam que os outros sigam a lei. Isso cria uma insegurança, mas não só no sentido físico. É um medo que se dá num passo anterior. É uma espécie de insegurança moral de que ‘eu não sei se essa pessoa totalmente estranha a mim, com o mesmo cargo de cidadania, compartilha os mesmos valores que eu’”, explica.

O que é curioso, no entanto, é que ainda que a confiança interpessoal seja baixa, a opinião alheia importa no processo de tomada de decisões. Foi o que constatou Luciana Ramos, professora do curso de Direito da FGV-SP e uma das autoras do IPCLBrasil, em suas pesquisas. Segundo ela, em geral, as pessoas cumprem mais a lei quando identificam que serão reprovadas socialmente no caso do descumprimento da regra. 

No índice desenvolvido pela FGV-SP, por exemplo, o furto de objetos de pequeno valor de uma loja aparece como conduta passível de maior reprovação social do que dirigir após o consumo de bebida alcóolica, situação com potencial maior para causar danos, por assim dizer.

“Mais do que a instrumentalidade, ligada à noção de função da lei, [o cumprimento da norma] é muito mais um caso de controle social. Os brasileiros se preocupam muito com o que o outro vai pensar. As regras formais, as leis, têm um papel menos importante do que a opinião do outro”, diz Luciana.

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É claro que o medo, o impacto da punição também pesa para que se cumpra a lei. O que acaba ocorrendo, afirma a professora, é que o indivíduo analisa o “custo-benefício” de cumprir, ou não, determinada regra. Assim, seriam questionados pontos como quais são as reais chances de ser punido e, caso isso ocorra, qual seria a punição. 

Quando se fala em descumprimento da lei, essa seria a ponderação mais comum. Professor do Instituto de Estudos Políticos e Relações Internacionais da Universidade Nacional da Colômbia, Mauricio Garcia-Villegas traz em outros dois tipos “ideais” de descumpridores da lei. Em “Normas de papel: La cultura del incumplimiento de reglas” (“Normas de papel: a cultura do descumprimento de regras”, em português), o professor aponta que existe também a figura daqueles que não estão dispostos a submeter-se ao poder do Estado, a quem chama de “rebeldes”, e a do “arrogante”, comum nas elites latino-americanas, que considera que sua posição nobre está acima da lei estatal

Para Garcia-Villegas, a questão não se trata, apenas, de um problema jurídico, mas de um problema social e cultural, de solidariedade interna, que afeta a própria estruturação do Estado de Direito.

Jeitinho brasileiro e burocracia

No Brasil, a desconfiança no cumprimento das leis liga-se de forma bastante íntima a dois “símbolos” nacionais: a burocracia e o jeitinho brasileiro. Luciana Ramos afirma que as chances de corrupção são proporcionais aos níveis de burocracia de um ambiente. Segundo a professora da FGV-SP, “quanto mais portas burocráticas eu tenho, mais chances de querer burlar”. A lógica é de que se há outros caminhos mais fáceis para atingir um objetivo, por que não tentar? Mesmo que isso signifique descumprir a lei.

Em relação ao jeitinho, a sensação que o brasileiro tem, diz Henrique Raskin, é de que todo mundo, potencialmente, vai achar um jeito de burlar a lei e de “passar a perna” no outro. Na dúvida, é melhor se proteger, já que o jeitinho seria uma espécie de ética geral. E isso acaba refletido na confiança que se tem das instituições. 

“As instituições, querendo ou não, são formadas por esses mesmos cidadãos, que cresceram numa família, que aprenderam com a sociedade. Então como é que podemos esperar que no âmbito do Estado vai ser diferente? O Estado é a cereja do bolo, e se há problema na base, vai haver no topo”, afirma Raskin.

Quanto às leis, deve-se lembrar por quem elas são feitas. A produção legislativa nacional fica a cargo do Senado e da Câmara dos Deputados. Em âmbito local, fala-se em Câmara dos Vereadores. 

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A mais recente edição do Índice de Confiança na Justiça (ICJBrasil), também desenvolvido pela FGV-SP e publicado em 2017, mostra que apenas 7% dos brasileiros confiam no Congresso Nacional e nos partidos políticos. No tocante ao Índice de Democracia Local (IDL), a maioria (32,11%) dos curitibanos entrevistados atribuiu nota zero, sendo zero a menor e 10 a maior, à confiança da Câmara de Vereadores da cidade.

“Tendo em vista essa baixíssima confiança, a gente percebe que o grau de legitimidade das leis é baixo porque ela é feita por essas pessoas [senadores, deputados e vereadores]. Quando se pergunta ‘quem você acha que mais desrespeita as leis no Brasil?’, deputados vêm em primeiro lugar. Ou seja, quem faz as leis contempla baixíssimo nível de confiança da população. Então, o fato de a lei simplesmente existir não é importante o suficiente para que a regra seja cumprida”, opina Luciana. 

O que fazer?

Fica claro que o cerne do problema está na confiança em relação ao outro. Como, então, resolver a situação? Raskin aponta que é preciso trabalhar com a noção de empoderamento do cidadão, ao perceber que a democracia é o fortalecimento das relações que se dão em sociedade. É preciso, portanto, pensar em novas formas de configuração de relacionamento e começar a cobrar a confiança, do tipo “eu confio em você e espero esse retorno” – e não simplesmente se colocar numa posição eternamente defensiva. 

Luciana afirma que os particulares precisam reconhecer que juntos eles têm poder e que a mudança é possível, ainda que seja para mudar uma pequena comunidade, um bairro ou uma rua. É necessário, para a professora da FGV-SP, haver mais cooperação do que competição na sociedade, para que mecanismos alternativos de confiança possam ser construídos. 

“Tendo em vista que a questão da reprovação social é o que faz com que as pessoas cumpram a lei, quando se cria uma microcomunidade com noção de que ‘aqui todo mundo vai cumprir a regra’, de que ‘se a gente cumprir a regra nada vai dar errado’, isso acaba servindo de modelo para um ambiente mais amplo”, aponta.

A sociedade civil, nesse sentido, precisa assumir um papel de protagonista e parar de deixar tudo para o Poder Público resolver, abandonando uma visão tão “Estadocêntrica”.

“Se você se sente numa rede de proteção, não fica o tempo todo alerta. A expectativa pode ser frustrada em algum momento? Pode ser que sim, pode ser que não. Mas o fato é que você cria uma rede para conhecer a força que os particulares têm, em comunidade”, finaliza Luciana. 

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