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Com a autorização da Justiça, que dura um ano e pode ser renovada, a família não pode ser presa nem ter o material destruído ou retido. (Imagem: Pixabay)
Com a autorização da Justiça, que dura um ano e pode ser renovada, a família não pode ser presa nem ter o material destruído ou retido. (Imagem: Pixabay)| Foto:

Há mais de oito meses, Caroline, nove anos, não sofre das convulsões que outrora eram diárias. Com a rara síndrome de Dravet, doença degenerativa que resulta em crises epilépticas, a garota teve o quadro revertido após receber tratamento com óleo de canabidiol (CBD), extraído de plantas específicas de maconha cultivadas na residência da família, em Canoas. O direito da posse e do cultivo em casa foi concedido pelo juiz Roberto Coutinho Borba, da 4ª Vara Criminal da cidade, no dia 9 de abril.

Por lei, plantar e consumir maconha é ilegal, ainda que o uso seja para fins medicinais. A prática pode resultar em prisão com pena de cinco a 15 anos. Com a autorização da Justiça, que dura um ano e pode ser renovada, a família não pode ser presa nem ter o material destruído ou retido. No Brasil, casos semelhantes já foram registrados, mas a decisão é inédita no Rio Grande do Sul.

Com um conta-gotas na mão, Liane Pereira, 50 anos, não segura a emoção ao definir o conteúdo do frasco produzido por ela. "Esperança de vida da minha filha."

O tratamento exige seis gotas diárias, ininterruptamente, mas a família celebra os dias que a menina está distante das internações. "A gente aprendeu a contar os dias, porque cada um é uma luta."

Por mais de cinco anos, a rotina foi de tratamentos com os mais diversos remédios, sem um diagnóstico preciso. A doença foi identificada em 2015, e o uso do canabidiol, definido junto à neurologista Fernanda Quadros. Antes de utilizar o óleo feito em casa, o tratamento foi realizado de 2016 a 2018 com medicação de canabidiol trazida dos Estados Unidos.

"Ela usava sete anticonvulsivantes, mas nunca melhorava. Com o canabidiol, conseguimos tirar todas as outras medicações. E o mais impressionante é a qualidade de vida: ela não conseguia mais falar e usava cadeira de rodas. Depois, ela foi saindo da cadeira, voltou para a escola, voltou a falar e a conversar", relata a médica, que acompanha Carol desde a primeira crise, 25 dias após seu nascimento.

Empréstimos e rifas

Como o custo médio mensal do produto importado era de R$ 3 mil, a saída foi realizar empréstimos bancários, fazer rifas e criar, no Facebook, a página Força Carol. Por meio da Justiça, o Sistema Único de Saúde (SUS) ficou responsável por custear a importação durante apenas seis meses.

Após reportagem exibida em 2017 pelo Fantástico, da Rede Globo, contar a história de uma família com drama semelhante ao que viviam, eles decidiram participar da Marcha da Maconha, em SP, em busca de alguma orientação de pessoas que já produziam o óleo e poderiam lhe informar melhor sobre a planta específica utilizada para a extração do remédio.

Mesmo sabendo da ilegalidade de transportar a substância, resolveram trazer duas mudas e uma ampola com 1 ml do óleo caseiro.

"Eu tremia quando passei pelo raio X (do aeroporto). Ela toma tarja preta desde os dois meses de vida, e dormia o dia inteiro de tanto remédio pesado. Então, pensei: “Pela minha filha, eu faço qualquer coisa”. E encarei", relembra.

O delegado Carlos Wendt, diretor da Divisão de Investigação do Narcotráfico do Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico (Denarc) afirma que o transporte de qualquer substância ou de sementes ou mudas de maconha é ilegal, e pode ocasionar sanções. Os Pereira resolveram correr o risco enquanto a Justiça analisava o pedido de habeas corpus, mas hoje estão livres de qualquer condenação pelo transporte e cultivo.

"Não existe qualquer possibilidade de ela ser responsabilizada, pois foi reconhecido que ela não estava praticando nenhum crime", avalia o juiz Roberto Coutinho Borba, responsável pela autorização da 4ª Vara Criminal de Canoas.

Professora municipal em Canoas, a mãe sabe que a doença da filha ainda não tem cura, mas se demonstra emocionada ao imaginá-la, agora, com uma perspectiva na vida adulta. "Não quero diploma, quero só que ela esteja feliz."

Elétrica como qualquer criança de sua idade, Carol entra em casa aos gritos, chama pela avó, pula no sofá da sala e distribui beijos.

"Hoje ela tem vida, dança, pula corda, faz bambolê… Antes, quando tinha as crises de ausência, ficava sete, 12 minutos desmaiada. Você não sabe o que é ter alguém desacordado e não poder fazer nada", relembra a avó, Maria Alice Both Pereira, 73 anos.

Devido às dificuldades financeiras da família, Maria Alice convidou o genro, a filha e a neta para viverem com ela, evitando o gasto com um imóvel alugado.

Cerca elétrica

Para conter o olhar dos curiosos e evitar possíveis furtos, o marido de Liane, Juarez da Silva, instalou uma cerca elétrica. A família protege o ambiente com a certeza de que ali está a possibilidade de uma vida melhor para a mais nova dos três filhos. "O meu maior, de 18 anos, conviveu tanto tempo com a gente no hospital que ele sabe que não é maconha. É o remédio da mana."

A última vez que ela e o marido – únicos com autorização para manusear os produtos – produziram o canabidiol foi em agosto de 2018, e uma nova leva deve ser preparada esta semana. Além da redução de custos, Liane tem a certeza da qualidade do produto que a filha ingere. "Não é só o valor. Sei que ela ingere o melhor."

A mãe mostra, então, o parecer do toxicologista Tiago Franco de Oliveira, secretário-geral da Sociedade Brasileira de Toxicologia e professor da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFSCPA). É ele quem atesta a eficácia do óleo artesanal produzido pela família. Segundo o professor, a análise feita em laboratório verificou equivalência das concentrações do CDB e do THC.

Essa última substância, se ingerida em níveis extremos, causa efeitos alucinógenos.

"Como é artesanal, existe variabilidade, por mais controlado que seja o ambiente. Para segurança, o recomendado é realizar análise constante do que é produzido e nunca ingerir em excesso. Mas é um produto muito diferente da droga de rua, que sofre várias adulterações", afirma Oliveira.

Gastos não param por aí

O parecer que atestou a qualidade do material produzido pela família canoense foi anexado ao processo judicial, que culminou na obtenção do habeas corpus para a produção caseira da planta.

Apesar de os custos terem sido severamente reduzidos, há outros não cobertos pelo plano de saúde, como a fisioterapia para evitar escoliose na coluna da menina, que já dá sinais de curvatura. Para isso, Liane sonha com uma piscina para que a criança não pare com os exercícios.

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) informa que ainda não tem regulamentação específica para o plantio de maconha com fins medicinais, mas que “este tema está na pauta da agência para discussão técnica e avaliação de soluções regulatórias”.

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