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O prédio do Supremo Tribunal Federal (STF), na Praça dos Três Poderes, em Brasília Foto: Dorivan Marinho/STF
STF ultrapassou as barreiras entre os poderes e criou uma hipótese de crime; tese vencedora tenta proteger liberdade religiosa.| Foto: Dorivan Marinho/STF

Nesta quinta-feira (13), após seis sessões ao longo de quatro meses, o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento de duas ações que pediam o reconhecimento da omissão do Congresso em legislar sobre a população LGBT e a equiparação da discriminação de LGBTs ao conceito jurídico de racismo. Oito ministros decidiram começar a punir preconceito e discriminação em razão de orientação sexual e identidade de gênero. Com isso, ações “homotransfóbicas” passam a ser crime, de acordo com a Lei 7.716/1989, até que o Congresso legisle sobre o tema.

O tribunal teve 10 votos pelo reconhecimento da omissão do Congresso diante do artigo 5º, inciso XLI da Constituição Federal – “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” – e oito votos pela aplicação do conceito de racismo à “homotransfobia”, enquanto o Legislativo não criar lei específica.

Em fevereiro, quando o STF começou o julgamento, os ministros Celso de Mello e Edson Fachin, relatores das ações, além de Alexandre de Moraes e Roberto Barroso, votaram pelo reconhecimento da omissão e pela equiparação. Em maio, com a retomada do julgamento, os ministros Luiz Fux e Rosa Weber seguiram a mesma tese, formando maioria no tribunal.

Nesta quinta-feira, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes também se filiaram à tese majoritária. Já os ministros Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli votaram por reconhecer a omissão, mas apenas mandar notificar o Congresso, sem fixar prazo para o Legislativo fazer seu trabalho de sanar a omissão inconstitucional, enquanto Marco Aurélio não conheceu do Mandado de Injunção (MI), por entender que "não há direito à criminalização", e não aceitou a omissão do Congresso em editar lei penal específica sobre homofobia e transfobia.

Pela tese vencedora, “condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou identidade de gênero de alguém [...] ajustam-se aos preceitos primários de incriminação na Lei 7.716/1989, constituindo também, na hipótese de homicídio doloso, circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe”.

No ponto específico à liberdade religiosa, o tribunal, seguindo a proposta do ministro Celso de Mello, fixou a seguinte tese:

"A repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, qualquer que seja a denominação confessional professada, a cujos fiéis e ministros (sacerdotes, pastores, rabinos, mulás ou clérigos muçulmanos e líderes ou celebrantes das religiões afro-brasileiras, entre outros) é assegurado o direito de pregar e de divulgar, livremente, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu pensamento e de externar suas convicções de acordo com o que se contiver em seus livros e códigos sagrados, bem assim o de ensinar segundo sua orientação doutrinária e/ou teológica, podendo buscar e conquistar prosélitos e praticar os atos de culto e respectiva liturgia, independentemente do espaço, público ou privado, de sua atuação individual ou coletiva, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero".

O que os ministros contrários à tese vencedora disseram

"Punir a homofobia é simbólico, e é, segundo penso, apenas o primeiro passo. Reconheço que a lei pode muito, mas não pode tudo. Estamos aqui a tratar da necessidade de mudanças culturais complexas que, acaso vinguem, serão incorporadas ao repertório jurídico e policial paulatinamente. Essa reflexão, porém, não diminui a importância de que esse primeiro passo seja dado. Cabe aqui um paralelo com a criminalização específica da violência contra a mulher", afirmou Lewandowski.

O ministro, contudo, apesar de reconhecer a omissão do Congresso, divergiu da maioria ao argumentar que o STF não poderia criar um novo crime, porque isso está sujeito à reserva legal absoluta. Segundo Lewandowski, somente o Legislativo poderia criar lei sobre o tema, lembrando o artigo 5º, inciso XXXIX da Constituição Federal: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Lewandowski citou, inclusive, o caso em que a Primeira Turma absolveu, por unanimidade, o deputado Marco Feliciano (Pode-SP) por “crime de homofobia".

Celso de Mello, porém, interrompeu o julgamento para afirmar que seu voto – lido ao longo de duas sessões inteiras em fevereiro –, que inaugurou a linha vencedora, não cria “tipo penal”, o que seria impossível para o Judiciário. Na verdade, segundo Celso de Mello, o conceito de racismo estabelecido pelo STF em 2003 se aplicaria às “condutas de homotransfobia".

Pela mesma razão, segundo Mello, não se trata de “analogia in malam partem” – jargão jurídico para designar aplicação analógica da lei, sanção ou interpretação penal de modo a punir quem, sem essa aplicação analógica, não estaria cometendo crime –, o que é proibido no direito penal. “A noção de racismo é ampla”, disse o ministro.

Já o Marco Aurélio citou os dados do Grupo Gay da Bahia [leia mais abaixo] para reconhecer a situação de vulnerabilidade da população LGBT, mas negou a tese da omissão e da equiparação. Segundo o ministro, “criar tipo penal provisório por decisão judicial” é incompatível com “qualquer Estado de Direito que se pretenda democrático” – “do contrário, veríamos usurpada a competência privativa do Congresso Nacional em legislar sobre matéria penal”, afirmou ainda. “Não vivêssemos tempos tão estranhos, o pleito soaria extravagante”, sentenciou.

As ações foram propostas pelo PPS e de e pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT). O pedido de responsabilização civil do Estado e subsidiária dos parlamentares pela omissão foi rejeitado por todos os ministros.

Julgamento se conclui após intensas disputas políticas

A Frente Parlamentar Evangélica (FPE) vinha tentando impedir o julgamento desde que tomou conhecimento da ação, em fevereiro. Sob pressão e em meio a negociações entre os três poderes, Toffoli adiou o julgamento cinco vezes ao longo de quatro meses, para que o Congresso pudesse avançar no tema. As negociações, no entanto, não prosperaram, e Toffoli vinha sofrendo pressões para a conclusão dos processos, principalmente por parte do decano (ministro mais antigo), Celso de Mello.

Mais uma vez, nesta quinta-feira, pouco antes das 13h, designado pelo presidente da FPE, deputado Silas Câmara (PRB-AM), o deputado Sóstenes Cavalcanti (DEM-RJ) apresentou um pedido para que o presidente do Supremo retirasse as ações de pauta, com base no projeto de lei que a FPE protocolou nesta quarta-feira (12).

“Suprimida a alegada omissão legislativa, não se encontra justificativa para a continuidade do referido julgamento, uma vez que a fundamentação da ADO 26 cinge-se precisamente na alegada necessidade de preencher o vácuo jurídico causado pela ausência de uma norma específica aplicável aos atos de violência que venham a ser práticos em decorrência da transexualidade, ou da orientação sexual diversa da heteronormatividade, que venha a ter um indivíduo”, diz o documento da FPE.

O projeto de lei cria causas de aumento de pena, entre um terço e metade, nos crimes de homicídio e lesão corporal "se o crime for motivado pela transexualidade e/ou orientação sexual da vítima".

Os evangélicos não aceitam inscrever na lei a expressão "identidade de gênero", por entenderem que é uma porta de entrada á ideologia de gênero. Parte da militância LGBT aceitaria trocar a expressão por "discriminação contra as pessoas transgênero". Na terminologia LGBT, contudo, o termo "transexualidade", escolhido pela FPE, não abrange todas as pessoas transgênero.

A proposta também inclui no Código Penal a previsão de que "para fins de aplicação desta lei, não se considera como transexualidade e/ou orientação sexual, as práticas de pedofilia e zoofilia.

O PL dos evangélicos foi protocolado cerca de um mês depois de abandonarem a tentativa de consenso sobre o tema, que negociavam com PT e PSOL. A FPE considerou um ataque ao Congresso a opinião dos ministros do STF, no último dia 23 de maio, de que o tribunal poderia declarar a omissão do Legislativo mesmo se houvesse propostas sobre o tema tramitando no Congresso.

Na ocasião, Celso de Mello lembrou que os quatro ministros que votaram em fevereiro foram denunciados por “suposto” crime de responsabilidade. “Falta de decoro não tem aplicação ao caso”, afirmou. “Na independência dos juízes reside a independência da magistratura, e sem juízes independentes não há cidadãos livres […] A intolerância foi ‘processualizada’ perante o Senado Federal por essa absurda denúncia, simplesmente por quatro juízes exercerem seu dever jurisdicional”, disse ainda.

O ministro Fux também foi duro na resposta, durante seu voto naquela ocasião. “[O pedido de impeachment]É um ato atentatório à dignidade da jurisdição. Se, por esse motivo [criminalizar a homofobia], a corte tiver que sofrer algum tipo de retaliação, que soframos todos nós”, disse o ministro. “Se esse requerimento não tivesse sido precedido desse episódio, eu confesso que ponderaria que nós deveríamos ponderar um critério de prudência política […] Não se trata de retaliação, trata-se de postura judicial: ou o Judiciário é independente, ou o Judiciário é subserviente”, completou.

Depois da debandada da FPE, sem consenso, na quarta-feira passada (5), com uma manobra, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara (CDH) aprovou um projeto de deputados do PT sobre o tema, mas parlamentares conservadores avaliam que o texto, com a redação atual, não tem condições de avançar na casa.

No Senado, a CCJ já votou em primeiro turno um terceiro projeto, mas o texto foi retirado de pauta depois que os senadores Marco Rogério (DEM-RO), Selma Arruda (PSL-MT) e Daniella Ribeiro (PP-PB) apresentaram emendas ao projeto.

Dados sobre violência contra população LGBT são controversos

A principal fonte de estatísticas sobre a violência contra a população LGBT, citada inclusive pelos ministros do STF em seus votos, é o levantamento anual do Grupo Gay da Bahia (GGB), produzido há 39 anos e que este ano foi colocado em dúvida por uma revisão de pesquisadores independentes. Em entrevista à Gazeta do Povo em março, o antropólogo Luiz Mott, fundador do GGB, reconheceu o problema, mas creditou-o à falta de dados oficiais – atualmente, o governo não organiza nenhum levantamento oficial. O que mais se aproxima os números do Disque 100, que recebe denúncias de violações de Direitos Humanos.

“Nós somos os primeiros a reconhecer que nosso levantamento é incompleto, porque não é feito por órgãos oficiais, que deveriam ter acesso aos relatórios anuais das delegacias de polícia, dos fóruns dos estados, dos fóruns municipais, das secretarias de segurança pública e de direitos humanos”, afirmou Mott. “É claro que há dados contraditórios, às vezes equivocados, mas não chegam a 5%”, disse ainda.

O problema é que a revisão independente encontrou equívocos bem maiores que os 5%. O grupo de pesquisadores checou cada um dos 347 casos contabilizados como morte homofóbica no levantamento de 2016, usando a mesma metodologia do GGB: o recurso a notícias de jornal e internet. A conclusão do grupo é que em 49,2% dos casos a informação é inconclusiva, em 38,8% não houve motivação homofóbica nas mortes, o que só foi observado em 12% dos casos.

Em entrevista à Gazeta do Povo, o biólogo Eli Vieira, homossexual que já questionou o pastor Silas Malafaia por ter afirmado que boa parte dos homossexuais tinha histórico de abusos na infância, explicou que há várias inconsistências metodológicas no levantamento.

“Apesar do relatório se referir ao Brasil, estão incluídos seis casos de mortes no exterior. Há alguns casos duplicados. Em alguns casos descobrimos uma leitura incompleta do relato jornalístico: por exemplo, um casal heterossexual supostamente viciado em drogas foi assassinado por um traficante no Ceará. Aparentemente, o caso foi incluído pelo GGB somente porque a manchete omitiu o sexo da mulher, dando a entender erroneamente que poderia ser um casal gay”, disse.

Os organizadores do levantamento defendem que a inclusão de certas mortes, como suicídio, se justifica porque a homofobia no Brasil é “estrutural” – raciocínio também aceito pelos ministros. A revisão, contudo, contesta esse raciocínio circular: “Casos incertos foram incluídos nos dados porque a homofobia é estrutural. A homofobia é estrutural porque esses dados mostram.

Entenda a novela sobre a criminalização da homofobia:

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