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Faz tempo que Gregório Duvivier está querendo ser preso, embora certamente saiba que não o será. A questão é saber por que, mesmo provavelmente sabendo, ele faz a pergunta e por que, afinal de contas, ele não seria preso. As duas questões estão ligadas. 

Em 2015, durante um evento promovido pela equipe do filme “Quebrando o Tabu”, em São Paulo, ele declarou ter em casa dois pés de maconha e foi além: “Já estou falando isso há um ano, esperando a polícia bater lá em casa e não bate. Já falei com todas letras! (...) Já falei isso mil vezes. Me prendam! É proibido isso. Por que não estão me prendendo?”. Diante do mistério, o humorista ensaiou uma hipótese: “É porque sou branco, rico, moro no Rio de Janeiro, no Sudeste, etc. e tal”. À época, as declarações viralizaram nas redes. 

No início de março, Duvivier repetiu a dose em uma postagem lacradora no Facebook: bonachão, aparece sorrindo em close em meio a folhas que parecem ser da planta da maconha. “Não preciso pagar por maconha faz MUITO tempo”, lê-se. A postagem teve mais de 100 mil reações e 25 mil compartilhamentos no Facebook. Desnecessário dizer, o tema viralizou novamente. 

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Alguém com a formação e as companhias de Duvivier saberia que, desde 2006, com a promulgação da Lei 11.343/2006 – a Lei de Drogas –, usuários de maconha não podem ser presos. Houve até uma discussão se o porte para uso pessoal teria sido descriminalizado, mas o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que, sim, porte para uso pessoal continua a ser crime, embora um crime bastante peculiar, que só pode ser punido, de acordo com o artigo 28 da lei, com advertência sobre os efeitos das drogas; prestação de serviços à comunidade; ou medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. 

Quem planta maconha para uso pessoal se submete às mesmas penalidades. O §1º do mesmo artigo diz que “[à]s mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica”. Antes da lei de drogas, ter um pé de maconha ou um alqueire eram condutas igualmente equiparadas ao tráfico. 

A mesma lei garante que, sobre usuários ou plantadores para uso pessoal, “não se imporá prisão em flagrante, devendo o autor do fato ser imediatamente encaminhado ao juízo competente”. Na prática, se um policial flagrar alguém fumando maconha e resolver ir além da costumeira bronca, ele será encaminhado à delegacia, onde assinará um termo circunstanciado. Depois, deverá comparecer a um Juizado Especial Criminal (JEC) para uma audiência em que o juiz decidirá se aplica uma das penalidades previstas no artigo 28. 

Nada disso significa, porém, que Gregório Duvivier possa plantar maconha. Isso é crime. A autoridade policial poderia, com base nas declarações, entender que há flagrante de delito, entrar na casa de Duvivier, recolher os pés de maconha para ser enviados ao instituto de criminalística para averiguação da toxicidade da substância e posterior destruição das plantas. 

Eventualmente, Duvivier seria levado até a delegacia, onde, frise-se, não poderia ficar preso, a não ser que se apure que, além de usuário, Duvivier é traficante. É até compreensível que, diante de tantos crimes graves no Rio de Janeiro, a polícia não tenha feito nada sobre os pés de maconha de Duviver desde 2015. Questionada sobre o fato, a polícia civil não respondeu até a publicação deste texto e o Ministério Público disse que não era responsável por isso. 

Além da sobrecarga de trabalho das autoridades fluminenses, Duvivier pode estar blefando. E se ele não tiver dois pés de maconha em casa? Imaginem a situação do delegado. Nesse caso, a autoridade policial poderia recolher os indícios das declarações e fazer um pedido de busca e apreensão ao Judiciário; ela estaria assim mais protegida para agir e, depois, não ser acusada de autoritária – que é exatamente o que Duvivier deseja. 

Aqui chegamos ao cerne do problema. Se a polícia não faz nada diante das declarações do humorista, ele sai ganhando, porque confirma sua tese de que tem “passe livre” por ser branco, rico e privilegiado – embora não se ignore que, com alguma razão, setores liberais e à esquerda critiquem a lei de 2006 por deixar inteiramente aos juízes distinguir, com base em critérios subjetivos, situações de tráfico das de porte para uso pessoal. Essa é uma outra discussão. 

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Por outro lado, se a polícia resolver fazer uma batida em sua casa, Duvivier sai ganhando também, porque fará de si, com a ajuda de seu entourage, uma vítima de uma polícia “autoritária” e de uma política de drogas “autoritária”. Atualmente, o STF discute a descriminalização do porte de drogas para uso pessoal com base em um recurso extraordinário de um preso que foi flagrado com drogas em sua marmita na cadeia. Não seria muito apelativo discutir a questão com base no processo de um artista injustiçado pela polícia? O nome disso, e que deve ser mantido em mente em tempos de tamanha politização do direito, é litigância estratégica. Duvivier se transformaria no mártir de uma causa – embora se deva dizer que a humanidade já produziu mártires mais corajosos, que enfrentaram consequências pessoais bem mais graves que as penas do artigo 28 da Lei de Drogas.

Então, a polêmica é um jogo de ganha-ganha para Duvivier e aqueles que compartilham de sua agenda. Mas isso não significa que não deva ser discutida, porque há outros valores importantes em jogo. O humorista pode até estar em seu direito de liberdade de expressão, protegido por decisões do STF, de defender a mudança na política de drogas, se se entender que ele não está incitando o crime (artigo 286 do Código Penal) ou fazendo apologia de fato criminoso (artigo 287 da mesma lei) – e, de todo modo, ele não seria preso, porque a pena desses crimes é baixa. Defender a mudança da lei e de políticas públicas faz parte do jogo democrático e é saudável para a vitalidade política. 

Mas, do mesmo modo que as marchas da maconha podem ocorrer sem que haja nelas consumo de drogas, uma coisa é Duvivier manifestar-se, outra é desrespeitar a lei e tripudiar sobre ela, alardeando seus pés de maconha pelas redes sociais. Isso afronta a dignidade da Justiça,  enfraquece o poder normativo das leis e desrespeita a vontade democrática que, até agora, deseja que política de drogas continue como está. Isso tudo é ainda mais grave porque o humorista tem – goste-se ou não – influência considerável sobre parcela da juventude brasileira. De alguém com esse poder se esperaria mais responsabilidade. No jogo de ganha-ganha de Duvivier, perdemos todos nós.

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