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| Foto: Chip Somodevilla/AFP

O direito à liberdade de expressão é necessário justamente quando as ideias de um indivíduo ofendem outras pessoas ou zombam das ortodoxias da maioria. E esse direito protege mais do que a liberdade de falar o que quiser; ele preserva a liberdade de não expressar as ideias de outros.

Portanto, em uma decisão clássica de “discurso obrigatório”, a Suprema Corte protegeu o direito de não ser obrigado a dizer, fazer ou criar algo que expresse uma mensagem que o indivíduo rejeita. Em um caso mais notável, West Virginia versus Barnette (1943), o tribunal impediu um estado de negar o direito de Testemunhas de Jeová de frequentarem escolas públicas se eles se recusassem a saudar a bandeira. No caso Wooley versus Maynard (1977), o tribunal impediu que o estado de New Hampshire negasse às pessoas o direito de dirigir se elas se recusassem a expressar nas suas placas de veículos o lema libertário do estado “Viva Livre ou Morra”.

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A Suprema Corte do Estados Unidos delibera, em julgamento iniciado na última terça-feira (5), se o estado do Colorado poderá negar a Jack Phillips, dono da Masterpice Cakeshop, o direito de vender bolos de casamento personalizados por ele não poder, de acordo com a sua consciência, criar e vender para casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Phillips, que administra a confeitaria desde 1993, vende itens prontos para qualquer pessoa, sem questionar. Mas ele não pode usar as suas habilidades artísticas para criar bolos celebrando temas que ferem as suas convicções morais e religiosas. Portanto, ele não pode criar bolos para festas de divórcio, despedidas de solteiro vulgares, festas de halloween ou casamentos entre pessoas do mesmo sexo.

A ordem do estado do Colorado para que ele criasse bolos para casamentos gay (ou parasse de fazer bolos para qualquer evento) o forçaria a criar produtos expressivos carregados de uma mensagem que ele rejeita. Isso é inconstitucional.

Algumas pessoas temem uma bola de neve, argumentando que qualquer coisa pode ser expressiva. E se alguém se recusar a alugar cadeiras para uma festa de casamento? Ou se donos de restaurantes excluírem pessoas negras porque pensam que Deus aprova a segregação? Se abrirmos uma exceção para Phillips, não teremos que deixar essas pessoas se isentarem de leis antidiscriminação?

O ponto não é que obrigar as pessoas a venderem um produto ou serviço para um evento sempre as obrigaria a apoiarem o evento. O ponto é que obrigá-las a criar uma mensagem celebrando o evento faria isso. E está muito claro que o “discurso” da Primeira Emenda da Constituição Americana inclui trabalhos criativos (“discurso artístico”), de pinturas a videogames.

Os bolos de Phillips são admirados justamente pelas suas qualidades estéticas, que refletem as suas ideias e sensibilidades. Uma escultura de gesso do mesmo tamanho e aparência seria protegida [pela Primeira Emenda] sem questionamento.

Diferentemente de cadeiras ou serviços de restaurante, bolos de casamento personalizados estão protegidos pela Primeira Emenda. Criá-los não pode ser classificado de forma legítima como “comportamento, não expressão” para justificar coerção estatal.

Afinal, o propósito estético de bolos de casamento – com a variedade e complexidade dos seus possíveis designs – torna-os tão capazes de carregar conteúdos expressivos quanto outros discursos artísticos. Os bolos de Phillips são admirados justamente pelas suas qualidades estéticas, que refletem as suas ideias e sensibilidades. Uma escultura de gesso do mesmo tamanho e aparência seria protegida sem questionamento. O fato de bolos de casamento serem comestíveis não vem ao caso. O seu objetivo principal não é saciar a fome ou agradar o paladar; é estética e expressão. Eles estão presentes em festas de casamento como o ornamento principal e são parte da programação, como cenários de uma peça de teatro. E ninguém nega que obrigar artistas a criarem cenários para peças de teatro promovendo uma mensagem imposta pelo Estado seria inconstitucional.

Se bolos de casamento são expressivos, seja por meio de palavras ou design festivo, então qual é a sua mensagem? Podemos descobrir pelo seu contexto, já que, como o tribunal aponta, o contexto simbólico de um item “pode dar significado ao símbolo”. Assim, o tribunal considerou que uma bandeira de ponta-cabeça com um sinal da paz carrega uma mensagem antiguerra – protegida como discurso – devido ao contexto em que é exibida. Do mesmo modo, o contexto de um bolo de casamento especifica a sua mensagem: o casal contraiu matrimônio. Quando o contexto específico é um casamento entre pessoas do mesmo sexo, a mensagem é algo que Phillips não acredita e sua consciência não permite a afirmação. Então obrigá-lo a criar um bolo para a ocasião é um discurso artístico obrigatório.

Vale destacar que esse argumento não cobriria todos os pedidos para itens artísticos. A lei pode obrigar fotógrafos a fazerem retratos para latinos assim como para brancos, já que isso não os obriga a criar arte carregando uma mensagem que eles rejeitam, que é o que toda doutrina de discurso obrigatório proíbe. Mas bolos de casamento personalizados carregam uma mensagem específica para cada casamento: “isso é um matrimônio”.

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O Colorado pode ainda assim justificar a obrigatoriedade? Algumas pessoas dizem que sim: combater a discriminação – comportamento desaprovado, não discurso – é o objetivo geral da lei de acomodação pública do Colorado. E se esse objetivo for legítimo, segundo elas, então também seriam todas as aplicações dessa lei.

Notavelmente, considerando o quanto é comum utilizar este tipo de argumento, o tribunal já o considerou e rejeitou explicitamente duas vezes. No caso Hurley versus Irish-American Gay, Lesbian, and Bisexual Group of Boston (1995), o tribunal determinou que, apesar de leis antidiscriminação “de modo geral” não violarem a Primeira Emenda, elas o fazem quando são “aplicadas de modo peculiar” que carrega discurso. Nesse caso e no caso Boy Scouts of America versus Dale (2000), o governo disse que havia discriminação por orientação sexual, em ambos os casos sob leis de acomodação pública. O objetivo em ambos era combater a discriminação com base em oposição à “conduta homossexual”. Ainda assim, o tribunal afirmou nas duas vezes que esse objetivo genérico não justificaria a coerção que interferiu com o conteúdo da expressão das pessoas.

Nesses casos, acima de tudo, o ato exato colocado em pauta é apenas a escolha do locutor (“discriminação”) entre quais ideias expressar – exatamente o que a Primeira Emenda visa proteger. Como o tribunal disse no caso Hurley, o “objetivo de toda proteção ao discurso” é “proteger essas escolhas de conteúdo que aos olhos de uns podem parecer equivocadas, ou até mesmo ofensivas”.

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Então, para usar a força da lei para obrigar Phillips a criar bolos de casamento gay, o Colorado deve encontrar outro objetivo. É garantir que todos os casais tenham acesso a um bolo? Mas eles têm – o Colorado sequer sugeriu o contrário. Escolhas como a de Phillips somam “uma grande quantidade em um país de 300 milhões de pessoas”, segundo Andrew Koppelman, pesquisador constitucional e defensor dos direitos gays.

A única alegação restante é que a escolha expressiva de Phillips causa o que alguns chamam de dano dignitário: o sofrimento de confrontar ideias que uma pessoa considera degradantes ou dolosas. Ainda assim, aceitar essa justificativa destruiria o que o tribunal em Texas versus Johnson (1989) chamou de “princípio do alicerce” – especificamente, que “o governo não pode proibir a expressão de uma ideia simplesmente porque a sociedade considera essa ideia ofensiva”.

De certo modo, o Colorado entende isso. O estado recusou três vezes a obrigatoriedade de confeiteiros pró-gay fornecerem a clientes cristãos bolos que a sua consciência não permitiria criar, considerando as suas convicções acerca de sexualidade e casamento. O Colorado estava certo em reconhecer os seus direitos da Primeira Emenda contra discurso obrigatório. E estava errado em negar esse mesmo direito a Jack Phillips.

*** Robert P. George é professor de Jurisprudência na Universidade de Princeton. Sherif Girgis é aluno de pós-graduação na Yale Law School e doutorando em Filosofia em Princeton.

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