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Ferragens do acidente entre o Passat do ex-deputado estadual Carli Filho e o Honda Fit de Gilmar Yared, em 2009. | Átila Alberti/
Tribuna do Paraná
Ferragens do acidente entre o Passat do ex-deputado estadual Carli Filho e o Honda Fit de Gilmar Yared, em 2009.| Foto: Átila Alberti/ Tribuna do Paraná

Começou nesta terça-feira (27) o julgamento de Luiz Fernando Ribas Carli Filho. Quase nove anos após o Passat do então deputado estadual atingir um Honda Fit com dois jovens, que morreram na hora, Carli Filho está sentado no banco dos réus do Tribunal do Júri de Curitiba. Desde a denúncia por duplo homicídio com dolo eventual pelo Ministério Público do Paraná (MP-PR), em agosto de 2009, a defesa do ex-político brigou na Justiça para que o crime fosse desclassificado para homicídio com culpa consciente. Foram interpostos nada menos que 33 recursos, sem sucesso.

A discussão vai muito além das estratégias processuais da defesa e de quem vai decidir se Carli Filho é culpado – um júri ou um juiz. Ela envolve a proporcionalidade que a resposta estatal deve ter em face de uma conduta reprovável – moral e criminalmente. Se Carli Filho agiu com dolo eventual, a punição será a mesma de um assassino que quis matar sua vítima; se agiu com culpa consciente, a punição será a mesma de quem agiu irresponsavelmente, desencadeou uma tragédia, mas nunca quis que aquilo acontecesse.

Professor da Escola da Magistratura do Paraná (Emap), Marcelo Lebre explica que o Código Penal prevê, estritamente, apenas as modalidades de dolo e culpa. De modo simplificado, o dolo pressupõe uma vontade, um “querer”, enquanto a culpa vai justamente pelo caminho do “não querer”. 

Configura-se a culpa quando não há intenção de praticar um delito, mas ele acaba ocorrendo porque há uma quebra do dever de cuidado, representada pela negligência, imprudência ou imperícia. A doutrina penal, porém, em conjunto com a jurisprudência, criou outras categorias de dolo e culpa. 

“Há o dolo direto, praticado por quem quer o resultado e comete o ato, e o eventual, quando se assume o risco de produzir o resultado”, afirma Lebre. O advogado criminalista Cassio Rebouças complementa que se trata de “consentir previamente com um resultado, caso esse resultado venha a ocorrer”. 

Já a culpa costuma ser dividida em inconsciente e consciente. A primeira é a culpa propriamente dita, praticada sem nenhuma previsão. Um exemplo, diz Lebre, é o sujeito que passa num semáforo ligado em alerta sem parar, à noite, e acaba atropelando alguém. A culpa consciente, contudo, mostra-se problemática, porque a linha que a separa do dolo eventual é muito tênue. 

“A pessoa prevê, mentalmente, a possibilidade de um resultado danoso, mas acredita que com ela não vai acontecer, que é impossível”, afirma o professor, que cita como exemplo hipotético um motorista profissional que trafega em alta velocidade, acreditando que não vai perder o controle do carro, e provoca um acidente. 

Só que a lei não fornece uma resposta certeira quando a dúvida é suscitada, mesmo que algumas pessoas digam que há “fórmulas” como “direção + bebida + acidente = dolo eventual”. Isso não existe, devendo cada caso ser analisado em seus meandros – mas a soma dos fatores pode ser um indicador forte de dolo eventual. 

Defesa

O esforço da defesa de Carli Filho em tentar desclassificar o crime para homicídio culposo se justifica pela pena imposta aos delitos. O homicídio doloso é punível com reclusão que varia de seis a 20 anos, podendo ser aumentada em até 2/3 se houver uma segunda vítima, e é submetido ao Tribunal do Júri. 

O homicídio culposo, por sua vez, cometido na direção de veículo automotor, tem previsão no Código Brasileiro de Trânsito (CTB) e pena de detenção, de dois a quatro anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor, além de ser julgado pela Vara Especializada em Crimes de Trânsito – ou seja, por um único juiz. É possível, ainda, que a detenção seja convertida em uma pena restritiva de direitos, como a prestação de serviços à comunidade. 

Rebouças diz ser complicado analisar os crimes de trânsito que envolvem o consumo de bebida alcoólica sob a ótica do dolo eventual, porque quem conduz o veículo pode, muito bem, ser vítima. “Sobre alguém que dirige embriagado, se você disser que ele, de fato, assume o risco de se envolver num acidente, ele também consente com o resultado da própria morte”, pondera.

Apesar de não existir uma equação, a desclassificação de dolo eventual para culpa consciente no caso de Carli Filho foi complicada não pelo fato de que ele dirigia com um nível alto de álcool no sangue – 7,8 decigramas por litro, quatro vezes mais que o permitido –, mas também porque estava a mais de 160 km/h e com 130 pontos na CNH – suspensa, portanto. 

Jurisprudência

Segundo os especialistas, os julgados oscilam bastante quando o assunto é trânsito e embriaguez. De acordo com Lebre, até pouco tempo atrás, a jurisprudência caracterizava, quase que de forma maciça, situações de atropelamento, por exemplo, como casos de culpa consciente. Alterações recentes no CTB, no entanto, como a chamada Lei Seca (Lei 12.760/2012), sensibilizaram a Justiça quanto à questão, e o reconhecimento de dolo eventual passou a ser mais comum. 

A matéria é delicada porque, na prática, há decisões sobre casos semelhantes que ou aplicam a pena do CTB, considerada leve por muitos, ou submetem o réu ao Tribunal do Júri, o que gera insegurança jurídica. “Há pouco tempo eu vi um caso de embriaguez ao volante com morte em que o réu foi condenado a 92 anos de prisão pelo júri. Às vezes, quem cometeu um caso semelhante vai ter que apenas prestar serviços à comunidade”, conta Rebouças. 

Mudanças na legislação

Uma mudança recente no CTB, no entanto, pode colocar uma pá de cal na discussão. Sancionada no último mês de dezembro, a Lei 13.546/2017 trouxe ao código a previsão expressa da embriaguez como culpa. 

A nova legislação alterou o dispositivo do homicídio culposo praticado na condução de veículo automotor, estabelecendo pena específica para quando o delito é praticando devido à embriaguez ao volante – cinco a oito anos de reclusão se resultar em morte. Com a mudança, a nova redação do CTB será:

Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor:

(...)

§ 3o Se o agente conduz veículo automotor sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: 

Penas - reclusão, de cinco a oito anos, e suspensão ou proibição do direito de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

Assim, deve ganhar força a tese da culpa consciente, pois o homicídio culposo em estado de embriaguez foi disciplinado pela lei. A nova configuração legal, porém, não se aplica ao caso de Carli Filho. O texto entra em vigor somente em meados de abril. 

O projeto também previa a substituição de pena de prisão por restritiva de direitos nos crimes de lesão corporal culposa e lesão grave ocasionadas por participação em rachas, quando a duração da pena de prisão for de até quatro anos. O trecho, porém, foi vetado pelo presidente Michel Temer.

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