• Carregando...
A Corte Interamericana de Direitos Humanos entende que o país não defendeu a estabilidade de emprego e a liberdade de expressão de um trabalhador | CIDH/Divulgação
A Corte Interamericana de Direitos Humanos entende que o país não defendeu a estabilidade de emprego e a liberdade de expressão de um trabalhador| Foto: CIDH/Divulgação

Em 1989, um sindicalista peruano foi demitido após fazer críticas à empresa onde trabalhava em entrevista à revista “La Razón”. Apesar de recorrer a todas as instâncias na Justiça, Alfredo Lagos del Campos perdeu a causa nos tribunais peruanos. Agora, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) acaba de condenar o país por não garantir a estabilidade no emprego e a liberdade de expressão do trabalhador.

Leia a sentença na íntegra.

A decisão é do dia 31 de agosto e foi publicada na semana passada. A corte definiu que o Peru, de acordo com as convenções internacionais, deverá publicar no prazo de seis meses o resumo da sentença em seu diário oficial, em um jornal de ampla circulação do país e a íntegra do documento em um site oficial. Ao mesmo tempo, estipulou indenização por dano material de US$ 28 mil, por entender que o trabalhador ficou desamparado, e mais US$ 30 mil por não ter tido acesso à pensão e outros benefícios sociais. Por danos morais, a Corte previu uma indenização de US$ 20 mil. Ainda foram determinadas reparações pelas custas do processo, outros US$ 20 mil. Os valores devem ser repassados ao sindicalista no prazo de um ano. As determinações tiveram como fundamento os artigos 1.1, 13, 8 e 16 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH).

Leia também: Com nova lei, número de ações trabalhistas cai mais de 90% em uma semana

Não se sabe ainda se o Peru cumprirá essas determinações. Caso não o faça, a CIDH poderá enviar um relatório para a Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), que pode adotar medidas para constranger o país a cumprir as determinações. Porém, o Peru e outros países não têm cumprido muitas dessas sentenças e têm feito manobras para apresentar na OEA propostas de mudanças nas competências da CIDH.

“As indenizações em dinheiro costumam ser cumpridas pelos Estados”, afirma Julia Cruz, bolsista pela Harvard Law School na ONG Conectas Direitos Humanos. “Medidas de outra natureza, como punir e investigar culpados por crimes, costumam trazer mais problemas. O Brasil, por exemplo, até hoje não cumpriu esse aspecto no caso Guerrilha do Araguaia”.

Ainda que polêmica, a decisão é considerada “paradigmática” por Flávia Piovesan, que acaba de ser eleita como membro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos para os próximos anos. Para a jurista, decisões como essa podem influenciar a decisões dos tribunais em toda a América Latina, também em relação à reforma trabalhista no Brasil, em defesa dos chamados direitos econômicos, sociais e culturais (DESC). Porém, quanto a uma aplicação similar no Brasil, afirmou que não é possível garantir um resultado na mesma medida.

“É preciso um balanço crítico dos novos parâmetros da Corte para os DESC – que valem para toda a região – com a efetivação da reforma trabalhista no Brasil, mas, no momento, temos mais perguntas do que respostas para a questão”, admite.

Segundo Julia Cruz, é importante ressaltar na decisão o inédito reconhecimento dos direitos econômicos, sociais e culturais de maneira autônoma. Quando reconhecidos de forma conexa a outros direitos, não é feita uma análise pormenorizada do que a violação daquele direito específico significou na vida da vítima. “Se a Corte analisa uma violação do direito à saúde como violação do direito à vida, por exemplo, não são analisadas a especificidades da violação e as reparações não seriam focadas na saúde em si, mas no impacto em relação à vida ou à vida digna”, explica

Piovesan afirma que a determinação da Corte cria um ambiente positivo na América Latina para a promoção e efetivação desses direitos. “Nossa região é a mais desigual do planeta, e os vitimados são principalmente afrodescendentes e indígenas. Precisamos de diagnósticos claros e balanços precisos sobre a situação dos direitos econômicos, sociais e culturais. Creio que o debate sobre o tema irá crescer na nossa região”. Discussões como essa, segundo ela, serão tratadas com mais profundidade no primeiro foro interamericano entre a Corte e a Comissão Interamericana, nos dias 4 e 5 de dezembro deste ano, em Washington.

Em nota divulgada no último dia 15 de novembro, a Relatoria Especial sobre Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (REDESCA) da Comissão Interamericana fez um chamado para que a sociedade civil “junte esforços para o uso estratégico das ferramentas do Sistema Interamericano com o objetivo de cristalizar a proteção efetiva das pessoas e vítimas coletivas de violações aos seus DESC [direitos econômicos, sociais e culturais] na região”.

Leia também: Tudo sobre a reforma trabalhista

Entenda o caso

Em 1989, Alfredo Lagos del Campos, cidadão peruano, era funcionário da Ceper-Pirelli, fabricante de produtos de infraestrutura para telecomunicações, e presidente da Assembleia Geral do Comitê Eleitoral da Comunidade Industrial de sua empresa.

Após ter revelado, em entrevista à revista “La Razón”, que a diretoria da empresa intervinha nas eleições que determinavam os representantes dos trabalhadores na Comunidade Industrial – entidade sindical que garantia aos trabalhadores o direito à participação e gestão do patrimônio empresarial – Lagos foi demitido.

A justificativa dada pela Ceper-Pirelli para a demissão de Lagos foi a alegação de que o funcionário, ao conceder a entrevista, havia descumprido com suas obrigações trabalhistas e cometido crime de injúria contra seus empregadores. A demissão foi confirmada pelos tribunais peruanos, mesmo após Lagos recorrer às instâncias máximas de justiça de seu país.

A Corte Interamericana considerou que o Estado peruano não protegeu o direito à estabilidade de emprego de Lagos e ainda restringiu sua liberdade de expressão e pensamento ao legitimar uma demissão motivada por um suposto crime de injúria - quando, na verdade, Lagos havia feito declarações de interesse público.

No tocante à estabilidade de trabalho como um direito econômico, social e cultural, a Corte estabeleceu que as obrigações de um Estado, mesmo em relações de trabalho privadas, se traduzem nos seguintes deveres: (i) adoção das medidas adequadas para a regulação e fiscalização de tal direito; (ii) proteção dos trabalhadores e trabalhadoras, por meio de órgãos competentes, contra a demissão injustificada; (iii) em caso de demissão injustificada, remediar a situação (com a recolocação em posto de trabalho, indenização ou outras prestações previstas na legislação nacional); (iv) disposição de mecanismos efetivos de reclamação frente a uma situação de demissão injustificada, a fim de que o acesso à justiça e à tutela judicial efetiva de tais direitos sejam garantidos.

A Corte definiu, ainda, que foram cometidas violações à liberdade de associação em âmbito trabalhista, uma vez que Lagos, ao ser demitido, não pode mais representar os trabalhadores de sua empresa e nem comparecer às reuniões do Comitê Eleitoral que ele mesmo convocou.

Foram identificadas também violações às garantias judiciais e proteção judicial de Lagos. A Corte observou que o poder judiciário peruano perpetrou irregularidades e omissões durante as tentativas de Lagos em interpor recursos contra a decisão que definiu sua demissão como justificada e legal.

Como forma de reparação aos danos materiais e imateriais, o Estado peruano deverá pagar a Lagos o correspondente a US$ 98 mil.

Entenda o Sistema Interamericano de Direitos Humanos

Em 1969, com a adoção da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, estruturou-se o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, contando com dois órgãos autônomos e não permanentes: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. A Comissão tem como objetivo a proteção e promoção dos Direitos Humanos no continente, monitorando a situação de seus Estados membros, enquanto a Corte é responsável pela aplicação e interpretação da Convenção, possuindo função consultiva e contenciosa, podendo responsabilizar internacionalmente os Estados que reconhecem sua competência e emitir pareceres consultivos sobre todos os Estados da OEA.

Os Estados signatários da Convenção podem acessar diretamente a Corte. Já indivíduos, grupos ou organizações não governamentais devem encaminhar denúncia à Comissão, que avaliará se são atingidos requisitos como o esgotamento de recursos internos, para então encaminhar o caso à Corte. Tanto o Brasil quanto o Peru aderiram à Convenção e reconhecem a competência da Corte Interamericana.

* Por Carolina Bianchini Bonini, aluna da graduação de Direito da Universidade de São Paulo, Eduardo Rocca Batista, aluno da graduação de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo e Rodrigo Emannuel, aluno da graduação de Jornalismo da FIAM-FAAM. Todos participam do curso de jornalismo e direitos humanos realizado pela Oboré em parceria com a Conectas Direitos Humanos.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]