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O presidente do STF, ministro Dias Toffoli. | Rosinei Coutinho/SCO/STF
O presidente do STF, ministro Dias Toffoli.| Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF

Matéria atualizada em 12 de fevereiro de 2019, às 19h15

Está marcado para esta quarta-feira (13) o início de um julgamento que pode ser um divisor de águas no Supremo Tribunal Federal (STF). A depender do entendimento que os ministros adotarem na Ação Direita de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26 e no Mandado de Injunção (MI) 4733, o tribunal vai avançar ainda mais sobre o Legislativo. A criminalização da homofobia esteve em discussão no Congresso Nacional entre 2001 e 2014, mas nunca foi aprovada pelo parlamento. 

Deputados da Frente Parlamentar Evangélica (FPE) reuniram-se nesta terça-feira (12) com o presidente do STF para ver se seria possível retirar o tema da pauta da Corte, mas Toffoli manteve a previsão de julgamento.

É justamente a suposta omissão do Congresso o ponto de partida dos pedidos feitos pelo Partido Popular Socialista (PPS) na ADO 26 e pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transexuais (ABGLT) no MI 4733. As ações argumentam que o Congresso está em mora (atraso) inconstitucional em editar leis que protejam homossexuais e transexuais de violência e pedem, em primeiro lugar, que a homofobia e a transfobia sejam equiparadas ao racismo. 

Como a Constituição prevê a criminalização do racismo (artigo 5º, inciso XLII) – o que de fato foi feito pela Lei 7.716/1989 – as ações pedem que o tribunal declare o Congresso omisso e fixe um prazo para que os parlamentares editem uma lei com esse teor e, na falta dela, pedem “a inclusão da criminalização específica de todas as formas de homofobia e transfobia, especialmente (mas não exclusivamente), das ofensas (individuais e coletivas), dos homicídios, das agressões, ameaças e discriminações motivadas pela orientação sexual e/ou identidade de gênero, real ou suposta, da vítima” na lei de 1989. 

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As ações fundamentam o pedido em um caso célebre que o STF julgou em 2003. O Habeas Corpus (HC) 82.424-4, que cuidou do “caso Ellwanger”, considerou o antissemitismo uma forma de racismo para fins da aplicação legal. Naquela ocasião, seguindo o voto do então ministro Maurício Corrêa, o tribunal apontou que a genética estabelecera que não havia diferenças biológicas relevantes entre os seres humanos, que seriam, em essência, todos iguais. Para a Corte, portanto, “a divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social” daria origem ao racismo. 

As ações partem deste entendimento para afirmar que “a homofobia e a transfobia constituem espécies do gênero ‘racismo’, na medida em que racismo é toda ideologia que pregue a superioridade/inferioridade de um grupo relativamente a outro”. 

“Todas as formas de homofobia e transfobia devem ser punidas com o mesmo rigor aplicado atualmente pela Lei de Racismo, sob pena de HIERARQUIZAÇÃO DE OPRESSÕES [destaque no original] decorrente da punição mais severa de determinada opressão relativamente a outra”, argumenta ainda o PPS. 

O que está em jogo 

Na penúltima sessão antes de sua aposentadoria, o relator original do caso Ellwanger, ministro Moreira Alves, avisou que o argumento poderia ser feito, quando o tribunal enveredou por este caminho. 

“Se se der ao termo constitucional ‘racismo’ a amplitude que agora se pretende dar no sentido de que ele alcança quaisquer grupos humanos com características culturais próprias, vamos ter o crime de racismo como um tipo de conteúdo aberto, uma vez que os grupos humanos com características culturais próprias são inúmeros”, escreveu – e tendo em mente apenas a aplicação do crime a outros grupos étnicos. 

A preocupação de Moreira Alves com essa extensão justifica-se pelo cuidado tradicional que sempre se teve com o Direito Penal – “o braço mais pesado do Estado”, como gostam de lembrar os criminalistas. No caso do racismo, a força deste braço é ainda maior, e se explica pela história, porque a Constituição estabelece, em seu artigo 5º, incisivo XLII, que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível”. O único outro caso de crime imprescritível atualmente é o de conspiração armada contra a ordem constitucional e o Estado democrático. 

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Por isso, Moreira Alves sentiu-se no dever de alertar que, alargando o conceito de racismo, “ter-se-á alguém que, aos dezoito anos de idade, cometer discriminação, pequena que seja, e passar abjurando esse seu comportamento até alcançar os oitenta anos, poderá, sessenta e dois anos após o fato, vir a ser condenado por ele a uma pena que é irrisória”. A Lei 7.716/1989 prevê crimes cujas penas máximas alcançam até cinco anos. 

Quem também percebeu a sinuca foi Janaina Paschoal, que além de deputada eleita pelo PSL de São Paulo é professora livre-docente da Faculdade de Direito da USP. “Quando do julgamento do Ellwanger, dada a argumentação, eu já alertei para o risco de tentarem fazer uma interpretação analógica. Desse modo, o raciocínio dos postulantes não está errado”, afirmou à Gazeta do Povo. “No entanto, há um impedimento de ordem técnica, que julgo intransponível, qual seja, justamente o princípio da estrita legalidade”, acrescentou. 

Janaina se refere a um princípio central do Direito Penal de inspiração liberal. Se ele é a arma mais pesada do Estado contra o indivíduo, deve ser usado com a máxima cautela. Na Constituição brasileira, ele está previsto no inciso XXXIX ao artigo 5º: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Na interpretação desse dispositivo, a “lei” deve ser lida apenas como o ato do Poder Legislativo e, na aplicação das leis, os juízes devem cuidar para não expandir o sentido das palavras. 

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Os autores das ações conhecem essa dificuldade e, por isso, pedem que, se o STF não equiparar a homofobia ao racismo, que pelo menos a consideram “discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”, pois o artigo XLI ao artigo 5º da Constituição prevê que a lei deverá punir essas condutas. Nesse caso, o Supremo poderia declarar o Congresso em mora, mas não determinar que os crimes previstos na Lei 7.716/1989 abrangem também condutas homofóbicas. 

“A criminalização da homofobia, como está proposta nessas ações, está direcionada a um posicionamento razoavelmente consensual no mundo cristão e trata-se de uma criminalização contra direitos e liberdades fundamentais do cidadão, especialmente a liberdade religiosa”, avalia Marcelo Azevedo, doutor em Direito Constitucional pela PUC-SP. 

“A doutrina da Igreja Católica, por exemplo, condena os atos homossexuais como desordenados – um entre tantos outros – mas o ativismo identitário moderno reduz a pessoa humana ao que é uma mera qualificação. Para o cristianismo, o ser humano não é homossexual, transexual ou heterossexual. O que se critica são os atos. As pessoas homossexuais devem ser alegremente acolhidas, com respeito, compaixão e delicadeza”, explica. 

Não é a primeira tentativa de criminalizar a homofobia pela vida judicial. Em 2014, a Primeira Turma do STF, por unanimidade, absolveu o deputado Marco Feliciano (PSC-SP) por uma postagem supostamente homofóbica no Twitter.

"A podridão dos sentimentos dos homoafetivos levam ao ódio, ao crime, à rejeição", escreveu o deputado. 

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A subprocuradora-geral da República Deborah Duprat queria enquadrar Feliciano no artigo 20 da Lei 7.716/1989, que prevê o crime de “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. O relator, ministro Marco Aurélio, considerou o tipo penal claro e lembrou justamente o inciso XXXIX da Constituição para argumentar que não há crime sem lei anterior que o defina. 

“A homofobia, ainda que careça de maior precisão conceitual, é completamente diferente do racismo, mesmo na discussão que o STF fez no caso Ellwanger”, diz Azevedo. “Essa ação está inserida nesse contexto, que está fazendo a alegria do ativismo judicial, mas há um Congresso novo e um novo Executivo eleitos, uma mudança de posições na sociedade, que deve ter reflexos nesse contexto”, avalia. 

“A criminalização da homofobia, como está proposta nessas ações, está direcionada a um posicionamento razoavelmente consensual no mundo cristão e trata-se de uma criminalização contra direitos e liberdades fundamentais do cidadão, especialmente a liberdade religiosa”, diz Azevedo. 

Incerteza conceitual 

Críticos da proposta de criminalizar a homofobia em geral lembram que os homossexuais e transexuais já estão protegidos pelas leis que proíbem o homicídio e as lesões corporais, por exemplo. Para além disso, citam a falta de clareza na definição de homofobia. “Ativistas têm usado indiscriminadamente a expressão para todo e qualquer fato, ação, omissão ou falha de comportamento em face do público LGBT independente do motivo ao final descoberto: uma simples crítica ou discordância se torna, preconceito, homofobia”, diz Candido Alexandrino Neto, membro do Conselho Fiscal do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR) e mestre em Direito Constitucional. 

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Um reflexo disso podem ser os dados do Grupo Gay da Bahia (GGB), principal fonte citada sobre assassinato de homossexuais e transexuais. O geneticista Eli Vieira, homossexual que tem se dedicado a criticar as pautas identitárias, divulgou resultados preliminares de uma reanálise dos do GGB. 

O esforço envolveu revisitar, a partir das fontes na imprensa, de onde partem os relatórios do GGB, 184 dos 347 casos de mortes por supostas intenções homofóbicas em 2017. Segundo Vieira, apenas 6% dos casos se confirmaram na reanálise, 42% foram considerados de motivação não homofóbica e 47%, inconclusivos. No mesmo ano, o Brasil registrou 63.800 mortes violentas, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 

A discussão legislativa 

A criminalização da homofobia esteve em pauta no Congresso entre 2001 e 2014. O pleito ganhou relevância nacional durante a tramitação Projeto de Lei (PL) 122/2006. De autoria da então deputada Iara Bernardi (PT-SP), em 2001, o projeto foi aprovado na Câmara em 2005 e tramitou no Senado – primeiro avulso, depois apensado à proposta de novo Código Penal – por mais oito anos até ser arquivado. A proposta inicial previa apenas a imposição de sanções administrativas, a exemplo do que já fazem alguns estados, a discriminação contra homossexuais e transexuais. 

Em 2005, no entanto, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, acolheu o relatório do deputado Luciano Zica (PT-SP), prevendo a modificação justamente da Lei 7.716/1989, que passaria punir, além dos crimes de ódio e intolerância resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião e origem, também os resultantes de discriminação ou preconceito de “gênero, sexo, orientação sexual, identidade de gênero ou condição de pessoa idosa ou com deficiência”. 

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O projeto acabou enfrentando forte oposição da Frente Parlamentar Evangélica (FPE), que temia que a redação ampla e genérica do projeto pudesse avançar sobre a liberdade de crítica a condutas homossexuais e à ideologia de gênero. A relatora do PL na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH), a então senadora Marta Suplicy, que estava no PT de São Paulo, chegou a propor uma ressalva às manifestações religiosas, mas foi criticada por ativistas LGBT. 

Pela proposta da senadora, o artigo 20 da Lei 7.716/1989, que prevê que “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito”, além de passar a proteger a orientação sexual e a identidade de gênero, passaria também a conter que a previsão “não se aplica à manifestação pacífica de pensamento decorrente de atos de fé, fundada na liberdade de consciência e de crença de que trata o inciso VI do art. 5º da Constituição Federal”. 

A reação do Congresso 

Diante do impasse, o projeto acabou definitivamente arquivado em 2014, depois de passar a tramitar apensado à proposta de Novo Código Penal. Deputados conservadores manifestam preocupação com a proposta de criminalizar a homofobia pela via judicial. Na terça-feira (12), o presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, participou de duas reuniões para tratar do assunto, uma com integrantes da FPE, outra com os deputados Marcos Pereira (PRB-SP), primeiro vice-presidente da Câmara, e Jhonatan de Jesus (PRB-RR), líder do PR na Câmara. A reação ao julgamento começou na internet e em grupos de WhatsApp. Apesar disso, manteve o julgamento na pauta da Corte.

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Os deputados da FPE avaliam que a postura do STF será crucial para determinar o ritmo da tramitação do PL 4.754/2016, que inclui entre os crimes de responsabilidade dos ministros do STF, previstos na Lei 1.079/1950 a hipótese de “usurpar competência do Poder Legislativo ou do Poder Executivo”. O PL tramitou em 2016 sem fazer muito barulho, mas chegou a receber um parecer favorável do deputado Marcos Rogério (DEM-GO), em setembro daquele ano, na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC). 

Em entrevista à Gazeta do Povo na semana passada, o deputado João Campos (PRB-GO) sinalizou neste sentido.

"Vamos ter a grande oportunidade de ver se todo esse discurso [de moderação do presidente do STF] caminha para um comportamento menos ativista e, se não houver harmonia entre o discurso e aquilo que vai acontecer, nós vamos ter de dar um tratamento mais célere a este projeto de lei”, declarou. Muitos deputados - e da base aliada do presidente Jair Bolsonaro (PSL) - consideram o projeto urgente e prioritário.

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