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| Foto: Carlo Navarro / Unsplash

Corre na miúda a história de um candidato à docência na Faculdade de Direito da USP que foi tão bem no concurso de admissão que deixou a banca constrangida em levar a cabo os conchavos costumeiros. Passou em primeiro. Era algo assim que se esperava dos expositores pró-vida na sexta-feira, dia 3, e na segunda-feira, dia 6, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) ouviu quase 70 expositores que se revezaram argumentando contrária ou favoravelmente à descriminalização do aborto. 

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As exposições deram-se na audiência pública convocada para esse fim pela ministra Rosa Weber, relatora da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, ajuizada pelo Psol e pelo Instituto Anis. A ação pede a “não recepção” parcial dos artigos 124 e 126 do Código Penal – na prática, a descriminalização do aborto; e o reconhecimento de um “direito constitucional ao aborto” – na prática, a plena legalização do procedimento. Tudo isso até a 12ª semana de gestação, limite temporal proposto pela petição inicial. 

O PSOL escolheu uma ADPF justamente porque os artigos do Código Penal que proíbem o aborto são anteriores à Constituição Federal e, por isso, não poderiam ser objeto de uma Ação Direita de Inconstitucionalidade, a famosa ADI. Formalidades e salamaleques à parte, a questão que o tribunal enfrentará é esta: a criminalização irrestrita do aborto é uma opção política compatível com a Constituição brasileira? 

Aqui começam nuances que, a julgar pelas exposições nos dois dias de audiência pública, o lado pró-vida ainda não conseguiu captar. É compreensível, diante de uma Constituição tão extensa e tão recente como a de 1988, que se insista no lugar-comum da incompetência do Supremo para decidir a questão. Tudo leva a crer que, à época da Constituinte, os constituintes de carne e osso imaginavam mesmo ser necessário, para mudar o regramento do aborto, alterar a legislação por meio do parlamento, quiçá recorrendo a um plebiscito. É o que se lê nos anais da Constituinte, por exemplo. 

No entanto, a teoria constitucional mudou muito nos últimos 30 anos, semeando pouco a pouco a ideia de que a Constituição deve ter um poder normativo máximo e, na prática, ajudando a dinamitar qualquer método histórico de elucidação da intenção originária dos constituintes – e, claro, aumentando o poder dos tribunais. Divergências filosóficas e políticas à parte, o fato de uma corte constitucional analisar a criminalização do aborto é parte do bê-á-bá das democracias constitucionais contemporâneas. Para ficar em dois exemplos para lá de toda suspeita, Estados Unidos e Alemanha são dois países que discutiram a questão em suas cortes supremas. 

Além disso, há um método particular de raciocínio constitucional que os ministros do Supremo vão usar para enquadrar o problema que lhes foi apresentado, a saber, se a criminalização irrestrita do aborto é compatível com a Constituição. Novamente, embora se deva dizer que ele é bastante mal aplicado em muitas ocasiões, esse método faz parte do feijão com arroz que se ensina nas faculdades de direito brasileiras desde a década de 1990. Trata-se do método/máxima/princípio/regra da proporcionalidade

Os nomes são muitos, mas a ideia geral é uma só e importantíssima para limitar o poder do Estado: quaisquer limitações aos direitos fundamentais dos indivíduos são medidas excepcionais e devem ser rigorosamente justificadas. O pulo do gato dos defensores do aborto foi passar a enxergar a criminalização do aborto como um ato estatal que precisa passar pelo crivo da proporcionalidade – o que até se harmoniza com certa concepção liberal de estado mínimo. É uma estratégia com razoáveis chances de sucesso e alguns autores já notaram isso. 

Para passar pelo crivo da proporcionalidade, tecnicamente, a ação estatal deve superar três estágios subsidiários: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Somente uma medida adequada, necessária e proporcional em sentido estrito é considerada plenamente justificada de acordo com os padrões do direito constitucional contemporâneo. 

Alguém poderia, é claro, se negar a enfrentar o problema do aborto em termos de proporcionalidade. Se se compreende que o ser humano é uma vida dotada de dignidade em qualquer estágio de desenvolvimento, faz pouco sentido não o proteger por meio do direito, que congrega as mais altas aspirações morais de uma sociedade, mesmo se na prática está imperando o desrespeito às normas. No fundo, está operando aqui, entre os defensores da descriminalização, a premissa oculta de que o embrião ou o feto não é uma pessoa dotada de valor moral. Mas, se a sociedade tivesse clareza e consenso sobre isso, a discussão nem teria surgido. 

Em que consistem adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito? Usarei aqui as definições de Virgílio Afonso da Silva, titular de Direito Constitucional da USP, e um dos mais destacados estudiosos do tema no mundo, em um artigo publicado em 2002. “Uma medida somente pode ser considerada inadequada se sua utilização não contribuir em nada para fomentar a realização do objetivo pretendido”, escreve. 

Daí se entende o recurso às pesquisas que mostram que descriminalizar o aborto, por mais contra intuitivo que seja, diminui o número de procedimentos. O que se quer com essa afirmação, a contrario sensu, é dizer que a criminalização aumenta o número de abortos, violando o objetivo que se busca com a criminalização (proteger a vida). O raciocínio é um non sequitur e, na verdade, precisaria de muito mais investigação causal para se estabelecer. Na dúvida, melhor proteger a vida. 

Se uma medida for adequada, ela precisa ainda ser necessária. “Um ato estatal que limita um direito fundamental é somente necessário caso a realização do objetivo perseguido não possa ser promovida, com a mesma intensidade, por meio de outro ato que limite, em menor medida, o direito fundamental atingido”, escreve Afonso da Silva. Direito fundamental atingido é, grosso modo, desse ponto de vista, a liberdade da mulher. Aqui temos um problema: digamos que haja um empate no número de abortos, seja criminalizando o procedimento ou descriminalizando-o e atendendo, na Saúde Pública, as mulheres que passam pela “rota crítica” do aborto. Nesse caso, a criminalização poderia ser desnecessária, em sentido técnico. Por isso, no fim das contas, a discussão sobre os números do aborto importa tanto. 

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Um bom antídoto a essa etapa do argumento padrão pró-aborto seria comparar o que aconteceu em países do leste europeu que adotaram diferentes caminhos na legislação depois da queda da União Soviética. Philip Levine e Douglas Staiger fizeram isso em artigo de 2004 no prestigioso Journal of Law and Economics, e a notícia é boa para quem se opõe à descriminalização do aborto. Seria ainda melhor, em vez de partir para a pura guerra de números, apontar com clareza e máxima precisão os pontos fracos das estimativas de números de abortos apresentadas pelos movimentos pró-aborto. Não é possível colocar todas as estimativas no mesmo balaio: algumas são mais consistentes, outras são menos, e negá-las todas no atacado diminuiu o poder argumentativo da posição pró-vida. 

Nessa etapa do raciocínio, quem defende a vida também se ressente da falta de alternativas. Por tempo demais, mulheres demais sofreram sozinhas e desamparadas. Isso nos impediu de pensar um sistema universal de apoio humanizado às mulheres em crise com a gravidez, sem que se precise descriminalizar o aborto ao mesmo tempo. Alguns dirão que isso é impossível, mas, na verdade, não foi tentado: Brasil e Argentina estão apenas engatinhando nessa discussão. A Polônia pode oferecer bons exemplos. Nesse vácuo, que é real, um lado sequestrou a virtude – ou seu simulacro – de se preocupar com as mulheres. 

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Por fim, se uma medida estatal é adequada e necessária, precisa também ser proporcional em sentido estrito. Aqui, a discussão valorativa aflora. “O exame da proporcionalidade em sentido estrito [...] consiste em um sopesamento entre a intensidade da restrição ao direito fundamental atingido e a importância da realização do direito fundamental que com ele colide e que fundamenta a adoção da medida restritiva”, escreve Afonso da Silva. Em uma sociedade dotada de clareza moral, este deveria ser o passo mais fácil: como não prevaleceria o direito à vida do ser humano não nascido diante de um pouco de liberdade de outro ser humano? Na verdade, em uma sociedade dotada de clareza moral, nem se teria chegado a esta etapa da discussão; mas o Judiciário tem de dar conta dessa sociedade dividida e embotada. 

Uma má notícia, e não adianta varrê-la para debaixo do tapete: há pessoas, e até filósofos bastante espertos, que nem consideram o embrião ou o feto humano uma pessoa no sentido moral relevante. Esses indivíduos – e desconfio que alguns ministros do Supremo estejam entre eles –, precisam ser expostos, com todo o rigor e respeito, a todas as inconsistências das visões funcionalistas da personalidade humana, que excluem o feto da comunhão moral com a sociedade humana. Não se recuperará esse consenso moral básico sem um esforço bem maior do que se está vendo até o momento. 

A julgar, então, pelo que se viu nas audiências públicas, é bom quem se opõe à legalização irrestrita do aborto começar a pensar na estratégia pós-ADPF 442. Talvez a decisão desta quinta-feira (9) no Senado da Argentina de rejeitar a legalização arrefeça um pouco o ímpeto da pauta na América Latina, mas as pressões não vão acabar. Em Portugal, por exemplo, o aborto foi rejeitado por pouco em referendo de 1998 para então ganhar de lavada em 2007. 

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No Brasil, é pouco provável que a decisão não passe pelo Judiciário. Os grupos e organizações favoráveis à legalização não fazem senão, há décadas, produzir subsídios para fundamentar o argumento e a percepção de que a criminalização do aborto é desproporcional em sentido técnico. Os ministros do STF nem precisam pensar muito: terão à disposição inúmeros argumentos para decidir que a criminalização é (em sentido técnico) inadequada, desnecessária ou desproporcional em sentido estrito. Os expositores pró-vida deveriam ter se preocupado em dar subsídios para considerá-la adequada, necessária e proporcional em sentido estrito. 

Quem se opõe à legalização até tateou esses argumentos, quase que por acidente, sem se preocupar, no entanto, em desmontar com acuidade a aplicação da proporcionalidade ao caso do aborto. Os tribunais (ainda) são espaços técnicos, daí o drible que a ministra Rosa Weber deu no senador Magno Malta. O que se viu, no fim das contas, foi um lado bem preparado, embora profundamente equivocado, e um outro, embora secundado pela verdade, beirando ao amadorismo. Até se admite que a audiência pública tenha beneficiado os grupos pró-aborto em termos numéricos, mas um único expositor pró-vida poderia ter feito toda a diferença se tivesse mirado o alvo certo. Infelizmente, não foi o que ocorreu.

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