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Oposicionistas pedem impeachment do presidente do Paraguai, Mario Abdo Benitez
Oposicionistas pedem impeachment do presidente do Paraguai, Mario Abdo Benitez| Foto: AFP

O impasse sobre a contratação de energia pela Eletrobras e pela Ande (Administração Nacional de Eletricidade do Paraguai) da usina binacional de Itaipu, deflagrado no fim de julho, tomou proporções inimagináveis e quase derrubou o governo de Mario Abdo Benítez no Paraguai. Em outra reportagem, a Gazeta do Povo já havia explicado alguns aspectos técnicos sobre a contratação de energia e acordos firmados entre os dois países que permitem que o Paraguai contrate mais energia excedente do que o Brasil - ou seja, energia mais barata. Mas é preciso ir além das explicações técnicas e entender a guerra de versões e os personagens envolvidos nesta trama.

Pedro Ferreira e o estopim da crise política no Paraguai

A crise política do Paraguai estourou em 24 de julho, quando o então presidente da Ande Pedro Ferreira renunciou ao cargo. Nesse mesmo dia, já especulava-se que o motivo de sua saída era um desentendimento relacionado a uma ata assinada por Brasil e Paraguai referente à contratação de energia de Itaipu para 2019 e os próximos três anos. Nesta época, os termos desta ata não eram de conhecimento público.

O documento foi redigido e assinado pelas chancelarias dos dois países em 24 de maio, após uma longa negociação que começou em fevereiro, mas era necessária a aprovação da Ande para que pudesse ser efetivado. Posteriormente, Ferreira confirmou sua objeção à ata dizendo que ela acarretaria prejuízos ao Paraguai, possivelmente forçando um aumento de tarifa de energia aos cidadãos. Ele disse a Marito que não contrataria energia da Ande com base naquele acordo e por isso renunciou.

Ferreira foi nomeado como presidente da Ande na gestão Marito, como é conhecido o presidente do Paraguai, tomando posse em 15 de agosto de 2018. O engenheiro civil e industrial com 30 anos de experiência passou por nove dos dez cargos de gerência da Ande. Foi chefe do Instituto de Seguridade Social do Mercosul durante o governo de Nicanor Duarte (2003-8).

No dia seguinte à renúncia de Ferreira, a imprensa paraguaia já falava do “acordo secreto” e “entreguista” assinado pelo governo de Marito. A oposição classifica a ata bilateral como “traição à pátria”.

O que se sabia até então era que o Paraguai estaria “abrindo mão” de um direito adquirido em 2007, quando os governos dos dois países assinaram um acordo que dava prioridade de consumo da energia excedente da usina de Itaipu ao Paraguai - bem mais barata do que a energia contratada, pois não há o custo da dívida de construção da usina, royalties e outros componentes da tarifa.

Na época, a energia excedente era dividida meio a meio, mas o Brasil precisava colocar em operação mais duas unidades geradoras. Essa instalação prejudicaria o Paraguai, que não precisava de mais energia, porque o excedente produzido pela usina diminuiria. E por isso o acordo foi firmado.

Em um primeiro momento, Marito e o primeiro escalão do governo saíram em defesa do acordo fechado com o Brasil. “O Paraguai não pode ser um país velhaco”, disse o presidente. “É preciso ser um país sério, que não precisa migalhas de ninguém”.

O engenheiro Alcides Jiménez assumiu a presidência da Ande e se juntou ao presidente em defesa da ata bilateral. Negou que se tratava de um acordo secreto, mas confirmou que o Brasil estava os pressionando a contratar mais energia do que nos anos anteriores. Ao mesmo tempo, justificou esta pressão ao dizer que o consumo de energia do Paraguai estava aumentando, mas que a energia contratada pela Ande era quase sempre a mesma - ou seja, dependiam da energia excedente.

Segundo o então diretor técnico de Itaipu, José Sanchez, isto era um problema. Segundo ele, com a ata bilateral, a Ande poderia ter maior previsibilidade da energia contratada até 2022, podendo então se concentrar nas negociações futuras, já que o financiamento da obra da usina termina em 2023 e as tarifas precisarão ser revistas.

Sanchez também ressaltou que o terceiro parágrafo da ata menciona um instrumento de compromisso, assinado pelos ministérios do exterior do Paraguai e do Brasil em janeiro de 2007 e que consagra benefícios para o Paraguai, como o uso de excedentes e contratação de energia da Ande pela Eletrobrás.

Fabián Cáceres, o “acordo secreto” e as quedas no primeiro escalão

As negociações para a contratação de energia começaram em fevereiro em nível técnico. Mas Ferreira contou que o impasse em torno do aumento da contratação de energia por parte do Paraguai fez com que toda a negociação passasse para o nível diplomático. “Não havia como eles ganharem no nível técnico, por isso levaram para o Ministério das Relações Exteriores”, disse ele.

A partir daí, Ferreira diz que a Ande ficou de fora das reuniões. O ex-gerente técnico da estatal, Fabián Cáceres, que acompanhou a delegação paraguaia como representante da Ande no dia em que a ata foi assinada em Brasília, em 24 de maio, disse que entrou na sala de reunião por apenas dez minutos, enquanto os técnicos da Eletrobras estiveram presentes o tempo todo.

Estes elementos e a divulgação de áudios que confirmavam essas declarações complicaram a vida do presidente paraguaio. A oposição e as ruas começaram a se mobilizar para pedir o impeachment de Marito. E a pressão fez com que o governo paraguaio anunciasse que pediria ao Brasil a anulação da ata. Um dia depois, renunciaram o ministro de Relações Exteriores, Luis Castiglioni, o recém-nomeado presidente da Ande, Alcides Jimenez, e o embaixador no Brasil, Hugo Saguier.

Joselo e o “ponto 6 da ata”

O clima era de constrangimento entre o governo, mas Ferreira tinha novas bombas para jogar na imprensa. Ele contou que estava sendo cogitada a eliminação de uma das propostas da ata - o item 6 - que permitiria a Ande vender energia excedente do Paraguai no mercado brasileiro. Ou seja, retirar um benefício ao Paraguai.

Quem falou sobre a eliminação do “ponto 6” à Ferreira foi José Rodríguez González, um jovem de 27 anos que se identificou como assessor jurídico do vice-presidente, Hugo Velázquez - embora tenha revelado posteriormente que não tinha um cargo oficial no governo. Um dia antes da assinatura da ata, ele mandou uma mensagem a Ferreira via WhatsApp dizendo que a presidência e a vice-presidência haviam concordado em retirar o ponto 6.

“Eles não estão acordo com tornar público a intenção do Paraguai de comercializar energia no Brasil em consequência de conversas com o mais alto comando do país vizinho, que julgaram que isso não era favorável, com o objetivo de conservar o manuseio prudente da informação e [que] a operação em curso tenha êxito”, dizia a mensagem que foi divulgada dias depois pela imprensa paraguaia.

Em depoimento à promotoria do Paraguai em 31 de julho, Joselo, como era conhecido González, reconheceu que atuou a favor da eliminação do ponto 6 da ata e que teria feito isso para favorecer uma empresa supostamente ligada ao presidente Jair Bolsonaro.

Segundo Joselo, empresários brasileiros que disseram que a inclusão desse ponto poderia comprometer os negócios com o Paraguai porque "colocaria a Eletrobrás em alerta" e asseguraram que, por causa de uma conexão com o presidente Bolsonaro, teriam a bênção do Brasil sem problemas. Ele porém, disse que Pedro Ferreira estava a par de todas as negociações, mas que não concordou com a retirada do ponto 6.

“Entrei em contato com o Sr. Pedro Ferreira, as reuniões foram sempre com o Sr. Ferreira, esta empresa disse que ele poderia conciliar a vontade política do país vizinho para ter a autorização para comercializar com o setor privado brasileiro”, disse ele.

Joselo é filho de María Epifanía González, que era ministra da Seprelad (Secretaria de Prevenção de Lavagem de Dinheiro ou Bens). Por causa desse escândalo, ela apresentou sua renúncia. Ele se identificava como “doutor”, mas depois descobriu-se, segundo o ABC Color, que ele não possuía registro de advogado e que atuava como leiloeiro.

Após as declarações, o vice-presidente do Paraguai disse que pouco conhecia Joselo. Velázquez contou que tudo o que fez foi ligar para Pedro Ferreira para pedir a ele que recebesse Rodríguez, que estava acompanhado por um grupo de empresários brasileiros interessados em comprar energia diretamente da Ande. Disse que não sabia que Joselo se apresentava como seu representante. Posteriormente, Joselo pediu perdão publicamente por ter usado o nome do presidente e do vice nas conversas com Ferreira.

No fim das contas, os ministérios das Relações Exteriores de ambos os países negaram a existência de tais negociações do “ponto 6”. Em 10 de agosto, a chancelaria do Paraguai informou, via comunicado, que não se registrou nenhuma abordagem formal para a venda de energia da Ande vinculada à Itaipu no mercado brasileiro.

Alexandre Giordano e a empresa brasileira Leros

A empresa brasileira com contatos com a família Bolsonaro à qual Joselo se referia era a Léros, uma comercializadora de energia que nasceu em 2009 e tem sede em São Paulo, na Vila Olímpia. Segundo os dados do CNPJ, ela é uma empresa com um capital social de R$ 5.680.000 e está vinculada ao Leros Group.

A suposta ligação da Léros com o governo brasileiro é explicada pela pessoa que, segundo Joselo, estava representando a empresa nas negociações. Seu nome é Alexandre Giordano, suplente do senador Major Olímpio, do PSL de São Paulo - mesmo partido de Bolsonaro.

Registros de voos divulgados pelo ABC Color em parceria com o jornal Estado de S. Paulo, duas semanas depois de o nome da Léros vir à tona, mostram que Giordano visitou Assunção pelo menos duas vezes acompanhando executivos da Léros. A primeira vez foi em 9 de abril, quando a ata não havia sido assinada. A segunda, em 25 de junho. Anteriormente Giordano disse que tinha ido apenas uma vez ao Paraguai e que não tinha relação com a empresa.

Kleber Ferreira e a versão da Léros

Nesse contexto apareceu outro nome: Kleber Ferreira, diretor da Léros. Ele assina uma proposta da Léros para a compra de energia excedente da Ande, datada de 27 de julho. No documento, a empresa brasileira oferta US$ 31,50 pelo MWh e, em caso de venda de energia para um terceiro, seria a um valor de US$ 35 por MWh - a metade da diferença em relação ao valor de US$ 31,5 seria dividida em partes iguais. Ou seja, ambos seriam beneficiados.

Em um artigo publicado no site Poder 360, Ferreira, da Léros, disse que sua empresa participou de uma licitação internacional aberta pela Ande e, no momento em que o escândalo veio à tona, ela constava como a empresa que havia ofertado o preço mais alto pela energia vendida pelo Paraguai.

“O ponto central que é preciso entender nesse novelo todo é que o Paraguai vende sua energia, grosso modo, a US$ 10 por MWh para o Brasil, conforme estabelecido no acordo com os dois países.

A solução encontrada pela estatal paraguaia buscava aumentar o ganho da empresa com o excedente de energia, sem infringir a regra do acordo. Na arquitetura jurídica concebida, uma empresa privada compraria esse excedente e tentaria vendê-lo no mercado livre de energia do Brasil”, escreveu Ferreira, complementando ainda que, no mercado brasileiro, a energia é vendida geralmente por US$ 45 a US$ 50 por MWh.

O vice-presidente do Paraguai, em depoimento ao Ministério Público de seu país, confirmou que houve uma disputa para a venda de energia na expectativa da aprovação do “ponto 6 da ata” e disse aos investigadores que, além da Leros, havia uma empresa coreana e outra argentina interessadas em adquirir energia paraguaia.

Sobre o contato com Giordano, Kleber Ferreira escreveu que a Léros eventualmente trabalhou com um fornecedor de estruturas metálicas que, em 2018, se tornou suplente do senador Major Olímpio. O nome de Giordano surgiu nas negociações técnicas porque, segundo Kleber Ferreira, os especialistas da estatal paraguaia perguntaram se a Léros conhecia empresas especializadas em energia solar, porque certas localidades do Paraguai ainda não são atendidas com linhas de transmissão.

A anulação da ata e o quase impeachment

Em menos de uma semana, o governo paraguaio parecia insustentável. O Movimento Honor Colorado, ala liderada pelo ex-presidente Horacio Cartes, disse que apoiaria o impeachment, o que dava à oposição votos suficientes para acabar com a presidência de Marito.

Em 1º de agosto o Ministério das Relações Exteriores resolveu se pronunciar a respeito da crise no país vizinho. Em uma nota, o governo brasileiro dizia que confiava “em que o processo” de impeachment fosse conduzido “sem quebra da ordem democrática, em respeito aos compromissos assumidos pelo Paraguai no âmbito da cláusula democrática do Mercosul - Protocolo de Ushuaia”.

Marito é aliado de Bolsonaro. E na imprensa do Paraguai, esse recado foi entendido como uma ameaça do governo brasileiro de suspender o Paraguai do Mercosul se o impeachment contra Abdo seguisse adiante - o que aconteceu em 2012 após o impeachment do então presidente paraguaio, Fernando Lugo, aliado dos governos de esquerda da região naquela época.

Ainda em 1º de agosto, Paraguai e Brasil anularam a controversa ata. Como resultado, o Honor Colorado disse que retiraria seu apoio ao impeachment. O processo perdeu força, mas ainda está tramitando no congresso paraguaio.

Esclarecimentos brasileiros

Mesmo após a anulação, a ata continuou sendo o tema central da política paraguaia. Manifestantes saíam às ruas para defender e protestar contra Marito. A imprensa do país divulgou mais documentos sobre o suposto favorecimento de uma empresa brasileira e evidências de que a Ande havia ficado de fora das negociações.

Quando o nome da Léros começou a aparecer na imprensa brasileira, o Itamaraty, a Eletrobras e o Ministério de Minas e Energia, divulgaram mais uma nota, em 9 de agosto.

Ela esclarece que a ata bilateral “teve por finalidade estabelecer um contrato de venda de energia de Itaipu no período de 2019 a 2022, garantindo à usina os recursos necessários para seu funcionamento e, por consequência, a estabilidade no fornecimento de energia elétrica a ambos os países”.

“Também buscava corrigir uma defasagem histórica na contratação da energia de Itaipu por parte da Ande. Considerando que a contratação pela Ande não tem acompanhado o alto crescimento de sua demanda de energia, a Ata Bilateral buscou reequilibrar esta relação, de modo que cada parte pague pela energia que efetivamente consome”, disseram os órgãos brasileiros, enfatizando que o processo de negociação não foi secreto e que em todas as reuniões houve a participação dos representantes dos Ministérios das Relações Exteriores de ambos os países, da Eletrobras, da Ande e da Itaipu Binacional.

Eles também destacaram que o Tratado de Itaipu somente permite a venda da energia produzida pela usina para a Eletrobras e para a Ande, e que, portanto, “não tem qualquer fundamento a especulação sobre a possibilidade de comercialização da energia da usina binacional por parte de alguma empresa que não seja a Eletrobras e a Ande”.

A raiz do problema

Na esteira das negociações, nem a Ande e nem a Eletrobras firmaram acordos de contratação de energia com a Itaipu, que está sem emitir faturas desde o início do ano. Em uma entrevista para o jornalista José Romildo, da Agência Brasil, a diretora do Departamento da América do Sul do Ministério das Relações Exteriores, embaixadora Eugenia Barthelmess, explicou a raiz deste impasse com o país vizinho e por que o Brasil queria rediscutir a contratação de energia da Ande.

“Nos últimos anos, a Ande estava adotando a prática de subdimensionar a previsão de sua demanda de energia de Itaipu – a prática de subcontratar em relação à sua demanda efetiva. Para se ter uma ideia, nos últimos quatro anos, a potência que a Ande contratou de Itaipu aumentou 6,7%. Nesses mesmos quatro anos, a energia que a Ande efetivamente usou de Itaipu aumentou 41,4%”, contou.

Segundo a embaixadora, além de utilizar a parcela majoritária da energia excedente de Itaipu, a Ande chegou a consumir energia contratada pela Eletrobras em três ocasiões em 2018. “Isso causou naturalmente um prejuízo à Eletrobras.

A Eletrobras e a Ande passaram então a se dedicar a resolver esse problema técnico. A procurar definir um cronograma de contratação de potência”, que era inexistente naquele momento. De acordo com Barthelmess, a ata bilateral de 24 de maio buscava evitar que a Ande se apropriasse de energia já contratada pela Eletrobras, definindo um aumento gradual do volume de potência contratada pelo Paraguai para que não prejudicasse a Ande financeiramente.

CPI paraguaia

Apesar de uma aparente convergência entre as chancelarias, há versões contraditórias nessa história. O suposto favorecimento da Léros está sendo investigado em uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) no Paraguai e também por uma subcomissão da Comissão de Relações Exteriores do Senado brasileiro, a pedido do senador Jaques Wagner (PT-BA). A ata bilateral também é alvo de investigação do Ministério Público do Paraguai.

Enquanto isso, os dois países continuam as negociações para equacionar o problema e definir um cronograma de contratação de potência para a usina no período de 2019 a 2022. Para os anos seguintes a história é outra, e tende a ser ainda mais complicada.

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