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Campo de refugiados venezuelanos em Boa Vista | Gui Christ/The Washington Post
Campo de refugiados venezuelanos em Boa Vista| Foto: Gui Christ/The Washington Post

Colonizadores de todo o Brasil construíram esta cidade do século XX, criando um espaço urbano ordenado, repleto de gramados com palmeiras e parques bem cuidados. Seus moradores viviam em relativo isolamento, com os forasteiros mais comuns sendo os tamanduás vagando pela selva amazônica.

Depois vieram os venezuelanos, saindo de seu país na maior crise migratória da América Latina em décadas. 

Ondas de recém-chegados estão sobrecarregando Boa Vista, inundando hospitais e provocando um aumento de 1.000% nas chamadas de emergência para a polícia. As escolas estão se esforçando para colocar placas bilíngues para os estudantes de língua espanhola que chegam ao Brasil. Milhares de migrantes estão vivendo nas ruas, dispostos a trabalhar por um terço dos salários dos brasileiros. Campos de refugiados surgiram no núcleo urbano, dando origem a temores de guetos de longo prazo. 

Os moradores de Boa Vista "estão perdendo sua cidade para pessoas de uma nova cultura, pessoas que não conhecem", diz a prefeita, Teresa Surita. "Se isso continuar, perderemos o controle total desta cidade".

Enquanto isso, venezuelanos que fogem da fome e da repressão em seu estado socialista em colapso estão reformulando cidades e vilas em todo o hemisfério ocidental. O som da gíria de Caracas é agora onipresente em alguns bairros de Miami. Milhares de quilômetros ao sul, o aroma da culinária caribenha transborda pelas ruas de Santiago, no Chile. Em Trinidad e Tobago, de língua inglesa, os venezuelanos formam uma nova classe trabalhadora. 

Grupos de ajuda humanitária estimam que entre 1,6 milhão e 2 milhões de venezuelanos deixarão sua nação neste ano, escapando da hiperinflação e da desesperada escassez de alimentos e remédios. A esse grupo soma-se 1,5 milhão de venezuelanos que saíram entre 2014 e 2017. Cerca de um em cada 10 venezuelanos deixarão seu país em um período de quatro anos. 

Grupo de imigrantes venezuelanos perto do terminal de ônibus em Boa VistaGui Christ/The Washington Post

Em comparação com os países europeus que receberam refugiados sírios nos últimos anos, os países latino-americanos têm poucos recursos para lidar com o fluxo de migrantes. Nas últimas semanas, o Peru e o Equador começaram a insistir que os venezuelanos chegassem a ter passaportes, não apenas cartões de identidade nacionais, fechando efetivamente suas fronteiras para muitos. 

O Brasil manteve suas portas abertas. Mas nesta semana, o presidente Michel Temer assinou um decreto de emergência enviando tropas adicionais à fronteira norte para reforçar um contingente militar no país. O súbito afluxo de migrantes está levantando preocupações sobre o crime e a ilegalidade, bem como questões mais profundas sobre a identidade em um país que é culturalmente cercado por sua linguagem e hábitos distintos. 

À medida que essa mudança se acelera, a simpatia inicial pelos migrantes está se transformando em choque, e o choque está se transformando em fúria – trazendo o debate global sobre a imigração para uma de suas áreas mais remotas: a região amazônica. 

"Trump deveria ser nosso presidente", disse Marcos Pereira da Silva, 43 anos, um pintor de casas que se juntou a um protesto contra migrantes em Boa Vista em um sábado de meados de agosto. Naquele dia, centenas de brasileiros furiosos na cidade fronteiriça de Paracaima causaram tumulto, demolindo um abrigo migratório improvisado e queimando os pertences de seus ocupantes após o esfaqueamento de um comerciante local. 

"Precisamos de um muro", diz Pereira.

Não mais uma raridade

O centro para refugiados mais recente e que mais cresce em Boa Vista é o Rondon 1, um extenso assentamento de tendas da Ikea que abrigam mais de 600 pessoas. É um dos seis centros de habitação de emergência que surgiram na cidade desde março. Construídos pelo exército e operados com a ajuda da agência de refugiados da ONU, os centros estão trazendo para o Brasil um conceito estrangeiro: os campos de refugiados. 

Centro de refugiados venezuelanos em Boa VistaGui Christ/The Washington Post

Para aqueles que fogem da Venezuela, Boa Vista é a primeira grande cidade ao sul da fronteira e a capital do estado de Roraima. Os venezuelanos começaram a chegar há três anos à medida que a economia petrolífera de seu país entrava em crise devido à queda dos preços mundiais do petróleo e à má administração do regime do ditador Nicolás Maduro. Até agora, 800 venezuelanos estão entrando no estado diariamente. As autoridades estimam que 30 mil estejam morando em Boa Vista, cerca de 10% da população da cidade. Até o final do ano, um em cada cinco moradores pode ser venezuelano. 

Em uma tarde recente, os mais novos moradores da cidade faziam arepas – bolos de milho venezuelanos – em fogões portáteis. A salsa, estrangeira nesta cidade amante da música sertaneja, tocava nos rádios enquanto os residentes conversavam em espanhol. 

“Parece quase um bairro venezuelano”, afirma Marisol Martinez, 38 anos, que chegou em Boa Vista há sete meses. Ela conseguiu recuperar peso depois de perder 10 Kg em sua terra natal por causa da falta de comida e aprendeu um pouco de Português em uma igreja local. "Falo bem, não, é?", brinca, testando a língua. 

Marisol envia a maior parte do dinheiro que ganha limpando casas para os seus filhos que estão na Venezuela, mas ela quer abrir um negócio para comercializar arepas e ganhar o suficiente para trazer seus filhos para o Brasil. 

Esse tipo de migração regional já foi extremamente raro. Não mais. 

"Meus filhos não estão comendo, vão dormir com fome, porque é a Venezuela", conta Marisol. "O Brasil está nos dando uma chance". 

Os abrigos são temporários, mas muitas pessoas em Boa Vista são desconfiadas. 

"Esta é a guetização de Boa Vista", diz Maria Suely Silva Campos, governadora do estado de Roraima. 

Ela chegou a pedir ao Supremo Tribunal Federal para fechar a fronteira. O STF negou o pedido, mas ela disse que está determinada a interromper o fluxo de imigrantes.

Sobreviventes

Dentro dos portões da Escola Fundamental de Nova Canaã, o cardápio diário do almoço está listado em português e espanhol. Os banheiros também possuem placas bilíngues. Um cartaz no saguão do colégio dá boas-vindas nos dois idiomas. 

Na escola de Nova Canaã, um cartaz dá boas-vindas aos alunos em português e espanholGui Christ/The Washington Post

Algumas cidades dos EUA que lidam com um grande número de imigrantes levaram anos para enfrentar o tipo de desafios enfrentados agora por Boa Vista em poucos meses. Em 2015, havia 53 estudantes venezuelanos no sistema escolar de Boa Vista. Este ano, o número é de 2.261 – e a maioria das crianças venezuelanas não está matriculada na escola. 

Para lidar com isso, a cidade está pedindo 50 contêineres para transformá-los em salas de aula. 

"A maioria de nossos professores não fala espanhol, então não temos um currículo para as crianças venezuelanas", diz o superintendente de escolas Hefrayn Lopes. "Ao mesmo tempo, achamos que eles precisam se adaptar à nossa cultura. Não devemos nos adaptar a eles". 

Boa Vista, a capital do estado mais pobre do Brasil, não recebeu ajuda suficiente do governo federal para lidar com uma crise de refugiados, segundo autoridades locais. A maioria dos venezuelanos que chegam, afirmam eles, está desnutrida. Com remédios escassos e condições em deterioração na Venezuela, muitos também estão doentes – chegando com sarampo, malária, infecção por HIV e tuberculose. 

No Hospital Geral de Roraima, com 300 leitos, o maior em Boa Vista, os venezuelanos representam atualmente mais de 50% dos pacientes. Com o hospital superando a capacidade, os enfermos dormem em camas nos corredores. Recentemente, um venezuelano com complicações de diabetes aguardava, em uma dessas camas improvisadas, que os médicos amputassem uma de suas pernas. 

Brasileiros e venezuelanos ocupam uma enfermaria no principal hospital de Boa VistaGui Christ/The Washington Post

"Tivemos que adiar todas as operações de não emergência para os brasileiros, algumas por meses", conta a diretora do hospital, Marcilene Moura. Ela acrescentou que os pacientes venezuelanos estão chegando com doenças assustadoras. 

"Hoje, não vemos mais pacientes com apenas febre. Eles vêm com malária cerebral, ferimentos à bala e meningite". 

Apesar de compartilhar fronteiras com sete países de língua espanhola, o Brasil se diferencia na América Latina. O país enxerga Estados Unidos, Europa e China como marcos econômicos e culturais. Os estudantes brasileiros são mais propensos a estudar inglês do que espanhol como segunda língua. Moda, cinema e tendências culinárias tendem a vir de Hollywood e Paris, não de Buenos Aires ou da Cidade do México. 

Para os boa-vistenses, os recém-chegados representam um choque cultural.  

Em uma tarde recente no mercado público da cidade, um músico venezuelano pegou seu violão e começou a cantar uma canção popular venezuelana do lado de fora de um restaurante. Os clientes venezuelanos batiam os pés e cantavam junto. 

Mas a atmosfera festiva azedou o clima em outros comércios. 

"É como se eles não tivessem limites", reclama Nelle de Maciel, 63, costureira brasileira que trabalha no mercado há cinco anos. "A vida deles é uma festa. Nosso mercado costumava ser calmo, mas agora eles se juntam para cantar e dançar. Às vezes eles até batem palmas. Não estamos acostumados. Quando você vai para a casa de outra pessoa, você precisa adaptar-se ao seu modo de vida dela". 

Muitos na cidade também temem que os desesperados venezuelanos os prejudiquem no mercado de trabalho local. 

Paulo Sergio Rodrigues, 58 anos, contratado em Boa Vista, perdeu metade de sua renda depois que trabalhadores venezuelanos chegaram à cidade pedindo apenas um terço do que ele cobra. Mas ele afirma que não baixará seus preços. "Isso desvalorizaria meu trabalho". Ele trocou seu carro por uma moto para cortar custos. 

Outros, como o vendedor de frutas Valmor Saldenia, 49, culpam os venezuelanos por uma onda de crimes que assustam os clientes. Roubos menores – particularmente furtos em mercearias – aumentaram acentuadamente, mostram as estatísticas policiais. 

Leia também: Venezuelanos são suspeitos de 65% dos crimes em Pacaraima

"As pessoas estão deixando o mercado público. Elas estão com medo que suas bicicletas e a comida sejam roubada", diz Saldenia. 

Saldenia, que vende milho pelo equivalente a 30 centavos por espiga, diz que seu negócio caiu 50% desde que os venezuelanos começaram a chegar em grande número. 

A poucos metros da entrada do mercado, Robert Jimenez, 37, vendia milho por cerca de 16 centavos por espiga. Ele ganha apenas alguns centavos de lucro e mede o sucesso pela sobrevivência. Em um bom dia, ele vai comer. Em um dia ruim, ele não vai. 

O imigrante venezuelano Robert Jimenez vende produtos à beira do mercado público em Boa VistaGui Christ/The Washington Post

Ex-operário da cidade de Maturin, no norte da Venezuela, ele veio ao Brasil há dois meses, quase morrendo de fome. Ele tinha alugado um quarto com o irmão, mas foram despejados. Os irmãos pagaram o aluguel, ele disse. "Mas eu não acho que eles gostaram dos venezuelanos." 

Agora ele está dormindo na rua. 

Apesar de seus baixos preços, é difícil atrair clientes brasileiros. “Muitos se afastam quando ouvem seu sotaque”, conta. Um brasileiro ameaçou seu irmão com uma arma. 

"Eles nos temem", afirma Jimenez.

No final de um dia de trabalho de 17 horas, ele não tinha vendido uma única espiga de milho ou feito uma refeição. 

Perguntado como estava, ele disse: "Excelente. Ainda estou vivo".

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