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O presidente russo, Vladimir Putin. Foto: Alexei Druzhinin / Sputnik / AFP| Foto:

Depois de pouco mais de 1,5 ano em uma prisão russa aguardando julgamento por "extremismo", Dennis O. Christensen, um dinamarquês testemunha de Jeová detido por sua religião, recebeu um alento inesperado de Vladimir Putin, no fim do ano passado: em discurso no Kremlin, em dezembro, o presidente declarou que a perseguição religiosa era "insanidade total" e tinha de parar.

Porém, em vez de acabar com a campanha russa contra os membros dessa fé, a declaração presidencial foi seguida de novas prisões, a condenação e a sentença de seis anos de cadeia para Christensen e, para piorar, relatos de tortura de fiéis na Sibéria em fins de fevereiro.

O abismo entre o que Putin diz e o que acontece na Rússia levanta uma questão fundamental sobre a natureza de seu governo, depois de mais de 18 anos no topo de um sistema autoritário: será que ele é realmente o líder onipotente que seus críticos atacam e que seus próprios doutrinadores promovem? Ou será que é o cabeça de um Estado que, na verdade, é intrinsecamente decrépito, um sistema movido mais pelas estimativas caprichosas e geralmente venais de burocracias concomitantes e grupos de interesses do que pelos ditames do Kremlin?

A crença comum entre os críticos de Donald Trump, a de que a Rússia o colocou na Casa Branca graças ao conluio com sua campanha, é, em parte, resultado da primeira impressão que se tem em relação às capacidades e ao alcance de Putin. O relatório de Mueller pode ajudar os norte-americanos a entender melhor como a Rússia opera – ou não – na realidade, mas, para alguns conterrâneos de Putin, o controle do russo é menor do que se imagina.

Ekaterina Schulmann é cientista política em Moscou e membro do Conselho para a Sociedade Civil e Direitos Humanos, que questionou o presidente a respeito da perseguição das testemunhas de Jeová no tal encontro de dezembro no Kremlin – e diz que o controle que Putin exerce sobre o país é exagerado tanto por defensores quanto por opositores.

"Este não é um império dirigido por um homem só, mas sim uma máquina burocrática imensa e difícil de manejar, com suas próprias regras internas e princípios. É muito comum o presidente dizer uma coisa e nada acontecer ou acontecer o contrário", diz ela.

Sistema disfuncional

Uma série de forças políticas e burocráticas tanto reforçam como sugam o poder presidencial: são os serviços de segurança, a Igreja Ortodoxa Russa, os oligarcas bilionários, as autoridades locais e outros, cada um com interesses contraditórios e, às vezes, concomitantes. Putin tem de gerenciá-los da melhor forma possível, mas obviamente não controla tudo que todos fazem.

Um analista é ainda mais direto ao se referir a Putin e ao Estado que preside. "O sistema é disfuncional. É impossível um único homem controlar tudo", garante Andrew Wood, ex-embaixador britânico em Moscou e hoje membro associado da organização de pesquisas Chatham House, de Londres.

Para a maioria dos ocidentais, acostumada a ver Putin desfilando na frente das câmeras de TV projetando uma aura de comando natural, sem esforço, tais afirmações podem parecer inacreditáveis. É verdade que em questões de alto prestígio do Estado, como sediar os Jogos Olímpicos ou a Copa do Mundo, ou construir uma ponte para a Crimeia, Putin faz o sistema funcionar de acordo com suas ordens. O mesmo vale para questões que reforçam seu controle no poder, como a repressão a oligarcas desobedientes e oponentes políticos.

De fato, depois de tomar posse, ao fim de 1999, ele efetivamente diminuiu a desordem generalizada e as brigas internas que deixaram o país com uma máquina estatal que mal funcionava sob seu antecessor, Boris Yeltsin, bêbado quase todo o tempo; por outro lado, muitos projetos que apoiava, como uma ponte importante no Rio Amur, entre a Rússia e a China, e o empreendimento de grande destaque de construção de uma rodovia entre Moscou e São Petersburgo, emperraram.

Palavras x ações

Há limites de tempo e capital político que Putin consegue dedicar na lida com funcionários e contratados corruptos e/ou incompetentes. Um bom exemplo é a construção do novo centro de lançamento de foguetes no Extremo Oriente russo, vendido pelo presidente como "um dos maiores projetos, e mais ambiciosos, da Rússia moderna", mas que já leva anos além do planejado, atrasada pela corrupção, as greves dos operários não remunerados e outros problemas. Segundo a Procuradoria-Geral em Moscou, mais de US$ 150 milhões foram desviados da obra que, segundo dizem, foi emperrada por 17 mil violações legais cometidas por mais de mil pessoas.

Esse contraste drástico entre as palavras de Putin e as ações do sistema ficaram bem claras novamente em fevereiro, quando a polícia moscovita prendeu Michael Calvey, o norte-americano fundador de um dos fundos de investimento voltados para a Rússia maiores e mais antigos, sob acusação de fraude após uma disputa com um rival pelo controle de um banco russo.

A detenção de Calvey, que poderia resultar em até dez anos de cadeia, contradiz as constantes declarações de Putin de que a Rússia deve atrair investidores estrangeiros e impedir que as agências policiais e de segurança se intrometam em disputas comerciais.

Segundo Dmitry Peskov, porta-voz do Kremlin, Putin não teve conhecimento prévio da prisão de Calvey, mas ninguém além do círculo mais íntimo do presidente pode ter certeza disso.

Alexei Kudrin, velho amigo liberal do presidente e seu ex-ministro da Fazenda, reclamou que a detenção "ignorava ostensivamente as diretivas do presidente, criando uma emergência para a economia".

O comentário de Kudrin gerou um desprezo generalizado. Críticos de Putin acusaram o ex-ministro de se iludir com a ideia de que o presidente não era responsável pelos problemas de Calvey e inúmeros outros exemplos da aplicação da lei russa em que as autoridades erraram a mão.

"Não vivemos mais na Idade Média"

Christensen, o dinamarquês detido desde maio de 2017, diz ainda ter esperança de que Putin exija obediência à declaração que deu em dezembro, dizendo que o país "pode e deve ser mais liberal em relação às testemunhas de Jeová".

"Fiquei bem animado com isso que ele disse. Espero que tenha falado a verdade e seja honesto. Putin deixou bem claro que uma atitude dessas é inadmissível no século XXI. Não vivemos mais na Idade Média", afirmou Christensen, de 47 anos, em fevereiro, ao ser entrevistado na prisão em videoconferência com o tribunal de Oryol, 370 quilômetros ao sul de Moscou.

O ex-carpinteiro foi considerado culpado, no início de fevereiro, de cometer um crime grave e premeditado aos fundamentos da ordem constitucional e à segurança do Estado por participar de leituras da Bíblia e sessões de orações.

Sua mulher, Irina, que é russa, compareceu à audiência em que o advogado entrou com uma petição pedindo a soltura e a prisão domiciliar, dependendo do resultado da apelação da sentença. Ela diz não saber se Putin fez os comentários só como uma manobra de relações-públicas ou se cedeu a outras forças do sistema que favorecem a repressão violenta.

A Igreja Ortodoxa há anos combate as testemunhas de Jeová, rival que vê como uma seita herética, hostilidade que se ajusta perfeitamente aos interesses dos serviços de segurança, que desde os tempos soviéticos encaram a denominação como subversiva, uma vez que sua sede fica nos EUA e seus membros se recusam solenemente a entregar uns aos outros.

Para reforçar o pedido de libertação de Christensen, sua advogada, Irina Krasnikova, observou no tribunal que os juízes envolvidos anteriormente no caso "pelo visto não tinham lido a declaração do presidente". O juiz, sem se deixar impressionar, ordenou que o dinamarquês permanecesse atrás das grades.

"O culto de Putin como líder de um 'poder vertical' supremo é mito. Não existe. O presidente é uma mancha obscura que permite que cada um crie uma versão própria de Putin, ou seja, o todo-poderoso maquiavélico ou o burocrata que luta para manter um sistema basicamente decrépito em pé", diz Mark Galeotti, especialista britânico na Rússia e autor do livro "We Need to Talk About Putin: How the West Gets Him Wrong".

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