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Polícia Militar da Bolívia em protesto de apoiadores do ex-presidente da Bolívia, Evo Morales, em La Paz, 14 de novembro de 2019
Polícia Militar da Bolívia em protesto de apoiadores do ex-presidente da Bolívia, Evo Morales, em La Paz, 14 de novembro de 2019| Foto: RONALDO SCHEMIDT / AFP

Não foi apenas o sentimento de dever cívico despertado por suspeitas de fraude eleitoral que fez com que a Polícia Nacional em Santa Cruz de La Sierra decidisse se amotinar contra o governo Evo Morales levando à queda do governo. Segundo o comandante da corporação local, coronel Miguel Mercado, o mal-estar da tropa começou com a ordem de aquartelamento que seguiu a eleição de 20 de outubro.

Aquartelados, os policiais não podiam usar os dias de folga para fazer os bicos que complementam o salário baixo, um dos menores do continente.

"A polícia boliviana é uma das que recebem menor remuneração em toda a região. A maior parte dos policiais faz seu serviço e depois trabalha em outra coisa. São motoristas de táxi ou têm os próprios negócios. Este problema social da Bolívia é muito grande", disse o coronel na sede do comando da Polícia Nacional em Santa Cruz.

O motim policial em Santa Cruz foi anunciado no dia 9 pelo presidente da Associação de Soldados, Cabos e Sargentos, Javier Trigueiro. No dia seguinte, pressionado pelo comando das Forças Armadas e os protestos organizados em sua maioria por jovens, Evo renunciou.

Segundo Mercado, durante as três semanas em que a tropa ficou aquartelada ou mobilizada em cidades do interior para evitar distúrbios políticos, o mal-estar provocado pela impossibilidade de fazer bicos se somou à indignação cívica.

"O desgaste foi este. Afetados por muito tempo de aquartelamento a maior parte começou a mostrar um mal-estar que piorou quando se falou que existiam fraudes. Os policiais diziam que não podiam trabalhar defendendo a ilegalidade", disse o coronel.

O piso salarial da polícia boliviana é de menos de B$ 2,4 mil, equivalentes a R$ 1,5 mil. No topo da carreira, os vencimentos chegam a B$ 14 mil (R$ 8,7 mil).

Esta não foi a primeira vez que a insatisfação salarial da polícia levou à queda de um governo na Bolívia. "Em 2003, quando o governo Sánchez de Lozada caiu, os policiais se amotinaram do mesmo jeito. Por quê? Porque lhes tiraram B$ 50 (para impostos). Isso é muito dinheiro para um policial. Representa o pão de uma semana", lembrou Mercado.

O governo Evo ainda tentou conter o descontentamento depositando B$ 3 mil nas contas de 36 mil policiais de baixa patente, mas era tarde demais. A imagem do sargento Trigueiro anunciando o motim em meio aos líderes do Comitê Cívico pró-Santa Cruz, principal polo da oposição a Evo, viralizou e uma onda de motins policiais se espalhou por vários departamentos.

Para analistas, a revolta da Polícia Nacional em Santa Cruz foi tão importante para a queda do governo quanto as manifestações populares lideradas pelo presidente do comitê cruzenho, o advogado Luís Fernando Camacho, que também se espalharam para o restante do país.

Reduto

Com aproximadamente 3,3 milhões de habitantes, Santa Cruz, a cidade mais rica da Bolívia, é historicamente um reduto de oposição ao governo central de La Paz. O Comitê Cívico nasceu em 1950 de uma demanda local por mais participação na divisão dos impostos federais. Na época, o departamento recebia 1% do montante. Após forte mobilização passou a receber 11%.

A demanda por maior autonomia em relação à capital gerou ao longo das décadas várias tentativa de sublevação. A última foi em 2009, quando o Comitê hoje presidido por Camacho liderou a chamada Meia Lua, formada pelos departamentos do leste boliviano (Tarija, Santa Cruz, Beni e Pando) numa tentativa de ganhar autonomia em relação a La Paz que terminou em acordo.

As diferenças em relação a La Paz vão além da política e têm componentes, geográficos, étnicos, religiosos e econômicos. Ao contrário dos departamentos do Altiplano, Santa Cruz fica na planície amazônica, fazendo fronteira com o Brasil.

A economia tem como base o agronegócio e a indústria (responde por 25% do PIB e produz 70% dos alimentos da Bolívia) e a população tem origem guarani ou europeia, autodenominada "camba" enquanto no Altiplano a população é em sua maioria de indígenas quíchua ou aimara.

A eleição de Evo com a bandeira de valorização das comunidades indígenas acentuou essas diferenças. O componente racial é um elemento importante na política boliviana. Mas, para o vice-presidente do Comitê Cívico, o médico Romulo Calvo, a cidade reflete mais a cultura inter-racial do que o Altiplano. "Somos a quarta cidade com maior crescimento demográfico do mundo. Aqui em Santa Cruz temos todos os componentes de uma cultura cosmopolita", disse.

"Há um pequeno grupo racista, mas não é determinado como corrente política", completou o secretário departamental de governo, Vladimir Peña.

Outro fator diferencial é o cristianismo. Por toda Santa Cruz é possível ver símbolos cristãos. Não foi por acaso que Camacho escolheu o Cristo Redentor como local para as mobilizações nas quais fazia discursos por vezes histriônicos com uma Bíblia na mão. Mas, segundo Peña, o uso de símbolos religiosos é uma característica pessoal de Camacho.

"Em Santa Cruz há maior ligação com os símbolos cristãos, mas o que nos move politicamente não é a religião. Camacho deu este impulso, mas a Bíblia não foi determinante para isso", afirmou. Peña e Calvo refutam a possibilidade de o movimento civil que ajudou a derrubar Evo se transforme em uma alternativa política, mas admitem que o nome de Camacho está na boca do eleitorado.

Novas eleições

Uma semana depois de Evo Morales ter renunciado e Jeanine Áñez ter assumido a presidência do governo de transição, ainda não houve acordo para viabilizar as reformas à lei eleitoral.

O ministro da Presidência, Jerjes Justiniano, disse nesta segunda-feira (18) que o governo interino não descarta convocar novas eleições mediante um decreto, diante da falta de acordo com o Movimento ao Socialismo (MAS), partido de Morales, na Assembleia Legislativa.

"Qual é o nosso mandato constitucional? Aqui há duas interpretações. Alguns dizem que nosso mandato vai até o dia 22 de janeiro e as eleições deveriam ser convocadas até essa data. Há outra interpretação que diz que a lei dá 90 dias para convocar as eleições porque em nenhuma parte a Constituição diz que o mandato termina em 22 de janeiro. Qualquer que seja, cada dia que se passa é um dia a menos, e não um dia a mais, do prazo que temos", explicou Justiniano, segundo o Pagina Siete.

A convocação de eleições por decreto tem jurisprudência no mandato do presidente interino Eduardo Rodríguez Veltzé (2005 - 2006).

Fake news na Bolívia aumentam hostilidades

Desde a renúncia de Evo Morales no dia 9, a cidade de Yapacaní, no Departamento de Santa Cruz, tem sido alvo de confrontos entre cocaleiros apoiadores do ex-presidente e moradores locais. Um jovem de 20 anos morreu, vítima de arma de fogo, e várias casas e instalações públicas, entre elas a única rádio local e o posto da Polícia Nacional, foram incendiadas. Vinte e oito pessoas estão presas.

Os cocaleiros vindos de Chapare, no Departamento de Cochabamba, estavam acampados no entorno da cidade e bloquearam a ponte que dá acesso a Yacapaní duas semanas atrás, mas não havia registro de incidentes violentos até que no dia 10 adversários de Evo distribuíram via WhatsApp um vídeo no qual comemoravam efusivamente a renúncia do ex-presidente. A postagem desencadeou a onda de violência que levou à morte do jovem.

Segundo fontes da polícia, o caso de Yapacaní é um exemplo de como as redes sociais têm sido usadas para incitar a violência entre grupos políticos opositores. "Estamos com muita dificuldade para lidar com isso. As pessoas não conseguem distinguir o que é verdade do que é mentira", disse um oficial. Segundo ele, uma das condições colocadas pelos cocaleiros para desarmar o bloqueio foi um pedido de desculpas formal pelo vídeo postado.

"Nossa gente se sentiu extremamente ofendida com aquele vídeo. Aquilo é uma provocação", disse o cocaleiro Hugo Casas, que ajuda a manter o bloqueio em Yapacaní.

Uma tentativa de acordo mediada ontem pela polícia fracassou e o bloqueio continua, ameaçando a cidade de desabastecimento de comida e outros itens básicos.

Ontem, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) divulgou um balanço de 23 mortos desde o início da crise boliviana, no dia 21, e classificou como "grave" um decreto assinado pela presidente interina da Bolívia, Jeanine Añez, que autoriza as Forças Armadas a usarem "todos os recursos" para controlar distúrbios de ordem política e isenta militares de responsabilidade penal em casos de "cumprimento de suas funções Constitucionais, ataque em legítima defesa ou estado de necessidade".

O decreto foi assinado um dia antes de nove cocaleiros serem mortos a tiros pela polícia de Cochabamba quando tentavam furar um bloqueio. Ontem, o ministro da Presidência, Jerjes Justiniano, negou que o documento seja um estímulo à violência. "De nenhuma maneira o decreto é uma licença para matar. É um elemento dissuasivo. O que o governo pretende é evitar os confrontos que podem levar a mais mortes", afirmou.

Desde o início da crise uma avalanche de notícias falsas tem invadido as redes sociais bolivianas. Uma delas dava conta da queda de um avião com um ex-ministro de Evo com dólares e armas na fronteira com o Brasil. Outras citavam uma conta falsa de Jeanine, que também foi alvo de montagens em vídeo. No início da semana passada, imagens de opositores de Evo queimando uma wiphala (a bandeira multicolorida que representa o orgulho indígena) provocou protestos violentos em La Paz.

Conteúdo editado por:Helen Mendes
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