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Alexander Nevzorov é o primeiro jornalista de destaque a ser investigado com base na nova lei de fake news da Rússia
Alexander Nevzorov é o primeiro jornalista de destaque a ser investigado com base na nova lei de fake news da Rússia| Foto: Reprodução/YouTube

Como é a cobertura jornalística de uma guerra dentro do país que a deflagrou, ainda mais uma nação onde vozes discordantes costumam ser alvos de tentativas de envenenamento, ações criminais e rótulos de “agentes estrangeiros”?

Na mídia russa, onde a maior parte da grande imprensa é estatal e/ou obediente ao presidente Vladimir Putin, a guerra na Ucrânia, que completou um mês na quinta-feira (24), é retratada segundo a visão do Kremlin: uma “operação militar especial” (a palavra guerra é proibida) para “desmilitarizar e desnazificar” um país vizinho que ameaça russos étnicos.

Nessa guerra de narrativas, tudo que o inimigo relata é falso. O estatal Canal 1, uma das emissoras mais populares da Rússia, desqualificou relatos ucranianos sobre destruição de equipamentos militares russos como armação para “enganar espectadores inexperientes”.

“Continuam a circular na internet imagens que não podem ser descritas como nada além de falsas”, afirmou um apresentador, que descreveu fotografias desses danos como “manipulações virtuais nada sofisticadas”.

Os relatos da mídia russa também retratam as forças do país invadido, sempre descritas como “nacionalistas ucranianos”, como responsáveis por atos de extrema covardia. O canal Rossiya 1, também estatal, informou que os militares da Ucrânia “usam civis como escudo humano” e atacam áreas residenciais na região de Donbass.

A agência Sputnik, ligada ao governo russo, informou nesta semana que “militantes de batalhões nacionalistas” em Sumy (nordeste da Ucrânia) dispararam uma granada antitanque contra uma ambulância, matando trabalhadores de saúde, e que nesta cidade e em outras duas, Chernigov e Zaporizhzhia, “os comandantes dos batalhões nacionalistas estão saqueando prédios residenciais e organizações públicas e privadas” e corredores humanitários não estão sendo estabelecidos porque “Kiev mais uma vez se recusou” a negociar.

A Sputnik nada falou sobre os danos e sofrimento infligidos pelo exército russo em Mariupol, a cidade ucraniana mais atingida pela guerra, mas deu destaque a alegações do Ministério da Defesa da Rússia que davam conta que “neonazistas ucranianos” estariam impondo “terror implacável nos bairros de Mariupol que ainda controlam, onde matam diariamente entre 80 e 235 cidadãos”.

Número de mortos

Na quarta-feira (23), a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) estimou que entre 7 mil e 15 mil soldados russos foram mortos nas quatro primeiras semanas da guerra na Ucrânia, mas o tom triunfalista e chapa-branca da cobertura da mídia local não deixa que qualquer ameaça ao moral do país ganhe destaque.

“Eles [a população russa] ouviram falar desses números, mas simplesmente não acreditam neles. Acreditam nos números oficiais russos, que falam em algumas centenas [de mortos]”, afirmou Stanislav Kucher, ex-apresentador de televisão russo e ex-membro do Conselho para a Sociedade Civil e Direitos Humanos do país, à CNN.

Após a entrevista de Kucher, a Rússia informou que 1.351 de seus soldados morreram até agora no conflito na Ucrânia.

A agência Interfax, que é privada, costuma ser citada como fonte de informações pela mídia ocidental, mas, embora evite o tom bajulatório da maior parte da imprensa russa, não costuma publicar nada que possa gerar dissabores com o governo Putin.

Ela até publicou esta semana reportagens sobre a transferência de mais de 300 crianças ucranianas para tratamento de câncer no exterior e a conversa do presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, com o papa Francisco.

Mas na primeira notícia, não citou que a guerra foi o motivo da transferência forçada, e na segunda, apesar de ter mencionado a “busca pela paz”, omitiu que Francisco havia definido o conflito como “sacrilégio” e “desumano” e que Zelensky citou na conversa o bloqueio de corredores humanitários pela Rússia – temas abordados na reportagem da mídia oficial do Vaticano.

Da mesma forma, ao noticiar a reabertura da Bolsa de Moscou, a Interfax não mencionou que seu fechamento “por quase um mês” ocorreu em razão das sanções que estão prejudicando a economia russa.

Nova lei fecha cerco à imprensa independente

A organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF) colocou a Rússia em 150º lugar entre 180 países no seu Índice Mundial de Liberdade de Imprensa de 2021.

“Com leis draconianas, bloqueio de sites, cortes na internet e principais meios de comunicação controlados ou sufocados, a pressão sobre a mídia independente vem crescendo constantemente desde os grandes protestos antigovernamentais de 2011 e 2012”, justificou a RSF.

No início de março, entrou em vigor na Rússia uma lei que estipula até 15 anos de prisão para quem publicar informações “falsas” sobre as forças armadas russas – nesse caso, “falso” pode ser compreendido como qualquer coisa que contrarie a narrativa oficial do Kremlin. “Isso deixa pouca esperança para o futuro dos poucos meios de comunicação independentes restantes no país”, lamentou a RSF.

Na sexta-feira (25), outra lei estendeu essas punições para quem publicar informações consideradas falsas sobre qualquer ação do governo russo (e não apenas militares) no exterior.

A Rússia anunciou na terça-feira (22) a abertura de um processo criminal contra o jornalista Alexander Nevzorov, por alegar que o exército russo bombardeou deliberadamente uma maternidade em Mariupol. Nevzorov, que atua principalmente nas redes sociais e no YouTube, é o primeiro repórter e comentarista político de destaque a ser investigado com base na nova legislação de fake news do país.

Pelo histórico de Putin de repressão à imprensa e por receio da nova legislação, outros jornalistas independentes também têm tomado precauções. O Novaya Gazeta, cujo editor, Dmitri Muratov, foi um dos ganhadores do Nobel da Paz no ano passado, tem usado elipses e a frase “palavra proibida pelas autoridades russas” quando entrevistados citam a palavra “guerra”.

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