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Como o mundo mudou em 2019
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Em 2019 o mundo acompanhou uma tentativa fracassada de levante contra o ditador Nicolás Maduro na Venezuela, protestos em vários cantos do globo, instituições sob ataque, desastres naturais, uma das igrejas mais famosas do mundo em chamas, a derrota do Estado Islâmico na Síria e tantas outras histórias surpreendentes. Contudo alguns acontecimentos tiveram efeitos mais importantes para a geopolítica e continuarão repercutindo nos próximos anos. Eles merecem ser analisados mais de perto para entender como o mundo mudou em 2019.

Mais do que comércio: o antagonismo entre EUA e China

Estados Unidos e China encerraram 2019 com um acordo parcial na guerra comercial, evitando uma nova escalada de tarifas de importação entre as duas maiores economias do mundo. Mas no decorrer deste ano tornou-se ainda mais evidente que as diferenças entre eles vão muito além da balança comercial. Trata-se de geopolítica pura. E no âmago da questão está a internet de quinta geração e uma disputa pelo domínio das telecomunicações em alta velocidade.

Com a empresa Huawei, a China passou a liderar o desenvolvimento da tecnologia 5G, com sua própria infraestrutura, cadeias de suprimentos e seus próprios padrões, fazendo surgir uma competição entre os ecossistemas tecnológicos do Ocidente, construído pelo setor privado e pouco regulamentado, e da China, dominado pelo estado.

Com subsídios estatais, a Huawei consegue oferecer tecnologia de ponta com preços bem mais competitivos do que as suas concorrentes, como a sueca Ericsson. E quanto mais clientes ela vai conquistando, maior é a influência dos chineses no jogo geopolítico.

Nenhum outro país dedicou mais investimentos para preparar o terreno para a 5G do que a China - um esforço tecnológico classificado pelo cientista político Ian Bremmer como a mais importante decisão geopolítica tomada nas últimas três décadas e a maior ameaça à globalização.

Mas por que a 5G chinesa assusta tanto? Os Estados Unidos argumentam que, se os equipamentos da Huawei fizerem parte das redes globais 5G, o governo chinês poderá ter acesso aos dados que passarão pelo hardware da empresa, deixando companhias e cidadãos suscetíveis à espionagem - motivo pelo qual o governo americano proibiu, em maio, as empresas americanas de comercializarem com a chinesa.

O fundador da Huawei, Ren Zhengfei, insiste que sua companhia nunca permitiu a espionagem do governo chinês e não planeja permitir. Mas as autoridades dos EUA estão céticas quanto à resistência da empresa a uma diretiva do governo, já que existe uma lei na China que obriga as empresas a compartilharem informações com o governo em casos de segurança nacional.

Além disso, há um vínculo claro entre a empresa e o centro do poder em Pequim. Uma reportagem do The Telegraph, publicada em julho, mostrou que funcionários da Huawei já trabalharam para o governo comunista chinês em áreas estratégicas, como o Ministério da Segurança de Estado, e em projetos do exército.

Em momento em que os países estão decidindo quais empresas fornecerão a infraestrutura para a criação de redes 5G em seus territórios, China e EUA começaram uma cruzada para conseguir aliados. No Brasil, o leilão de faixas de frequência deve ocorrer no final de 2020 e o governo de Jair Bolsonaro já está sendo pressionado por ambos os lados.

A desconfiança entre China e EUA também chegou ao setor de defesa.

Sob o governo de Donald Trump, os EUA começaram a dar prioridade à preparação para um eventual confronto entre grandes potências, como China e Rússia. Isso porque enquanto os americanos estiveram envolvidos em vários conflitos regionais, especialmente no Oriente Médio, a China implantou mísseis de precisão e outros sistemas de contra-intervenção para minar a primazia militar dos EUA - pelo menos na Ásia. Segundo um estudo da Universidade de Sidney, na Austrália, a balança de forças militares na região já começa a pender para o lado da China.

Essa postura americana, embora tenha sido desenhada no início da administração Trump, ainda está sendo implementada. Um dos grandes avanços em 2019 foi a aprovação, pelo Congresso, da Força Espacial americana, que tem como principal objetivo proteger os Estados Unidos de um eventual ataque da China ou da Rússia contra seus satélites.

Pequim, por sua vez, diz que não tem interesse em uma hegemonia regional, mas não deixou de citar os Estados Unidos em seu mais recente plano militar, apresentado em julho. No documento, a China afirma que a competição militar global está aumentando e a culpa é dos Estados Unidos, que está se engajando em "inovação tecnológica e institucional em busca da superioridade militar absoluta" e ajustando sua postura de segurança nacional ao considerar a China uma rival.

Sugestões de leitura:

Sonho de liberdade em uma China cada vez mais autoritária

  • Manifestante provoca incêndio para impedir que a polícia entre no câmpus da Universidade Politécnica de Hong Kong | Foto: Philip Fong/AFP
  • Manifestante levanta cartaz em protesto contra o projeto que autorizaria extradições para a China | Foto: Philip Fong/AFP
  • Manifestantes pró-democracia agitam bandeiras dos EUA em Hong Kong | Foto: Vivek Prakash / AFP
  • Um manifestante joga tijolos na polícia depois do disparo de gás lacrimogêneo contra manifestantes, em 5 de agosto de 2019, em Hong Kong | Foto: ISAAC LAWRENCE/AFP
  • Manifestante é espancado pela polícia de choque enquanto tenta encontrar uma passagem segura para fora do campus da Universidade Politécnica de Hong Kong | Foto: Aung Thu/AFP
  • Pessoas se reúnem no Victoria Park para uma manifestação pró-democracia em Hong Kong | Foto: Anthony WALLACE / AFP
  • Uma mulher segura um desenho representando o presidente da China, Xi Jinping, beijando a chefe-executiva de Hong Kong, Carrie Lam durante protesto pró-democracia em Hong Kong | Foto: NICOLAS ASFOURI/AFP
  • Manifestante detido pela polícia perto da Universidade Politécnica de Hong Kong | Foto: Anthony WALLACE / AFP
  • Manifestante pró-democracia mascarado posando para um retrato em Hong Kong | Foto: NICOLAS ASFOURI/AFP

A expansão global da China, porém, não diminui seus problemas em casa. O partido comunista está enfrentando um de seus maiores desafios da década com os protestos pró-democracia que eclodiram em Hong Kong, a pujante cidade semiautônoma que é a principal porta de entrada de capital estrangeiro na China.

Tudo começou em junho, quando o governo local (pró-Pequim) propôs emendas à lei de extradição de Hong Kong que permitiriam que fugitivos fossem enviados à China continental, potencialmente expondo dissidentes e críticos do governo comunista à perseguição política. O movimento rapidamente ganhou corpo e se tornou maior do que o "Occupy Central" de 2014, que pedia reformas políticas e eleições democráticas na cidade.

Os manifestantes conquistaram duas vitórias importantes nesses seis meses de protestos: o projeto de emenda foi arquivado e políticos pró-democracia venceram as eleições locais de novembro. Mas agora a situação chegou a um impasse. Enquanto os manifestantes não dão sinal de trégua, Pequim e Carrie Lam, líder de Hong Kong, afirmam que não estão dispostos a fazer mais concessões.

Algumas perspectivas não são nada animadoras. “É provável que o regime leninista agora reduza radicalmente as liberdades que protegia [sob a política "um país, dois sistemas"] e imponha controles rígidos para garantir que esse tipo de crise nunca mais aconteça. Ainda não se sabe se Hong Kong pode sobreviver como um centro financeiro internacional sob esse regime”, analisou Richard Bush, especialista em assuntos da China no Instituto Brookings, baseado nos EUA.

Enquanto a incerteza paira sobre Hong Kong, a China continua a busca por uma “completa reunificação” de seu território. O alvo da vez é Taiwan, a ilha governada democraticamente que se separou da China em meio à guerra civil de 1949. Ao publicar o Livro Branco do Ministério da Defesa pela primeira vez em quatro anos, a China afirmou que está disposta a mobilizar forças militares para "conter a independência de Taiwan" e combater o que considera forças separatistas no Tibete e na região de Xinjiang, no extremo oeste de seu território. Ao longo de 2019, a China conduziu exercícios militares perto da ilha e constantemente critica os EUA por venderem armas militares para a nação insular.

A agressividade do Partido Comunista Chinês, porém, não é direcionada exclusivamente aos territórios insulares e aos Estados Unidos. Uma das notícias mais dramáticas de 2019 veio da revelação de como o governo chinês persegue, sequestra, prende e doutrina minorias religiosas do país. Documentos vazados de dentro da administração chinesa revelaram a repressão contra os uigures, muçulmanos que vivem principalmente na província de Xinjiang, e confirmaram violações de direitos humanos em uma escala enorme. Um exemplo: um homem foi condenado a 10 anos de prisão por “reunir uma multidão para perturbar a ordem social” e promover “pensamentos religiosos extremistas” ao pedir aos outros que orassem, se abstivessem de assistir à pornografia e evitassem usar "palavrões", segundo a sentença.

E a perseguição religiosa não para aí. Neste ano, o governo chinês multou igrejas protestantes pela posse de Bíblias e panfletos religiosos. Todo o material foi queimado pelo governo. Em outro caso, bibliotecários de uma cidade no condado de Zhenyuan queimaram livros e materiais religiosos para demonstrar sua lealdade ao Partido Comunista.

Sugestões de leitura:

Táticas assimétricas do Irã aumentam a tensão no Oriente Médio

Por volta da metade do ano, o mundo viu com apreensão os acontecimentos que se desenrolaram no Oriente Médio, temendo pelo pior. Irã e Estados Unidos estiveram à beira de um conflito com potencial de ser o pior em décadas na região. O ímpeto de guerra, felizmente, foi contido, mas os problemas estão longe de ser resolvidos.

Uma breve recapitulação do que aconteceu: um ano depois que os Estados Unidos haviam se retirado do acordo nuclear iraniano de 2015, o país persa, amargando uma crise econômica resultante das sanções americanas à sua economia, inclusive ao petróleo, resolveu adotar uma postura mais agressiva em relação ao Ocidente. Suspendeu parcialmente o acordo nuclear, aumentando os níveis de enriquecimento de urânio e do estoque do material; engajou-se em uma retórica - ainda mais - combativa em relação aos Estados Unidos; e pressionou os demais países signatários do pacto nuclear a encontrar maneiras de burlar as sanções dos EUA para continuar comprando petróleo iraniano. É suspeito de promover uma série de ataques contra navios petroleiros no Golfo Pérsico - tendo inclusive sequestrado um navio britânico; e tudo indica que esteve por trás dos ataques às instalações petroleiras da Arábia Saudita, reivindicado pelos rebeldes do Iêmen, os houthis, apoiados pelo Irã. (Sim, tudo isso aconteceu esse ano, de maio a setembro.)

O momento mais tenso do conflito ocorreu quando o Irã derrubou um drone militar dos Estados Unidos que sobrevoava perto de seu espaço aéreo - as autoridades iranianas alegaram que a aeronave não tripulada havia invadido o país. Horas depois do incidente, o presidente americano, Donald Trump, disse que estava prestes a ordenar um contra-ataque contra vários alvos iranianos, mas mudou de ideia por considerar a ação desproporcional.

Contudo, os ataques às instalações petroleiras da Arábia Saudita tiveram um impacto global ainda maior pela importância econômica da região, fazendo os mercados oscilarem em todo o mundo, e pela exposição da vulnerabilidade do país que é o maior comprador global de armas militares.

Analistas disseram que o ataque, pela sua natureza sofisticada, evidenciou que as armas fabricadas pelo Irã, especialmente drones e mísseis, são uma ameaça em rápida evolução, com potencial de atingir infraestruturas críticas com precisão. Por outro lado, os sistemas de defesa saudita não conseguiram detectar os mísseis de cruzeiro e os drones que sobrevoaram suas fronteiras, ressaltando a vulnerabilidade do reino à guerra assimétrica e questionando a eficácia das armas americanas.

De acordo com o vice-presidente do Middle East Institute, Gerald M. Feierstein, com essa série de movimentos provocativos projetados para revidar a campanha de "pressão máxima" do governo Trump, os iranianos conseguiram forçar seus principais adversários, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, a contemplar os custos potenciais de uma guerra e optar por recorrer ao engajamento diplomático. No fim das contas, as tensões acabaram diminuindo e dando espaço para conversas que podem levar à uma saída negociada para a guerra no Iêmen. Os Estados Unidos, por sua vez, em uma reversão da sua política de não-intervenção, aumentaram a presença militar no Oriente Médio ao enviar três mil soldados para a Arábia Saudita e um porta-aviões para o Golfo Pérsico, sob a justificativa de proteger os navios comerciais do país e de seus aliados que navegam naquelas águas.

Mas com Irã e Estados Unidos longe de chegar a um renovado acordo nuclear, a instabilidade na região permanece crítica. Soma-se a isso o fato de o regime iraniano estar massacrando sua própria população ao reprimir protestos desencadeados pelo aumento abrupto do preço da gasolina. Mais de 300 pessoas morreram em uma resposta dura que, segundo analistas, mostra claramente que o regime islâmico está em pânico ao ver sua popularidade diminuir. Porém, todas as facções do regime, inclusive os “moderados”, apoiaram a repressão - o que, de acordo com Alex Vatanka, especialista em assuntos de segurança regional do Oriente Médio, pode ser considerado o último prego no caixão do movimento reformista no Irã.

Sugestões de leitura:

Uma nova guerra fria entre EUA e Rússia?

Mais um evento relevante que marcou 2019 e continuará repercutindo no ano que está chegando: o fim do tratado de armas nucleares de alcance intermediário entre Estados Unidos e Rússia, conhecido pela sigla INF. O presidente Donald Trump já havia anunciado em 2018 que retiraria o país do acordo histórico, o que foi oficializado em fevereiro deste ano. Em 2 de agosto, o pacto deixou de vigorar - a Rússia, por sua vez, não se esforçou para tentar salvá-lo.

Desde metade dos anos 2000, a Rússia vinha levantando a possibilidade de se retirar do INF, alegando que o tratado a impedia, injustamente, de possuir armas que seus vizinhos, como a China, estão desenvolvendo e implementando. A insatisfação fez com que a Rússia desenvolvesse um sistema de mísseis chamado 9M729. Segundo os russos, seu alcance é de 480 quilômetros e, portanto, não violaria o INF, que abrange mísseis com alcance entre 500 e 5.000 quilômetros.

Os EUA e seus aliados da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), porém, afirmam que este sistema é a prova de que a Rússia está há tempos desobedecendo as regras do INF. Há seis anos eles vinham pedindo que a Rússia destruísse o novo míssil, mas o país do presidente Vladimir Putin continuou apegado à sua versão de que a arma nova não violava o pacto. Sem avanço nas negociações, o INF chegou ao fim antes de completar 32 anos.

Vinte dias depois de expirado o tratado, os Estados Unidos fizeram um teste de um míssil de alcance intermediário, disparado de um lançador de solo móvel. Já em dezembro, um teste semelhante, mas a partir de uma base fixa, demonstrando a intenção e o comprometimento dos EUA em seguir um caminho pós-INF, em uma clara mensagem para a Coreia do Norte, Rússia e especialmente para a China. Os EUA têm interesse de assinar um tratado de controles de armas multilateral que inclua a China no pacote, que atualmente investe muito mais em defesa do que a Rússia e que nos últimos anos expandiu agressivamente seus mísseis de alcance intermediário para consolidar sua influência no Pacífico.

Na Rússia, há suspeitas de que um acidente nuclear que deixou vários mortos em uma base militar, em agosto, seja evidência do desenvolvimento de um míssil de alcance global, anunciado por Putin em 2018.

Agora, só existe um pacto nuclear entre EUA e Rússia ainda em vigor: o Novo Tratado de Redução de Armas Estratégicas, conhecido como New START, assinado em 2011, limitando  o número de ogivas nucleares estratégicas implantadas pelos dois países. Esse tratado, porém, vai expirar em 2021. Ele pode ser prorrogado por mais cinco anos, mas a falta de entendimento entre os americanos e russos indica que seu colapso pode estar chegando.

Em uma reunião com o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, em 10 de dezembro, o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, manifestou interesse em renovar o New Start, mas disse que os EUA não fizeram nenhuma proposta sobre o assunto. Pompeo, por sua vez, expressou o desejo do governo americano de incluir a China nas negociações de armas com a Rússia. Pequim já disse que não participará das conversas, alegando que Moscou e Washington possuem arsenais nucleares significativamente maiores.

Sugestões de leitura:

América do Sul contra o establishment

  • Protestos em Bogotá em dia de greve nacional na Colômbia, 21 de novembro
  • Manifestantes em confronto com a polícia de choque em Quito, 9 de outubro
  • Militares desertores se posicionam em frente à base militar La Carlota, em Caracas, 30 de abril
  • Polícia de choque em torno do Congresso em Lima, Peru, após o anúncio da dissolução do Congresso pelo presidente Martín Vizcarra, 30 de setembro
  • Oposicionistas pedem impeachment do presidente do Paraguai, Mario Abdo Benitez
  • Manifestantes protestam contra o governo do presidente do Chile, Sebastián Piñera, em Santiago, 8 de novembro
  • Alberto Fernández, já com a faixa presidencial, recebe o bastão presidencial de seu antecessor, Mauricio Macri, durante posse na Argentina, 10 de dezembro
  • Confronto entre manifestantes contrários e favoráveis a ex-presidente Evo Morales em Santa Cruz, Bolívia, 28 de outubro
  • Luis Lacalle Pou é eleito presidente do Uruguai

Onda de manifestações no Chile. Protestos com mortes no Equador. Disputa entre poderes no Peru. Agravamento da crise econômica na Argentina com a volta dos peronistas ao poder. O ressurgimento das Farc na Colômbia. Um presidente que usa de artifícios jurídicos para se manter no cargo indefinidamente na Bolívia e é forçado a renunciar. Um acordo energético que já balançou as estruturas do governo paraguaio. E a mais grave crise migratória do mundo acontecendo aqui do lado, na Venezuela. Certamente, 2019 ficará marcado como um ano de grande instabilidade na América do Sul.

As crises na Bolívia, no Equador e na Colômbia, embora diferentes, tiveram traços comuns. A economia em grande parte da América do Sul desacelerou, as instituições democráticas continuam fracas, o público é muito menos tolerante à corrupção e a polarização está aumentando.

Na Bolívia, o líder esquerdista Evo Morales renunciou após quase 14 anos no poder e o país agora é comandado por um governo interino da direita conservadora. A renúncia foi anunciada após 20 dias de conflito que se seguiram à vitória de Evo para um quarto mandato, na eleição de 20 de outubro, que foi amplamente contestada e acabaria sendo anulada por irregularidades.

Antes, Evo havia sido pressionado pelas Forças Armadas a renunciar, e até mesmo a Central do Trabalho da Bolívia, sua aliada histórica, "convidou o presidente à reflexão".

A insatisfação de parte da população começou quando Evo desrespeitou o resultado de um referendo popular e fez manobras para poder se candidatar a um quarto mandato. A indignação só aumentou após a declaração da vitória de Evo em meio a suspeitas de manipulação do processo eleitoral. A oposição foi às ruas em protestos que se transformaram em confrontos violentos entre os lados políticos polarizados do país; mais de 30 pessoas morreram.

Evo está no momento na Argentina, como refugiado, e é alvo de uma ordem de prisão na Bolívia. O ex-presidente denuncia a sua saída como um "golpe". O país aguarda a convocação de novas eleições.

No Chile, o estopim da onda de protestos foi o aumento do preço da passagem de metrô na capital. As manifestações foram ganhando fôlego e chegaram a reunir 1 milhão de pessoas nas ruas de Santiago. O governo decretou toque de recolher e mandou as forças armadas para controlar os distúrbios, que deixaram mais de 20 mortos e dezenas de feridos. Os chilenos estão insatisfeitos com serviços públicos como o sistema de aposentadoria e o ensino público, e exigem a formulação de uma nova Constituição.

A atual carta magna é herança da ditadura militar do general Augusto Pinochet e considerada por muitos o fundamento do sistema econômico que privatizou pensões e grande parte dos serviços de saúde e educação.

O governo de Sebastián Piñera deu um grande passo para acalmar a agitação, aprovando uma lei que permite a realização de um plebiscito sobre a nova constituição. Porém, os manifestantes até o momento não deixaram as ruas.

O Equador também passou por seus momentos de agitação social, motivada por um corte drástico nos subsídios aos combustíveis. A medida atendia uma exigência do FMI de redução de gastos do governo em meio a difícil situação econômica.

Os protestos deixaram sete pessoas mortas e paralisaram o país. O governo de Lenín Moreno, enfrentando baixa popularidade, chegou a um acordo com líderes indígenas e movimentos sociais para colocar um fim aos protestos violentos. O principal ponto do acordo foi a revogação do decreto que acabava com os subsídios aos combustíveis que estavam em vigor havia mais de 40 anos.

No Peru, uma disputa entre os poderes Executivo e Legislativo levou a um período de vácuo de poder no país. Frustrado em suas tentativas de fazer reformas políticas e seguir com sua agenda anticorrupção em um país em que a classe política foi amplamente afetada pela Operação Lava Jato, o presidente Martin Vizcarra dissolveu o Congresso e pediu novas eleições. Os parlamentares retaliaram, colocando a vice Mercedes Aráoz como chefe do Executivo. O mandato dela, no entanto, durou 36 horas - ela acabou renunciando. A população acabou apoiando Vizcarra nessa disputa.

Mudança de direção nos vizinhos Argentina e Uruguai. Após uma grande derrota nas urnas, Mauricio Macri, de centro-direita, passou a faixa presidencial para o esquerdista Alberto Fernández em dezembro. Fernández terá um grande desafio para recuperar a economia do país ao mesmo tempo em que atende as demandas da sua base kirchnerista.

Em sentido oposto, no Uruguai, o governo de esquerda de Tabaré Vázquez deu lugar ao novo presidente Luis Lacalle Pou, de centro-direita, também em dezembro. Lacalle Pou deve servir como um elo entre o governo brasileiro de Jair Bolsonaro e o governo kirchnerista de Alberto Fernández na Argentina, avaliam especialistas. Por ser pouco polarizado, o Uruguai tem a capacidade diplomática necessária para manter boas relações com os dois vizinhos. Além disso, embora seja um país pequeno, o Uruguai é a única nação da região que não passou por turbulências políticas em 2019 - o que facilitaria o seu papel de mediador.

Outros eventos que marcaram 2019

Novo capítulo na guerra da Síria: Com o fim do chamado “califado” do Estado Islâmico na Síria e a morte do líder terrorista Abu Bakr al-Baghdadi, os Estados Unidos decidiram que era a hora de, realmente, diminuir o número de militares na Síria, levando adiante sua agenda “America First”.

Em uma decisão que diminuiu a influência americana no conflito e colocou em dúvida a confiabilidade dos Estados Unidos perante seus aliados, o governo de Donald Trump retirou as tropas americanas do nordeste da Síria, dando sinal verde para uma operação da Turquia contra os curdos - aliados dos EUA na guerra ao Estado Islâmico, mas considerados terroristas pelo governo de Ancara. Milhares de civis tiveram que fugir da área fronteiriça entre Turquia e Síria, onde Rússia e Turquia estabeleceram uma “zona de paz” para realocar refugiados sírios que estão em abrigos na Turquia - uma ação que está sendo criticada por ser uma forma de engenharia social. Setenta e cinco mil ainda estão deslocados, segundo as Nações Unidas. Este também foi o ano em que o ditador sírio Bashar al-Assad, com a ajuda dos atores cada vez mais influentes na região Rússia e Irã, firmou-se no poder.

Otan em crise: Os desenvolvimentos na guerra da Síria suscitaram um comentário controverso do presidente da França Emmanuel Macron sobre a Organização do Tratado do Atlântico Norte, que completou 70 anos em 2019. “A Otan sofreu morte cerebral”, disse ele, questionando o comprometimento dos países-membros da organização com a defesa mútua em caso de ataque. "O que o Artigo Cinco significará amanhã?", disse o líder francês em entrevista à revista The Economist no início de novembro. "Se o regime de Bashar al-Assad [na Síria] decidir retaliar contra a Turquia, nos comprometeremos com isso? É uma questão crucial”. Na declaração final da cúpula da Otan, realizada no início de dezembro, os membros se comprometeram com o artigo que diz que “um ataque contra um Aliado será considerado um ataque contra nós todos”.

Mas a Turquia realmente não está facilitando a vida dos demais países-membros. Neste ano o presidente Recep Tayyip Erdoğan levou adiante a compra do sistema de defesa antimísseis da Rússia, o S-400, apesar dos protestos dos Estados Unidos e das preocupações da Otan de que o sistema russo poderia roubar informações dos caças americanos que operam na Turquia. A relação entre Ancara e Washington está se deteriorando rapidamente e Erdogan chegou a ameaçar o fechamento de uma base aérea turca onde os Estados Unidos mantêm pelo menos 50 ogivas nucleares.

Por outro lado, os investimentos dos aliados da Otan em defesa está aumentando, ao passo que a pressão exercida pelo presidente Donald Trump para que os países cumpram a quota de 2% do PIB em gastos com defesa começa a fazer efeito.

Índia mais autoritária: Com um mandato renovado, o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, está mais à vontade para expressar seu caráter autoritário. A maior democracia do mundo está reprimindo protestos e bloqueando a internet. Por meio de um projeto de lei já aprovado, o governo está concedendo cidadania com base em religião, com o objetivo de excluir os muçulmanos. A medida era uma prioridade para Modi, que passou a implementar a agenda de seu partido, a qual enfatiza a primazia hindu na Índia.

As eleições em Israel: o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, e nenhum partido do parlamento israelense conseguiram formar governo após duas eleições em 2019, levando o país para uma terceira ida às urnas em menos de um ano. E a não ser que algo extraordinário aconteça, as chances de resultados diferentes são pequenas. O professor de História Filipe Figueiredo analisou, em uma recente coluna para a Gazeta do Povo, que Netanyahu é o fiel da balança. Sem ele, afirma Figueiredo, uma coalizão entre Azul e Branco e Likud, os partidos mais votados nas últimas eleições, poderia ser formada rapidamente. Mas existe um importante motivo pelo qual Netanyahu não abrirá mão do poder: ele foi indiciado formalmente em dois processos e o cargo dá a ele privilégios nos julgamentos.

Impeachment de Trump: os democratas finalmente conseguiram aprovar o impeachment de Trump, mas dificilmente o mandato do presidente acabará nas mãos do Senado, dominado pelos republicanos. O processo é amplamente criticado por ser politicamente motivado. Isso ficou evidente na votação do impeachment na Câmara dos Deputados: todos os republicanos votaram contra; e todos os democratas, com exceção de três, votaram a favor da saída de Trump. São duas acusações que pesam contra o presidente: abuso de poder e obstrução de justiça. O caso começou com um telefonema em que Trump pediu ao presidente da Ucrânia, Volodomir Zelensky, para que abrisse uma investigação contra o filho do seu principal rival político, Joe Biden. Enquanto os partidos se preparam para as eleições presidenciais de 2020, Trump parece ser o candidato que mais se beneficiou com essa história toda.

Coisas que achávamos que iam mudar, mas ainda não mudaram

Venezuela continua sob o regime de Nicolás Maduro. E ao que tudo indica, o ditador deve continuar no poder ao longo de 2020 - alguns analistas preveem que ele deve concluir o seu mandato em 2025. Houve um sopro de esperança com a chegada de Juan Guaidó à presidência da Assembleia Legislativa de Venezuela e sua posterior ascensão à presidência interina do país. Transformado em líder da oposição ao regime chavista, Guaidó obteve amplo apoio internacional e reconhecimento de mais de 50 países. Também viu surgir em sua volta um amplo apoio popular, com manifestações gigantescas no início do ano e uma tentativa de levante cívico-militar. Porém Maduro o venceu pelo cansaço. Com o controle total das forças armadas e da imprensa e apoiado pelo narcotráfico, o ditador se manteve no Palácio Miraflores. Guaidó continua sendo o político mais popular da Venezuela, mas sua imagem está desgastada por episódios de corrupção na oposição e pela desesperança da população, abatida pela pobreza.

A saída do Reino Unido da União Europeia, que deveria ter ocorrido em janeiro deste ano, ainda está pendente. Mas o capítulo final desta novela deve acontecer em breve. Com uma vitória histórica do partido Conservador nas eleições deste mês, o primeiro-ministro Boris Johnson agora tem maioria no Parlamento e prometeu o Brexit para janeiro de 2020, enterrando de vez a possibilidade de um novo referendo sobre a questão. Ele já conseguiu aprovar o seu plano de saída da UE, que havia sido recusado pela legislatura anterior. Porém, ainda há muito trabalho para os políticos britânicos e europeus, que deverão estabelecer que tipo de relacionamento o Reino Unido terá com a União Europeia.

Um acordo nuclear entre Coreia do Norte e Estados Unidos não aconteceu e se tornou ainda mais improvável. A amizade entre Trump e o ditador norte-coreano, Kim Jong-un, esfriou e ofensas como “homenzinho foguete” e “velho errático” voltaram a ser ditas. Mas a agressividade não se restringiu à retórica. Os Estados Unidos continuam a impor sanções à Coreia do Norte, e o regime de Kim voltou a testar mísseis e reativou uma base de lançamento de foguetes que havia desmantelado no ano passado. Sem avanço nas negociações bilaterais, Kim prometeu dar aos Estados Unidos um “presente de Natal inesperado”, que, por enquanto, ainda não chegou. Especialistas esperam pelo pior: a volta dos testes dos mísseis balísticos intercontinentais, conhecidos pela sigla ICBM. Segundo uma nova estimativa publicada em junho deste ano, o teste nuclear feito em setembro de 2017 teve uma potência equivalente a 250 quilotoneladas de TNT - um poder explosivo 16 vezes maior do que o da bomba que arrasou com Hiroshima na Segunda Guerra Mundial.

A jornalista Helen Mendes contribuiu para esta reportagem.

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