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Luz e sua amiga foram vítimas de tráfico sexual em Trindade. As mulheres agora estão em uma casa segura com a ajuda de uma organização sem fins lucrativos | Jahi Chikwendiu/The Washington Post
Luz e sua amiga foram vítimas de tráfico sexual em Trindade. As mulheres agora estão em uma casa segura com a ajuda de uma organização sem fins lucrativos| Foto: Jahi Chikwendiu/The Washington Post

Até um tempo atrás os venezuelanos lotavam os corredores das lojas em países estrangeiros, pronunciando a famosa frase "dame dos" (“levarei dois”). Mas os cidadãos desta que já foi a nação mais rica da América do Sul ( de acordo com o PIB per capita) agora estão enfrentando uma reviravolta devastadora, emergindo como a nova subclasse da região. 

Enquanto o país rico em petróleo se curva sob o peso de um fracassado experimento socialista, estima-se que diariamente 5.000 venezuelanos estão deixando sua terra natal, no que já é considerada a maior saída de migrantes da América Latina em décadas. 

Profissionais venezuelanos estão abandonando hospitais e universidades para buscar empregos como vendedores ambulantes no Peru e zeladores no Equador. Em Trindade e Tobago - uma nação caribenha produtora de petróleo na costa norte da Venezuela - advogadas venezuelanas trabalham como diaristas e prostitutas. Uma ex-burocrata rica que passou o verão comendo tradicionais sanduíches de tubarão e bebendo uísque na Baía de Maracas, em Trindade, agora trabalha como empregada doméstica. 

Nossas convicções: A dignidade da pessoa humana

A agência de refugiados da ONU pediu aos países-membros que ofereçam proteção aos venezuelanos, assim como fizeram com milhões de sírios que fogem da guerra civil. Mas em uma parte do mundo com grandes lacunas na proteção de refugiados, os venezuelanos que fogem da fome costumam trocar uma situação angustiante por outra. Trindade, por exemplo, não tem leis de asilo para refugiados, o que deixa milhares de venezuelanos em risco de detenção, deportação, abuso policial ou coisas piores. 

Às vezes muito piores. 

Luz, uma mãe solteira venezuelana de 21 anos, chegou a Trindade de barco em maio com duas amigas, confiando em um homem com uma suave cadência caribenha que alegou pertencer a um grupo cristão oferecendo ajuda e reassentamento. Em vez disso, segundo ela conta, as três mulheres foram levadas para uma casa e espancadas antes de serem abusadas pelo que parecia ser um ringue de pornografia. Cada mulher foi filmada enquanto era estuprada por uma série de homens. 

Luz disse que confiava em um homem que oferecia ajuda para se instalar em Trindade. Em vez disso, ela e duas amigas foram mantidos em cativeiro e estupradasJahi Chikwendiu/The Washington Post

"Estamos desamparadas", disse Luz. "Tudo por causa da crise". Ela e as outras duas mulheres escaparam e agora estão aos cuidados de uma instituição de caridade católica. O Washington Post geralmente não identifica vítimas de abuso sexual. 

Carolina Jimenez, uma alta autoridade da Anistia Internacional, disse: "A situação sem precedentes da Venezuela transformou uma crise doméstica de direitos humanos em uma crise regional de direitos humanos". 

Nossas convicções: O alcance da noção de dignidade da pessoa humana

"Os países da região não estão preparados para receber tantos migrantes e não têm os sistemas de asilo necessários para impedir a exploração de empregos e o tráfico de pessoas", disse ela. "Essas pessoas devem ser protegidas, mas em vez disso estão sendo exploradas". 

Experimento fracassado 

Dos anos 1950 até o início dos anos 80, a Venezuela era um dínamo econômico - uma nação com as maiores reservas de petróleo do mundo e um farol para imigrantes de lugares tão distantes quanto a Itália e a Espanha. Então, a desvalorização do petróleo e crises cambiais mergulharam o país em turbulência. 

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Hugo Chávez, que se tornou presidente em 1999, adotou uma forma de socialismo que resultou no colapso de muitos negócios e nacionalização de tantos outros. Um expurgo na indústria petrolífera estatal - centro de oposição ao seu governo - fez com que milhares de trabalhadores perdessem seus empregos, sendo frequentemente substituídos por apoiadores do governo com pouca ou nenhuma experiência técnica. 

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A derrocada da Venezuela se transformou em queda livre sob o ditador Nicolás Maduro - ex-motorista de ônibus e líder sindical que herdou o poder após a morte de Chávez em 2013. Críticos dizem que a má administração e a corrupção de seu governo e a tentativa cruel de Maduro de se consolidar no poder - mesmo quando os preços do petróleo caíram - quebraram a nação. 

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Fuga em massa 

Os venezuelanos ricos estão fugindo de sua terra natal há anos, indo morar em casas de luxo em Miami e Madri. Mas devido ao agravamento da crise econômica, os que estão deixando o país agora são indigentes, incluindo membros de uma classe média incapacitada. A ONU projeta que dois milhões de venezuelanos deixarão o país neste ano - além de um êxodo de 1,8 milhão nos últimos dois anos. 

Aqueles com meios e vistos ainda estão se aventurando nos Estados Unidos, onde os venezuelanos agora formam o maior grupo de requerentes de asilo. Em número muito maior, venezuelanos fogem para países da América Latina e do Caribe. 

Mas em uma região onde muitos já vivem à margem da sociedade, os governos estão dificultando a permanência dos refugiados venezuelanos. 

No ano passado, o Panamá impôs novas exigências de visto aos venezuelanos. Este ano, a Colômbia encerrou o programa que permitiu a circulação de dezenas de milhares de venezuelanos em sua área de fronteira. O Chile acolheu dezenas de milhares de venezuelanos que apareceram em sua fronteira em 2017, mas em abril deste ano criou novos obstáculos, exigindo que eles tenham um passaporte - algo que a grande maioria não possui - e solicitem asilo através dos consulados chilenos na Venezuela e não na fronteira. 

As regulamentações "deixam os venezuelanos sem outra opção a não ser trabalhar por centavos no setor informal, ao mesmo tempo em que estão extremamente vulneráveis à exploração e a um alto nível de abuso", disse Geoff Ramsey, especialista em assuntos relacionados à Venezuela que trabalha na instituição de ensino e pesquisa Washington Office on Latin America.

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Dezenas de milhares de venezuelanos que estão fugindo para o Caribe - onde muitas nações insulares não têm leis sobre asilo - enfrentam desafios específicos. Porta-voz da Venex, um grupo de ajuda humanitária na ilha de Curaçao, Mary Anne Goiri conta que os migrantes venezuelanos estão sendo brutalmente explorados. Em um caso relatado por ela, o dono de um restaurante mantinha o dinheiro que um de seus empregados venezuelanos sem documentação estava poupando. Quando a trabalhadora pediu seu dinheiro de volta, o proprietário a espancou e chamou a polícia para detê-la. 

Fransielvis Perez, 23 anos, trabalha como garçonete até tarde da noite em um pub em Port-of-Spain, TrindadeJahi ChikwendiuThe Washington Post

Cerca de 45 mil venezuelanos, segundo grupos de ajuda, cruzaram para Trindade e Tobago nos últimos anos. Cerca de 160 por semana chegam ao país que tem 1,4 milhão de habitantes. 

A migração irregular é criminalizada em Trindade e Tobago. Os venezuelanos que chegam em barcos de contrabandistas enfrentam possíveis detenções e multas. Em abril, o país provocou condenação da comunidade internacional após a deportação de 82 venezuelanos. 

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"Não podemos e não permitiremos que os porta-vozes da ONU nos convertam em um campo de refugiados", disse o primeiro-ministro Keith Rowley após o incidente. 

Em Trindade, de acordo com diplomatas e agências internacionais, há também evidências de uma tendência preocupante: venezuelanos desesperados, particularmente mulheres, tornaram-se mercadorias a serem compradas e vendidas. 

Tráfico humano 

Em Trindade, a Organização Internacional para as Migrações, órgão das Nações Unidas, recebeu 23 casos suspeitos de venezuelanos traficados nos últimos três meses - no ano passado nenhum caso foi notificado, segundo Jewel Ali, diretor local da organização. 

Entre as vítimas, mulheres como Luz - que disse que perdeu um de seus três filhos em abril, depois que o hospital de sua cidade (na Venezuela) ficou sem remédios para tratar a infecção bacteriana de sua filha. Quando ela foi abordada para vir a Trindade, a oferta parecia boa demais para ser verdade. 

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"Mas eu disse a mim mesmo, vou mesmo assim. Não vou perder a chance de meus filhos ficarem melhores só porque tive algumas dúvidas", disse ela. 

A provação - cinco semanas em cativeiro e repetidas vezes filmada sendo estuprada - a "danificou", contou. Em determinado momento, Luz disse que ela e uma amiga foram amarradas e estupradas lado a lado. 

"Estávamos olhando uma para a outra", disse Luz, aos prantos. "Nós chorávamos. E eu dizia a ela: 'Irmã, seja forte, você tem uma filha'. Eu continuava repetindo isso".

O caso foi documentado pela agência de refugiados da ONU como um potencial ato de tráfico. Alana Wheeler, chefe da unidade antitráfico de Trindade, disse que as autoridades estão investigando o caso de Luz e não podem comentar sobre uma investigação em andamento. 

Maus tratos nas prisões 

Em uma entrevista por telefone, falando de um centro de detenção para imigrantes na cidade de Arima, em Trindade, um pai solteiro de 34 anos disse ter desembarcado no país em novembro depois de vender suas posses para pagar a passagem. Ele foi preso em junho. Embora tenha solicitado os documentos para o asilo - que lhe dão o direito legal de permanecer no país - um policial exigiu que ele pagasse US$ 700. 

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"Eu disse a ele que não tinha essa quantia, então eles pegaram meus pertences, o dinheiro que eu tinha e me prenderam", contou o homem, sob condição de anonimato por medo de represálias das autoridades de Trindade. 

Dezenas de venezuelanos estão detidos nas instalações, de acordo com seu relato. Ele disse que os guardas servem a comida jogando-a no chão e que já testemunhou vários presos venezuelanos serem espancados. Um migrante com câncer avançado, segundo ele, não está recebendo atenção médica. Nem sabão, xampu ou roupas limpas estão sendo fornecidos. 

O Ministério da Segurança Nacional de Trindade não respondeu a repetidos pedidos de comentários. 

"Eles nos dizem: 'Volte para o seu país, ou vamos tornar sua vida impossível’", disse o venezuelano. 

Grupos humanitários documentaram casos semelhantes. "Eles estão sendo maltratados na prisão, especialmente as mulheres", disse o representante de um grupo que ajuda imigrantes venezuelanos, falando sob condição de anonimato por medo de retaliação do governo de Trindade e Tobago. 

Deportação

Para muitos venezuelanos, a vida em Trindade é uma reviravolta dissonante. Jhohanna Mota, ex-secretária de 42 anos que morava no litoral da Venezuela, estudou inglês em Trindade nos anos 90. Ela passava os domingos na praia e à noite nas discotecas. Em 2016 - com a inflação aumentando e a escassez de alimentos na Venezuela - ela optou por abandonar sua casa de três quartos para voltar a Trindade com seus dois filhos. 

Na Venezuela, Jhohanna Mota, 42, e seus filhos, Miguel, 14, e Carlos, 13, moravam em uma casa grande. Agora todos compartilham um único quarto alugado em San Juan, TrindadeJahi ChikwendiuThe Washington Post

Mas a mudança não ocorreu como ela havia planejado. Jhohanna disse que trabalhou ilegalmente em uma padaria por um ano fazendo turnos de 8 horas e meia por US$ 20 por dia. Depois, foi demitida. "Meu chefe não queria empregar um 'ilegal'”. Ela tentou legalizar sua estadia, mas disse que foi enganada e pagou US$ 800 por um visto que, mais tarde descobriu, era falso. 

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Jhohanna agora enfrenta uma processo e poderá ser deportada. Enquanto isso, ela está sustentando seus filhos trabalhando como faxineira - e corre o risco de ser presa por trabalhar sem ter permissão de emprego no país. 

"Toda vez que saio de casa, sei que posso acabar na cadeia", disse ela, que agora vive com seus dois filhos em um quarto alugado. "Eu penso: 'O que acontecerá com meus filhos? Por que estou fazendo isso? Como chegamos aqui?'".

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