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Homens do distrito de Bati Kot de Nangarhar, Afeganistão se reúnem para as últimas homenagens a quatro membros de uma família que foram mortos por uma equipe afegã apoiada pela CIA |  JIM HUYLEBROEK / NYT
Homens do distrito de Bati Kot de Nangarhar, Afeganistão se reúnem para as últimas homenagens a quatro membros de uma família que foram mortos por uma equipe afegã apoiada pela CIA| Foto:  JIM HUYLEBROEK / NYT

Razo Khan acordou de repente para deparar com a visão de vários fuzis apontados para seu rosto e ouvir ordens de levantar da cama e se pôr de pé.

Em questão de minutos, os invasores armados já tinham separado os homens das mulheres e crianças. Então começaram os tiros. 

Ao ser levado para interrogatório, Khan viu sua casa sumir em meio às chamas. Lá dentro, estavam os corpos de dois de seus irmãos e o da cunhada, Khanzari, alvejada três vezes na cabeça. Os aldeões que correram para tentar ajudar encontraram o corpo carbonizado da filha dela, Marina, de três anos, em um dos cantos do quarto em ruínas. 

Os homens que entraram na residência da família, naquela noite de março, no distrito de Nader Shah Kot, eram membros de uma força de ataque afegã treinada e supervisionada pela CIA em uma missão paralela à do Exército norte-americano, só que com normas de engajamento bem mais flexíveis. 

Ostensivamente, o grupo estava procurando militantes, mas, segundo os investigadores, nem Khan nem sua família tinham feito nada para levantar qualquer suspeita da força-tarefa. 

"Óbvio que o que aconteceu foi uma atrocidade. Todos com quem falamos juraram pela inocência das vítimas", revela Jan-mir Zazai, membro do Conselho Provincial de Khost e parte do time governamental responsável pela apuração do caso. 

Num momento em que policiais e militares convencionais afegãos estão sendo assassinados em números recordes por todo o país, essas forças regionais supervisionadas pela CIA conseguem resistir contra os grupos militantes mais violentos, incluindo a rede Haqqani, derivada do Talibã, e também legalistas do Estado Islâmico. 

Acontece que elas também operam ignorando as regras do campo de batalha criadas para proteger os civis, dando batidas noturnas, torturando e matando praticamente na impunidade, em uma campanha secreta que, segundo várias autoridades locais e norte-americanas, está minando os esforços dos EUA de empoderar as instituições afegãs. 

E, com apenas um número relativamente pequeno de soldados ainda por lá – número esse que deve encolher mais ainda, de acordo com as ordens de Donald Trump –, as forças de ataque são, cada vez mais, a única forma de convivência que a população rural tem com a presença norte-americana. 

Elas estão oficialmente sob o controle da agência de inteligência afegã desde 2012, mas várias autoridades locais e internacionais afirmam que os grupos mais eficientes e mais violentos, nas províncias de Khost e Nangarhar, ainda são patrocinados principalmente pela CIA. 

Essas forças de combate, também conhecidas como equipes de busca do contraterrorismo, são recrutadas, treinadas e equipadas por agentes da CIA ou terceiros que trabalham com elas em suas bases, como descrevem diversos membros da segurança nacional, tanto da reserva como da ativa, e seus integrantes recebem um salário três vezes maior que o de um soldado comum. 

A supervisão nacional dessas células é apenas nominal, em uma relação na qual a agência de inteligência entra só com representantes para "coordenação"; a pré-aprovação para as batidas, no entanto, é quase sempre de última hora, ou adiada até depois de sua realização. 

Há meses o "The New York Times" vem investigando o prejuízo humano causado por essas forças nas comunidades; seus jornalistas analisam as reclamações constantes de ataques e mortes de civis, tendo ido a meia dúzia de locais das invasões, muitas vezes menos de 24 horas após as ocorrências. 

A apuração encontrou detalhes de uma missão da CIA de sucesso tático, mas que custou a alienação da população afegã. Um dos oficiais mais antigos da segurança nacional acusou explicitamente os grupos de cometer crimes de guerra. 

"O dilema é o seguinte: a CIA precisa atuar nas sombras, mas, quando os EUA também assumem a missão de reconstruir o país, aí as contradições começam a aparecer: operações secretas e a total falta de transparência concomitantemente com a instauração de instituições, o Estado de direito e a imputabilidade. É uma equação de solução difícil e nossa posição como nação acaba desgastada", explica Karl Eikenberry, antigo comandante das forças norte-americanas no Afeganistão que mais tarde serviu como embaixador dos EUA em Cabul. 

Os relatórios da ONU revelam a preocupação com as mortes de civis e "relatos consistentes e confiáveis de destruição intencional de propriedades civis, detenções ilegais e outros abusos" cometidos pelas unidades. Segundo esses documentos, especialmente as equipes em Khost operam à margem da estrutura governamental afegã, "com total ausência de transparência e impunidade absoluta". 

No vilarejo de Nader Shah Kot, Zazai, o oficial provincial que ajudou a investigar a invasão, disse que a impunidade desses esquadrões está alienando a população e aumentando o apoio ao Talibã. 

"Se tivesse havido prisões, se tivesse havido justiça, a coisa não continuaria assim... mas a impunidade é total", lamenta. 

Em Washington, membros do Departamento de Defesa confirmam que as operações da CIA são realizadas sem a participação nem o conhecimento dos generais que atuam na zona de guerra. O nível de cooperação entre as instituições vem caindo conforme a agência de inteligência afegã e suas forças vão amadurecendo. Entretanto, com a confirmação de que o Exército dos EUA vai bater em retirada, sem dúvida o papel da CIA deve ganhar mais importância. 

O fato é que sua porta-voz não comenta, nem os afegãos diretamente envolvidos com as forças, ainda que algumas autoridades nacionais de segurança em Cabul tenham tentado minimizar a autonomia das equipes e a natureza de seus abusos. 

Essas unidades apoiadas pela CIA surgiram logo depois que os EUA invadiram o Afeganistão, em 2001, e se aliaram às milícias para ajudar a derrubar o regime talibã. 

Quando seus integrantes e os da Al-Qaeda começaram a fugir, geralmente através da fronteira com o Paquistão, não havia uma força nacional organizada para criar as linhas de defesa tão necessárias. 

Na província oriental de Khost, sob grande influência da rede Haqqani, que tem fortes laços com a Al-Qaeda, a CIA começou a organizar milícias locais e a transformá-las em uma força com condições de atacar os insurgentes que tentassem entrar ou sair da região. 

"A princípio, as unidades foram criadas nas áreas fronteiriças para impedir a movimentação dos rebeldes da Al-Qaeda", explica Ghaffar Khan, ex-recruta da CIA que se tornou um dos primeiros comandantes das forças alternativas. 

E elas se mostraram tão eficientes que, mesmo depois que o Talibã começou a atacar o governo e a presença norte-americana, passaram a se expandir para outras partes do país. 

A unidade de Khost é a maior: segundo as autoridades, pode contar com algo entre três e dez mil membros que patrulham as áreas fronteiriças e contam com uma rede própria de informantes. 

Para Khan, o comandante, as equipes continuam necessárias, pois, do contrário, a defesa contra os homens-bomba da Haqqani desmoronaria, facilitando a chegada dos agressores a Cabul; por outro lado, ele sabe que os abusos estão causando estragos imensos. 

Autoridades afegãs confirmam que a CIA ainda é quem comanda a maioria dos grupos de ataque em Khost e Nangarhar, efetivamente colocando-os acima da lei. Agentes e contratados terceirizados trabalham lado a lado com eles, desenvolvendo seus alvos e ajudando a guiar as operações a partir de seu quartel-general; a presença norte-americana também é maciça nas bases cujos detentos denunciam tortura e abusos. 

Em um período de pouco mais de um ano, agências de ajuda humanitária registraram pelo menos quinze denúncias desse tipo por uma força-tarefa em Nangarhar, que conta com aproximadamente mil integrantes e é conhecida como "02". 

Sabrina Hamidi, diretora da Comissão Afegã de Direitos Humanos, afirma que, durante seus treze anos no órgão, nunca lidou com um único caso de acesso às forças regionais para exame das queixas. 

Em praticamente todos os casos averiguados pelo "The New York Times”, as famílias das vítimas reclamam que não sabem para quem se voltar à procura de justiça ou mesmo de uma explicação sobre os motivos das batidas. E quase todos os membros do governo nessas áreas se mostraram incapazes de influenciar, alterar ou impedir as operações dessas equipes. 

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