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Demonstrators clash with riot police on the fifth straight day of street violence which erupted over a now suspended hike in metro ticket prices, in Santiago, on October 22, 2019. – President Sebastian Pinera held a meeting with leaders of some of Chile’s opposition parties on Tuesday, aiming to find a way to end street violence that has claimed 15 lives amid sustained protests. (Photo by CLAUDIO REYES / AFP)
Protestos em Santiago, Chile| Foto: CLAUDIO REYES / AFP

Enquanto eu assistia vídeos recentes de jovens chilenos participando de protestos desencadeados por um aumento nas tarifas do metrô, causando incêndios e gritando palavras de ordem contra elites ricas, meu primeiro pensamento foi sobre como eles têm sorte.

Mais de um terço dos 19 milhões de cidadãos do próspero país da América do Sul tem menos de 30 anos, o que significa que eles nasceram e foram criados em um período de governo civil benigno. Eles não têm memória da brutal ditadura militar que governou de 1973 a 1990 com fervor messiânico e repressão com punho de ferro, depois de derrubar um presidente socialista eleito.

Eles nunca conheceram o medo real, do tipo que ocorre quando um homem é arrastado aos gritos para um veículo sem identificação, enquanto os transeuntes observam em silêncio horrorizados e envergonhados. Eles nunca experimentaram o poder implacável de uma instituição militar profissional determinada a reprimir toda dissidência, empregando formas humilhantes de tortura e deixando mais de 3.000 detidos esquerdistas desaparecidos para sempre.

Eles nunca experimentaram a onda de espanto e alegria emotiva que recebeu o primeiro passo crucial do país em direção à libertação, em uma noite fria de outubro de 1988, depois de um plebiscito nacional no qual os eleitores rejeitaram estender o governo do general Augusto Pinochet. Após várias horas tensas, repletas de rumores de um segundo golpe, a junta militar disse que aceitaria os resultados.

Eu estava lá naquela noite inesquecível, rabiscando anotações em meio a multidões exultantes que foram em peso para as ruas da capital chilena, Santiago, cantando, dançando e abraçando policiais desconcertados. À medida que o turbilhão de emoções fluía ao meu redor, senti que o Chile - um país descrito como tão civilizado que qualquer problema poderia ser resolvido com um copo de bom cabernet - havia recuperado sua alma.

Também estive lá repetidas vezes durante os últimos anos do regime militar, primeiro cobrindo a história para o Boston Globe e depois trabalhando em um livro. A repressão política tinha diminuído, em parte pela pressão internacional, mas medidas duras de austeridade econômica, impostas por decreto, custaram a milhares de funcionários públicos seus empregos, pensões e dignidade. Empresários habilidosos se viram obrigados a vender brinquedos nas calçadas.

Um homem, um carpinteiro sem emprego, chorou ao me dizer que tinha sido forçado a vender suas preciosas ferramentas e a aliança de casamento de sua esposa.

Essas dificuldades, juntamente com o crescente movimento estudantil, geraram uma onda de protestos na capital que foram repetidamente enfrentados com gás lacrimogêneo e canhões de água. Anos depois, lembro-me vividamente da sensação ardente em meu nariz enquanto tentava fugir das nuvens de gás nocivo, com lágrimas escorrendo pelo meu rosto.

Até o final, Pinochet ainda desfrutava de firme apoio entre as classes altas que um dia acolheram o golpe como um antídoto necessário à ameaça de uma revolta de esquerda inspirada em Cuba, e a opção "sim" para estender seu governo ganhou um número considerável de votos. Mas, após 17 anos, a maioria dos chilenos já se cansara de odiar uns aos outros e de saudar os generais. Em 5 de outubro de 1988, a opção "não" prevaleceu, por 54% a 43%.

Em uma reunião post mortem em um think tank conservador de Santiago, seu diretor, Arturo Fontaine, disse a sua plateia desconsolada: "Não podemos continuar lutando contra fantasmas que não estão mais na mente das pessoas". O plebiscito, disse ele, tinha sido uma "grande comunhão secular".

Em seguida, ele acrescentou uma citação de Aristóteles: "Para que o Estado persista, ele precisa mais do que comércio e segurança. Precisa da fraternidade cívica".

Em 1990, um presidente civil centrista havia sido eleito, ex-prisioneiros políticos estavam de volta à vida pública e Pinochet havia aceito uma sinecura respeitável como "senador vitalício". Ele permaneceu um pária entre os grupos internacionais de direitos humanos, mas em outros círculos recebeu elogios por transformar uma economia inchada e centrada no Estado em uma economia eficiente e pró-negócios - algo que um líder eleito não poderia facilmente impor. Ele morreu em 2006, aos 91 anos.

O Chile logo estava sendo apontado como um modelo para o desenvolvimento da América Latina, embora esse sucesso tenha acontecido com um amargo custo humano. Nas décadas desde então, essa reputação se consolidou e o dinamismo econômico do Chile continuou por vários ciclos eleitorais que viram líderes de esquerda e direita ganharem alternados mandatos de quatro anos no poder.

O atual presidente, Sebastián Piñera, é um economista e empresário conservador, formado em Harvard, que conquistou o cargo duas vezes e fez uma fortuna ao introduzir o primeiro cartão de crédito no Chile. Em 2011, durante seu primeiro mandato, ele enfrentou enormes protestos de estudantes que exigiam reformas na educação, enquanto o crescimento do Chile desacelerava e a grave desigualdade econômica persistia.

Neste mês, uma nova e mais violenta série de manifestações de rua eclodiu, iniciada por jovens que protestavam contra um aumento de 30 pesos nas tarifas de metrô da capital. Em 19 de outubro, Piñera suspendeu esse aumento, mas os protestos se intensificaram, com prédios incendiados e saques a comércios. A polícia de choque lutou contra manifestantes e pessoas morreram no caos.

Surpreendido pela crise crescente, o presidente declarou estado de emergência em Santiago e enviou um general do exército para restaurar a ordem. Um toque de recolher foi declarado e, pela primeira vez em quase três décadas, forças de segurança patrulhavam as ruas. Até o final da semana, 19 pessoas tinham morrido na crescente turbulência.

O presidente, atento ao cenário perigoso, procurou acalmar os manifestantes, dizendo: "Ouvi com humildade e muito atentamente a voz de meus compatriotas".

Sob Pinochet, não haveria tal apaziguamento, e os protestos teriam sido reprimidos sem restrições. Os manifestantes que saíram às ruas em nome da justiça econômica tinham a história a seu lado, controlando qualquer impulso autoritário de repressão com força.

No entanto, a atual agitação é por muito mais do que um aumento de centavos na passagem do metrô, e começou a crescer e se diversificar.

Na sexta-feira da semana passada, centenas de milhares de pessoas encheram pacificamente uma grande praça em Santiago, exigindo auxílio, pois os custos básicos continuaram subindo para os pobres em um dos países mais ricos da América Latina. Em outros lugares, motoristas de caminhão realizaram greves e multidões tentaram entrar no edifício do parlamento nacional, onde a polícia respondeu com gás lacrimogêneo.

Piñera, que poderia ser forçado a renunciar se a crise continuar aumentando, tuitou de forma tranquilizadora no final da sexta-feira: "Todos nós ouvimos essa mensagem. Todos mudamos". Seu governo anunciou rapidamente aumentos nos salários mínimos e pensões públicas e congelou um aumento planejado nas tarifas de energia elétrica.

Mas talvez sejam necessários mais do que paliativos de curto prazo para satisfazer a crescente indignação da população no Chile, uma democracia que restaurou a liberdade política, mas falhou em atender às crescentes expectativas de justiça econômica. A geração mais jovem de manifestantes nunca conheceu o poder intimidador da ditadura militar - e muitos daqueles com idade suficiente para se lembrar agora se sentem encorajados a juntar-se a eles.

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