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Ele não deu nenhum golpe de Estado. Tampouco pensa em revolução. E apesar de ostentar um ideário esquerdista, Evo Morales, o ex-líder sindical dos cocaleiros bolivianos que chegou ao poder através de uma eleição democrática, quer um lugar na história de seu país com uma realização na área econômica: ele deseja ser conhecido como o presidente que instituiu um mercado para a "coca legal".

A "coca legal" é toda a produção de folhas de coca que não são usadas para a fabricação de cocaína - o entorpecente. Dessas folhas se faz chás e outros produtos alimentícios e farmacêuticos. Tradicionalmente, as folhas verdes também são mascadas, até como forma de aliviar os efeitos da altitude, em cidades como La Paz, a 3.600 metros do nível do mar.

No poder há quase um ano e meio, Morales já criou um departamento de industrialização da coca, vinculado ao Ministério da Agricultura, que será responsável pelo processamento futuro de 4.000 toneladas de coca somente em chá, segundo dados do governo. Outra atitude para fomentar a produção da planta foi o recente anúncio do aumento dá área legal para cultivo da coca - dos atuais 12 mil hectares para 20 mil hectares.

Sob o raciocínio de que coca não é cocaína, o governo boliviano diz que incentiva a "coca legal", mas que reprime com todas as forças a produção que se destina à fabricação de cocaína. Diz, inclusive, estar aumentando o combate ao narcotráfico. Cita um aumento de 14% na apreensão da droga em 2006, em relação ao ano anterior.

Os Estados Unidos, que há anos injetam milhões de dólares para reprimir as plantações, desconfiam -e reclamam dos planos de Evo Morales. Dizem que o país continua sendo o terceiro maior produtor mundial de cocaína. E que apenas cinco mil hectares seriam suficientes para suprir o mercado da coca legal na Bolívia -muito menos do que os 20 mil hectares autorizados pelo governo federal. Por esse raciocínio dos norte-americanos, parte do cultivo autorizado estaria sendo desviado para a produção da droga.

"A estimulação que se obtém com a folha de coca é comparável à de uma forte xíraca de café. Não há qualquer efeito narcótico", afirma Kathryn Ledebur, norte-americana que coordena, em La Paz, a Rede Andina de Informações, uma ONG (Organização Não-Governamental) comprometida com a proteção aos produtores de coca da Bolívia e declaradamente contra as políticas anti-drogas norte-americanas que visam a erradicação forçada da folha.

"É como se desejassem proibir o plantio de cana, ou do milho, por causa dos malefícios da cachaça", disse. "A plantação de coca é legal e é uma questão de subsistência, e sobrevivência, para milhares da famílias miserváveis bolivianas", completou.

Mercado da coca

Após ouvir os argumentos da ongueira norte-americana e ver dezenas de pessoas mascando a folha de coca pelas ruas de La Paz, a reportagem do portal de notícias G1 foi conhecer um dos principais centros de comércio da folha de coca na cidade. Ele fica na zona norte, no bairro de Vila Fátima, um dos lugares mais pobres da capital administrativa boliviana.

Quase toda a produção de coca na Bolívia se dá nos territórios próximos a La Paz, em Cochabamba, dentro da região de Chapares e em Yungas. É de lá que a produção legal, devidamente autorizada pelo governo, se distribui pelo país. O acesso ao mercado não é tão simples.

A Vila Fatima fica na periferia, numa área ainda mais elevada do que o centro de La Paz. Após 25 minutos de carro é que se chega à região pobre e íngreme, facilmente comparável a uma das inúmeras favelas do Rio de Janeiro. O visual é de casas pobres construídas umas sobre as outras, ausência quase total de árvores e de qualquer tipo de pintura que cubra os tijolos das construções.

O mercado não tem indicação externa do seu funcionamento. Não tem nem uma fachada valorizada, e apenas uma de suas paredes externas está pintada de azul. Dentro dele também não parece haver muita organização, por mais que exista um órgão do governo destinado apenas aos cuidados com o comércio e a industrialização das folhas de coca. Aqui, não é qualquer pessoa que pode negociar e voltar para casa com um caminhão de coca. Por conta dos problemas que o país tem com o narcotráfico, há um controle rígido na venda, segundo o presidente do mercado, Eulogio Condore.

Quando as folhas chegam ao mercado são distribuídas para os revendedores, dispostos em enormes balcões. Andando por entre os galpões, há famílias de cocaleros, muito pobres, que se amontoam por entre as enormes sacolas, esperando para negociar sua produção caseira. O clima é desolador, sujo, e o ar está completamente tomado pelo forte cheiro amargo das folhas de coca.

Quando saem do mercado, as folhas são mascadas ou consumidas principalmente em forma de chá, que eles chamam de mate. Outro uso comum é na produção dedoces, licores e até mesmo vinhos. Chiclete boliviano

"Todo boliviano masca coca", disse ao G1 o taxista Mauro Quispe, resumindo a importância da folha na cultura local. De gosto amargo, as folhas são mastigadas sem o talo e têm efeito estimulante semelhante ao do café, mas mais forte. Ela tambémajuda na adaptação à altitude, facilitando a oxigenação do sangue, quando o ar rarefeito não parece oferecer oxigênio suficiente.

É na rua Sebastian Segurela, ainda na zona norte de La Paz, que se encontram os principais locais para a compra de grandes sacolas de folhas de coca para consumo individual. Pacotes de meio quilo custam a partir de R$ 4, mas podem ir até os R$ 10, dependendo do tamanho e da qualidade das folhas. Considerando que estamos falando de meio quilo de folhas, qualquer pequena compra representa um grande volume.

O taxista Quispe relata o uso da folha de coca no cotidiano do trabalhador. "Muitos mascam a folha para conseguir trabalhar 24 horas direto, sem descansar e sem ter sono." Mesmo quando o objetivo não é virar o dia e a noite no batente, a folha ajuda a manter a vitalidade ao longo do dia, diz. Há regiões em que as crianças começam aos sete anos de idade a mascar coca -muitas vezes para ajudar a matar a fome.

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