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explosão beirute
Destruição perto do porto na capital libanesa Beirute, em 4 de agosto de 2020| Foto: STR / AFP

O Líbano não precisava de uma das explosões acidentais mais terríveis do mundo para lembrar às pessoas que é um Estado à beira do colapso. Ocorre que o poder destrutivo de 2,7 mil toneladas métricas de nitrato de amônio inflamado no porto de Beirute, matando cerca de 150 pessoas e ferindo mais de 5 mil, ampliou a situação precária em que o país se encontra.

O Líbano pode não atender à definição padrão de um Estado falido porque mantém as estruturas de um governo central. Mas a Administração corrompida por um sistema de clientelismo baseado em grupos religiosos do país há muito não consegue prestar serviços básicos à população de 6,8 milhões de habitantes.

A escassez de energia é um ponto da vida diária dos libaneses, a inflação é galopante, a libra libanesa entrou em colapso, o desemprego aumentou, o crime disparou e a escassez de alimentos é endêmica. Se esse não é um Estado falido, então é um Estado em falência, e que está falindo há muito tempo.

Em essência, os problemas do Líbano são estruturais e, portanto, incapazes de soluções simples ou mesmo racionais. Os problemas remontam à Constituição de 1926, na época da administração francesa, que buscava dividir o poder entre cristãos e muçulmanos no país.

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Sob esse arranjo, aprimorado ao longo dos anos, o presidente seria um cristão maronita, o primeiro-ministro seria um muçulmano sunita e o presidente da Assembleia Nacional, ou Parlamento, um muçulmano xiita. A composição do gabinete refletiria essas principais vertentes confessionais. O mesmo aconteceria com os cargos militares, no aparato de segurança, no Judiciário e na burocracia. Como seria óbvio, negociar a distribuição dos cargos do governo contribuiu para torná-lo um dos países mais corruptos do planeta.

De acordo com o Índice de Percepção de Corrupção da Transparency International, o Líbano está classificado em 137º lugar entre 180 países no mundo. A riqueza libanesa tem sido saqueada ao longo dos anos por membros do governo e seus comparsas a ponto de o país estar efetivamente em situação de falência financeira.

Tudo isso aconteceu no contexto de uma guerra civil nas décadas de 1970 e 1980 e duas invasões israelenses, uma em 1982 e a outra em 2006. Também há a influência crescente e perturbadora do Hezbollah (apoiado pelo Irã), agora a força política dominante no país. O poder crescente do grupo é uma das razões pelas quais os frágeis acordos de divisão de poder do Líbano estão sob crescente pressão.

Ao mesmo tempo, o país foi inundado por sírios deslocados pela guerra civil de sua terra natal. Em relação à população, o Líbano absorveu mais refugiados do que qualquer outro país do mundo. Eles representam 30% da população libanesa hoje.

Essas pressões deixaram o governo à beira do colapso. Nesse contexto, a explosão do nitrato de amônio no porto dificilmente poderia ter ocorrido em pior momento para um governo em apuros. O governo libanês se envolveu em meses de negociações difíceis com o Fundo Monetário Internacional (FMI) para delinear um plano de resgate financeiro.

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Os negociadores do FMI têm sido frustrados com a incapacidade de fazer com que os libaneses assinem um plano de resgate de emergência que dê conta de permitir que o Líbano continue funcionando. Entre os pontos críticos está o ponto sobre quanto dinheiro foi perdido ou desviado de forma incorreta.

“Tem sido muito difícil. O cerne da questão é se pode haver unidade de objetivos no país”, disse a diretora-gerente do FMI, Kristalina Georgieva, em entrevista coletiva após as negociações pararem.

Isso é um eufemismo. Os libaneses têm ido às ruas protestar contra a corrupção e incompetência do governo. Os protestos agora serão alimentados por níveis cada vez maiores de indignação com a má gestão por parte das autoridades portuárias de material altamente explosivo que chegou em um navio russo com destino a Madagascar em 2013.

A embarcação não continuou a viagem. A carga foi colocada em um depósito e as autoridades superiores ignoraram os repetidos avisos dos funcionários da alfândega sobre os riscos de continuar a armazenar o material.

Tragicamente, esse episódio resume bem o problema central do Líbano: a falta de responsabilidade devido a uma administração fraturada e fragmentada. Ações já estão sendo tomadas contra funcionários considerados imediatamente responsáveis ​​por supervisionar a segurança no porto de Beirute, mas é improvável que isso acalme a população.

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Nos dias anteriores à explosão, e sem relação com ela, o Líbano já estava tenso de forma antecipada quanto ao veredicto de um tribunal apoiado pela ONU no julgamento de quatro membros do Hezbollah acusados ​​de assassinar o ex-primeiro-ministro Rafik Hariri. Hariri, que liderou a reconstrução de Líbano após a última guerra civil, foi morto em Beirute em 2005 por um enorme caminhão-bomba.

Investigações da ONU baseadas em registros telefônicos identificaram quatro supostos culpados, nenhum dos quais foi visto em público por anos. O Hezbollah questionou a validade das investigações da ONU e o veredicto foi adiado para 18 de agosto.

Questionamentos foram feitos no passado a respeito da capacidade do Líbano sobreviver como um Estado religioso baseado em arranjos arcaicos de compartilhamento de poder. Essas dúvidas podem ressurgir.

Enquanto isso, a importância estratégica do país, que faz fronteira com Israel ao Sul e com a Síria a Leste e Norte, demonstra que não é do interesse do mundo árabe em geral nem do Ocidente permitir que ele imploda. As perspectivas para o Líbano, cuja principal cidade já foi conhecida como a Paris do Leste, são sombrias.

* Tony Walker é parceiro do The Conversation e Professor Adjunto na Escola de Comunicação da Universidade La Trobe.

© 2020 The Conversation. Publicado com permissão. Original em inglês.

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