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Parentes e amigos de Gerald Velazquez, uma das 280 vítimas da repressão na Nicarágua, aguardam pelo seu caixão | INTI OCON/AFP
Parentes e amigos de Gerald Velazquez, uma das 280 vítimas da repressão na Nicarágua, aguardam pelo seu caixão| Foto: INTI OCON/AFP

As tensões políticas estão cada vez mais fortes na Nicarágua, onde o presidente Daniel Ortega, um ex-guerrilheiro marxista e que está no poder desde 2007, tenta se manter no comando do país, em meio a protestos que iniciaram em abril e que já deixaram mais de 300 mortos.

No domingo (15), Ortega lançou mais um ataque mortal contra manifestantes que estavam bloqueando estradas. A chamada “Operação Limpeza” terminou com dez mortos e dezenas de feridos em cinco cidades, segundo denunciou a Associação Nicaraguense Pró-Direitos Humanos. Uma das vítimas é uma menina de 10 anos, que levou um tiro no abdômen e morreu por falta de atendimento médico.

Inicialmente, os protestos começaram por causa do descontentamento com a proposta da reforma previdenciária. Ortega voltou atrás. Mas as críticas contra o presidente não param. Personagem chave na derrubada da ditadura da família Somoza, em 1979, desde que voltou ao comando do país centro-americano tem tomado medidas autoritárias para cercear a oposição e a imprensa, além do movimento para reformar a Constituição e permitir a reeleição indefinida. “As eleições de 2016 marcaram o estabelecimento da ditadura no país”, diz o cientista político americano Kai Thaler, professor assistente de estudos globais da Universidade da Califórnia em Santa Barbara (Estados Unidos).

Gota d’água

Segundo Benjamin Waddell, professor associado de sociologia do Fort Lewis College (Estados Unidos), a questão previdenciária foi só a gota d’água para a intensificação dos protestos o acirramento da crise política, que é motivada manipulação de poder exercida por Ortega e a esposa Rosario Murillo, vice-presidente do país. “Eles têm sabido usar a sua autoridade para manter-se no poder por mais de dez anos e o centralizaram de tal forma que o mandato não tem um fim definido”. Muitos o apoiam por terem recebido comida, telhas e gado do governo

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A Freedom House, organização internacional dedicada à promoção da democracia e liberdade no mundo, destaca que Ortega vem consolidando toda a administração pública sob o controle de seu partido, limitando as liberdades fundamentais e permitindo que a corrupção sem controle se impregne no governo. 

Outro agravante, de acordo com a historiadora Hilary Francis, da Universidade de Northumbria (Reino Unido), é que Ortega também está limitando a atuação de partidos de oposição. Muitos perderam o direito a participar das eleições. “A falta de um espaço político criou uma tensão persistente. Mas foi o uso da violência por parte do governo que levou à atual crise”, diz ela. 

O movimento de oposição a Ortega é uma “colcha de retalhos” que reúne movimentos estudantis, camponeses, femininos e entidades empresariais. “O governo nicaraguense quer convencer o mundo de que a oposição é composta por direitistas pagos pelos Estados Unidos, mas a realidade é muito mais complexa”, afirma Waddell. 

“Dentro da oposição há estudantes conservadores e esquerdistas, a sociedade civil e um sem-fim de ex-aliados de Daniel Ortega. Em síntese, ela está composta de uma ampla e diversa sociedade que tem em comum sua oposição ao atual ditador”. 

Ataque a universidade e cerco a igreja 

Um dos capítulos mais recentes do acirramento das tensões foi um violentíssimo ataque da polícia nicaraguense e de grupos paramilitares a serviço de Ortega, na sexta à tarde, a estudantes que estavam entrincheirados há dias no campus da Universidade Nacional Autônoma da Nicarágua. Pelo menos duas pessoas foram mortas. 

Muitos estudantes se refugiaram em uma igreja próxima, que também passou a ser alvo dos paramilitares. Por 20 horas, o templo foi alvo de rajadas de metralhadoras. As ruas próximas à paróquia foram bloqueadas, impedindo o resgate dos feridos. 

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A situação só conseguiu ser controlada no sábado, após a mediação do cardeal Leopoldo Brenes, arcebispo de Manágua, e do núncio apostólico (embaixador do Vaticano), Waldemar Sommertag. Os estudantes foram levados à catedral da cidade e os feridos, aos hospitais. 

A situação pode se agravar após a prisão de um dos líderes dos protestos contra Ortega. Medardo Mairena, ligado ao movimento camponês, foi detido pela Polícia Nacional na sexta quando embarcava para Los Angeles. Ele foi acusado de ser o responsável por um ataque à prefeitura e à delegacia de uma cidade no interior do país, na quinta-feira, e que resultou em seis mortes. 

“O governo decidiu semear o caos retirando a polícia de sua atuação regular e enviando grupos de jovens para saquear e incendiar negócios e ocupar terras de opositores do governo”, diz Thaler

Governo também culpa gangues

O governo de Ortega vem tentando desqualificar as manifestações. Além de dizer que os protestos são liderados por direitistas vinculados aos Estados Unidos, tenta relacioná-los às violentas gangues que atuam na Guatemala, El Salvador e Honduras. Estes países estão entre os mais violentos do mundo. É um argumento que soa ridículo para quem conhece a Nicarágua”, diz Hilary Francis, da Universidade de Northumbria. 

Segundo ela, a Nicarágua não tem os mesmos problemas com as gangues, devido aos padrões de imigração verificados nos anos 80, quando a região passou por um período de forte instabilidade política e muitos migraram para os Estados Unidos. Guatemaltecos, salvadorenhos e hondurenhos rumaram principalmente para a Califórnia. “Quando os Estados Unidos começaram as deportações em massa, nos anos 90, criaram-se os núcleos para as gangues que hoje atuam nesses países”. 

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A dinâmica da migração nicaraguense para os Estados Unidos foi diferente, diz ela. “Muitos dos nicaraguenses que foram para lá pertenciam à classe média e se fixaram legalmente em Miami”. O movimento coincidiu com a primeira chegada de Ortega ao poder, em 1979, após derrubar a ditadura de Somoza. 

 Até a atual crise política, a Nicarágua era considerada um dos países mais seguros da região. Segundo o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, só a Costa Rica registrava, proporcionalmente, menos homicídios na América Central. 

Saída para a crise 

A Igreja Católica tem sido o principal mediador na tentativa de obter um diálogo nacional. Ela sugeriu que as eleições, originalmente previstas para 2022, fossem antecipadas para março de 2019. Na semana passada, a hipótese foi rejeitada por Ortega. 

A Conferência Episcopal da Nicarágua (equivalente à CNBB brasileira) publicou uma mensagem pastoral, neste sábado, criticando a falta de vontade política do governo para sentar à mesa de negociações. Em um dos trechos mais duros, o documento diz: 

 Durante todos estes meses temos sido testemunhas da falta de vontade política do governo para dialogar sinceramente e buscar processos reais que nos encaminhem para uma verdadeira democracia, negando-se reiteradamente a discutir as temáticas centrais da agenda de democratização e descumprindo as recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), especialmente em relação à desmobilização urgente dos elementos armados pró-governamentais.”

Para muitos manifestantes, as eleições não são suficientes. A justificativa é simples, diz Francis: “o governo continua a matar e muitos mais morreriam se fosse preciso esperar até março”. Segundo ela, é difícil ver, na atual conjuntura, uma saída para a crise. 

E mesmo que o governo concordasse em antecipar as eleições, o resultado de tal medida poderia não ser claro. “Qualquer coalizão política de oposição precisará ser montada rapidamente e terá de incorporar uma ampla gama de interesses heterogêneos”. 

Momento crítico 

A situação chegou a um ponto extremamente crítico, avalia Benjamin Waddell, do Fort Lewis College. “O governo, para manter o controle da situação, terá de recorrer a táticas cada vez mais drásticas. Por sua vez, se a oposição pretende sobreviver, ela terá de se radicalizar”. 

Um caminho apontado pelos analistas seria a via diplomática. Mas muitos dos integrantes dos movimentos que se opõem à Ortega tem cautela para atuar, eventualmente, em conjunto com o governo americano. Parte disso se deve, segundo a historiadora da universidade inglesa, às crenças políticas dos manifestantes e à oposição a Trump. E também para não cair no jogo do ditador nicaraguense, que os acusa de serem marionetes da CIA. 

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De forma indireta, os Estados Unidos vem se envolvendo na questão nicaraguense. O país vem aplicando a Lei Magnitsky, uma norma que permite o governo americano impor sanções financeiras e migratórias a pessoas em todo o mundo que cometam abusos de direitos humanos e atos de corrupção. Três pessoas do círculo próximo a Ortega foram atingidas, mas só uma delas, Francisco López, representante do governo em quatro empresas, foi afastada do cargo. 

Waddell afirma que a saída diplomática deveria acontecer o mais rápido possível e as negociações deveriam incluir Daniel Ortega e seus aliados. “Parte dos motivos pelos quais Ortega tem apoio é o fato de que seus opositores têm exigido a necessidade de extinguir a FSLN (Frente Sandinista de Libertação Nacional, o partido de Ortega)”. Segundo ele, isto provoca medo entre a população que o tem apoiado nos últimos anos.

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