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| Foto: Tim Somerset

Opinião

O humor e o horror

Dante Mendonça, colunista da Gazeta do Povo

Dois terroristas entraram na redação do jornal de humor Charlie Hebdo e fuzilaram covardemente 12 pessoas, entre eles quatro dos mais celebrados cartunistas franceses. Foi quase o mesmo que entrar no Museu D’Orsay e destruir com uma bomba um punhado de obras dos impressionistas.

Bem comparando, seria o mesmo que entrar na redação do Pasquim, no início da década de 1970, e matar Millôr Fernandes (1923-201), Ziraldo, Jaguar e Henfil (1944-1988), além de Sérgio Augusto, Paulo Francis (1930-1997) – todos eles admiradores do Wolinski, um dos maiores cartunistas de todos os tempos, assassinado em plena redação.

É o horror!

Nascido na Tunísia e parisiense desde os 12 anos de idade, Wolinski influenciou toda uma geração de cartunistas com o seu traço caligráfico, libertário e libertino. Assim como Picasso, que alforriou as artes visuais, Wolinski tirou o gesso das mãos e mentes dos cartunistas em todo o mundo. Inclusive nos países árabes.

Em 2006, 12 charges publicadas por um jornal dinamarquês provocaram a ira do povo islâmico. Os chargistas satirizaram o profeta Maomé e o Islã ameaçou passar os engraçadinhos no fio da espada. Para o islamismo, é proibida a representação de Alá e seus profetas em imagens. Agora que a história se repete com a intolerância levada ao extremo – com o Charlie Hebdo enfrentando com as armas do humor a barbárie religiosa – mais do que nunca é preciso recordar a reação da imprensa francesa naqueles idos.

Com o argumento de que um país secular como a França não deve se submeter aos preceitos de nenhuma religião, o diário France Soir publicou em uma das suas edições da semana as 12 charges, com uma manchete de primeira página: "Sim, temos o direito de caricaturar Deus". Logo abaixo, uma charge na qual aparecem Buda e os deuses cristão e judeu ao lado de Maomé. Todos sentados em uma nuvem que paira sobre a Terra. O Deus cristão diz ao profeta muçulmano: "Não reclame, Maomé. Todos nós já fomos caricaturados".

A França perdeu ontem quatro personalidades insubstituíveis do jornalismo do país, os chargistas Charb, Cabu, Tignous e Wolinski, assassinados junto com outras oito pessoas em um atentado à sede da revista Charlie Hebdo, em Paris.

O diretor da publicação satírica, Stéphane Charbonnier, o Charb, era plenamente ciente do risco que corria, mas não tinha a intenção de baixar a guarda, e há dois anos disse preferir "morrer de pé a viver de joelhos", em uma entrevista ao jornal Le Monde.

Nascido em 1971, em Conflans-Sainte-Honorine, no noroeste de Paris, ele vivia sob proteção policial desde 2011, quando a sede da revista foi incendiada após a publicação de várias charges de Maomé.

Antes de assumir a direção da Charlie Hebdo, que recentemente se instalou no distrito 11, perto das praças da Bastilha e da República, Charb tinha colaborado com L’Echo des Savanes, Télérama, Fluide Glacial e L’Humanité, órgão do Partido Comunista francês.

Jean Cabut, Cabu, cartunista renomado há décadas e colaborador da Charlie Hebdo desde a fundação da revista, em 1970, era o autor de uma das três charges que em 2006 mexeram negativamente com a sensibilidade dos radicais islâmicos, por isso a publicação teve de ser protegida contra eventuais atentados.

Naquela obra, Cabu assinava a imagem da capa, na qual uma figura em representação de Maomé dizia: "É duro ser amado por tolos", em coerência com a linha editorial da revista, que nos últimos anos sofreu vários atentados, mas sem vítimas.

Nascido em Châlons-sur-Marne, Cabu começou a publicar suas primeiras ilustrações aos 16 anos, depois passou dois anos na Guerra da Argélia. No retorno à França, em 1960, trabalhou em Hara-Kiri e em Pilote. Colaborou depois com muitos outros veículos de comunicação franceses, entre eles o também satírico Le Canard Enchaîné, do qual foi um dos pilares desde o início dos anos 80.

O grande chargista, que na próxima semana completaria 77 anos e era pai do cantor francês Manu Solo, que morreu aos 46 anos em 2010, criou ao longo da carreira personagens consagrados como o Grand Duduche, um herói sonhador.

Precursor da história em quadrinhos-reportagem e amante de jazz, rock e folk, Cabu também deu vida nos anos 60 ao famoso, malvado e estúpido Mon Beauf, anti-herói que levou consigo para a Charlie Hebdo e a Charlie Mensuel.

Lenda

Georges Wolinski, outro componente lendário da redação assassinado ontem, nasceu há 81 anos na Tunísia, era simpatizante do Partido Comunista, sem nunca ter militado, e cartunista habitual do L’Humanité. Também foi colaborador de Hara-Kiri em suas versões mensal e semanal.

De origem franco-italiana por parte de mãe e judaica-polonesa por parte de pai, foi redator-chefe do Charlie Mensuel e trabalhou para outros veículos como Action, Paris-Presse, Le Nouvel Observateur e Paris Match.

Nascido em Paris, em 1957, retratista social e comprometido com seu tempo da mesma forma que seus companheiros assassinados, Bernard Verlhac, o Tignous, colaborava em outros veículos como Marianne, L’Echo des Savanes e Fluide Glacial, assim como em diversas emissoras de televisão.

Anticapitalista assumido, em 2011 publicou seu último álbum, 5 Ans sous Sarkozy, e foi também o autor, entre outras obras, de Pandas dans la Brume (2010), On s’Énerve pour un Rien (1991), Tas de Riches (1999) e Le Fric, C’est Capital (2010).

A presidência francesa ainda não confirmou oficialmente sua morte, mas a imprensa local o inclui na lista de vítimas do atentado, assim como a emissora pública France Info, que obteve a confirmação do advogado da Charlie Hebdo, Richard Malka.

Último número de revista teve charge "premonitória"

O mais recente número da revista satírica francesa Charlie Hebdo, dedicado ao polêmico escritor Michel Houellebecq, contém em suas páginas uma charge assinada pelo diretor da publicação, Charb, que parece premonitória.

Assassinado hoje junto com outras 11 pessoas – entre elas três dos principais cartunistas da revista – Charb desenhou o que parece ser um jihadista abaixo de uma manchete: "França continua sem atentados".

A caricatura, com o dedo indicador apontado para cima, responde a essa notícia: "Temos até o final de janeiro para apresentar nossos desejos...".

A animosidade dos radicais islâmicos para com a revista vem desde 2006, quando foram publicadas as primeiras caricaturas do profeta Maomé em solidariedade ao jornal dinamarquês Jyllands-Posten.

O Charlie Hebdo dedicou seu número desta semana a Houellebecq, protagonista de um intenso debate na França por ter imaginado, em seu novo livro, um futuro no qual o chefe de um partido islamita moderado se transforma em presidente do país.

Desde a publicação das charges de Maomé, o Charlie Hebdo sofreu ameaças e agressões constantes, a última em 2013, quando piratas cibernéticos atacaram seu site, provavelmente por causa de um suplemento especial com uma biografia em quadrinhos sobre Maomé.

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