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Dissidente saudita Omar Abdulaziz posa para foto em Montreal, no Canadá | François Ollivier/Washington Post
Dissidente saudita Omar Abdulaziz posa para foto em Montreal, no Canadá| Foto: François Ollivier/Washington Post

Naquele dia, Omar Abdulaziz bateu o recorde de tempo vidrado em seu celular. Colocou o aparelho no bolso do paletó e sentou-se em um café em Montreal para esperar por dois homens que disseram que iriam lhe entregar uma mensagem pessoal do príncipe herdeiro saudita, Mohammad bin Salman.  Quando os homens chegaram, Abdulaziz, um ativista da oposição saudita, de 27 anos, perguntou por que haviam ido até o Canadá para vê-lo. 

“Há duas opções. A primeira, você pode voltar para casa na Arábia Saudita, para seus amigos e familiares. A outra, você vai para a prisão. O que vai escolher?”, perguntou um dos homens.

Para levá-lo à Arábia Saudita, os homens foram com um dos irmãos mais novos de Abdulaziz para a reunião. O ativista insistiu para ele manter a calma. 

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As gravações clandestinas – mais de 10 horas de conversa – foram fornecidas ao jornal Washington Post por Abdulaziz, amigo próximo do jornalista desaparecido Jamal Khashoggi. Eles deram uma arrepiante demonstração de como a Arábia Saudita tenta atrair figuras da oposição de volta ao país, com promessas de segurança e dinheiro. Segundo grupos de direitos humanos, esses esforços aumentaram drasticamente quando Mohammad se tornou o príncipe herdeiro, em 2017. 

Muitos amigos de Khashoggi disseram que importantes funcionários sauditas, próximos do príncipe herdeiro, entraram em contato com ele há alguns meses e ofereceram, até mesmo, um cargo de alto nível para trabalhar para o governo, se ele voltasse ao país. Ele, porém, disse que não confiava na proposta, temendo que fosse uma armadilha. Segundo interceptações feitas pela inteligência americana, Mohammed ordenou uma operação armadilha para atrair Khashoggi de sua casa, na Virgínia (EUA), de volta à Arábia e, em seguida, prendê-lo. 

Khashoggi nunca mais foi visto após ter entrado no consulado saudita em Istambul, na Turquia, em 2 de outubro. Investigadores turcos concluíram que ele foi morto e esquartejado dentro do local. Oficiais sauditas dizem que não têm informações sobre a situação. 

Abdulaziz, que está asilado no Canadá, disse que estava trabalhando em vários projetos junto com Khashoggi, os quais poderiam dar ao governo saudita mais razões para querer ele ‘fora do caminho’. O jornalista havia lhe enviado US$ 5 mil dólares para um projeto que haviam apelidado de “As abelhas” – uma iniciativa para construir um “exército” online dentro da Arábia Saudita para desafiar o governo na internet. A dupla também estava trabalhando em um pequeno documentário, um site para rastrear questões de direitos humanos e um projeto pró-democracia, disse Abdulaziz. 

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Era para esse trabalho ser secreto. Mas Abdulaziz disse que foi alvo de espiões sauditas neste verão. “Eles tinham tudo, eles viram nossas mensagens, grampearam as ligações”, disse. 

Na gravação feita por Abdulaziz, os dois homens dizem repetidamente que haviam ido pessoalmente pelo príncipe saudita. Eles também mencionaram que estavam trabalhando sob ordens de Saud al-Qahtani, um estrategista e executor de Mohammad. 

Segundo Khashoggi disse dito a amigos, foi Qahtani que o ligou há alguns meses, antes do desaparecimento do jornalista, implorando para que ele deixasse o autoexílio e voltasse para a Arábia Saudita. 

Dissidência

Abdulaziz deixou a Arábia Saudita em 2009 para ir estudar no Canadá. Ele criou uma conta no Twitter durante a Primavera Árabe e, então, na Universidade McGill, ele começou um popular canal no YouTube, conhecido por criticar e satirizar o líder da Arábia Saudita. Ganhou residência permanente no Canadá em 2014. 

Abdulaziz e Khashoggi iniciaram a amizade após o jornalista saudita se mudar para Washington, no verão de 2017. “Ele estava sozinho. Nós começamos a conversar sobre morar no exterior, longe de nossas famílias, sobre a vida e os projetos que iríamos começar. Jamal era pai, um amigo”, disse. 

“O exército de abelhas” foi ideia de Abdulaziz, mas Khashoggi havia gostado do projeto também. Enquanto criticava a liderança saudita, como colunista contribuinte do Washington Post, Khashoggi acabou encontrando contas no Twitter pró-governo, que os ativistas sauditas chamam de “as moscas”. “Jamal foi fortemente insultado por alguns perfis. Como ele era a voz na mídia ocidental, eles focaram em Jamal”, disse. 

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Abdulaziz disse que sugeriu um contra movimento online. Ele só precisava de algum dinheiro para tirar a ideia do papel. “Nós os chamamos de “exército de moscas”, enquanto nos considerávamos o “exército de abelhas”, conta. 

Segundo ele, o plano era comprar cartões SIM com números americanos e canadenses para que alguns sauditas pudessem usar dentro do país. As contas no Twitter deveriam ser verificadas com um número de telefone, mas os ativistas na Arábia Saudita ficaram com medo de associar o número de telefone com a rede social, temendo que pudessem ser localizados e presos, após criticarem o governo. Eles já haviam conseguido 200 chips para as pessoas. 

Khashoggi também pediu para que Abdulaziz o ajudasse na produção de um documentário, que mostraria como a liderança saudita está dividindo o país. Além disso, pediu ajuda para criação de um logotipo para a instituição que estava formando, a “Democracia para o mundo árabe, agora”. Abdulaziz também estava ajudando o amigo a criar um site para rastrear questões de direitos humanos. 

Mas o jornalista estava seriamente apreensivo em relação aos cartões de telefone. “Ele me disse que o projeto era muito perigoso, disse para eu tomar cuidado, pois o Twitter é a única plataforma que temos, nós não temos um parlamento”, disse. 

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Em uma mensagem de 21 de junho, Khashoggi escreveu a Abdulaziz: “Eu vou tentar conseguir dinheiro. Nós deveríamos fazer alguma coisa. Você sabe que algumas vezes eu acabo sendo afetado pelos ataques deles”. 

Dois dias depois, Abdulaziz fez uma encomenda na Amazon. Ele clicou em um link que havia sido enviado para seu telefone, para que pudesse rastrear a encomenda. Após isso, ele suspeita que seu celular tenha sido ‘invadido’. 

O Citizen Lab, um projeto da Universidade de Toronto, que investiga espionagem digital contra a sociedade civil, relatou, em agosto, que o telefone dele poderia ter sido hackeado. Há duas semanas, o grupo concluiu, com um “alto grau de confiança”, que o celular do saudita havia sido alvo de um operador ligado ao “governo e serviços de segurança da Arábia Saudita”. 

Oferta generosa

Segundo Abdulaziz, um dos homens estava tentando de várias maneiras, por vários meses, levá-lo de volta à Arábia Saudita.. Ele poderia ter um novo começo na Arábia Saudita, disseram os homens.  

 Na época, o príncipe herdeiro de 32 anos estava passando por uma onda de publicidade positiva. Ele acabara de fazer uma visita de alto nível aos Estados Unidos, onde conheceu celebridades como Bill Gates, Jeffrey Bezos e Dwayne "The Rock" Johnson. 

Mas um calafrio já havia sido lançado sobre a comunidade dissidente saudita. Na Arábia Saudita, o príncipe havia prendido ativistas, reunido empresários e os prendeu no Ritz-Carlton. 

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Os ativistas fora do país não ficaram imunes.Uma das ativistas mais famosas da Arábia Saudita, Loujain al-Hathoul, foi sequestrada na rua em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos, e levada para a Arábia Saudita. Ela foi libertada depois de alguns dias na cadeia,. Ela foi proibida de viajar e pediu para não falar publicamente. Mais tarde, foi presa por acusações, incluindo contato com "entidades estrangeiras". Ela permanece presa. 

O príncipe Khaled bin Farhan Al-Saud, um dissidente real que mora na Alemanha, disse que foi alvo do que acredita ser uma conspiração similar em setembro. Afirmou que seus parentes lhe disseram que receberia um cheque do estado para ajudá-lo a sair da dificuldade financeira se viajasse para o Cairo. Ele diz que não deixou a Alemanha por sete anos por medo de ser sequestrado. 

"A Arábia Saudita está enviando um sinal muito deliberado e claro, dizendo que você nunca será livre", disse a diretora executiva da Human Rights Watch, Sarah Leah Whitson. "Onde quer que você esteja, você nunca estará livre para dizer o que quiser." 

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Khashoggi havia aconselhado Abdulaziz a ter certeza de encontrar os homens em lugares públicos e de modo algum retornar ao reino com eles. "Ele disse: 'Se você quer receber dinheiro, é uma decisão sua'", lembrou Abdulaziz. "Mas não volte; não confie neles' " 

Os dois visitantes sauditas começaram sua conversa com Abdulaziz na reunião de 15 de maio no café Juliette et Chocolat, em Montreal, enquanto "Sweet Caroline", de Neil Diamond, tocava ao fundo. 

Khashoggi é uma "dor de cabeça", mas ele estava pensando em voltar para a Arábia Saudita, disse um homem. Abdulaziz também deveria. 

"Omar, para lidar com você, não queríamos vir por meio de um ministro ou de um embaixador. Queríamos vir do topo da pirâmide, o príncipe", disse um homem. "Ninguém pode lidar melhor com este assunto do que o próprio príncipe." 

Os contatos e os cenários

O Post ouviu mais de 10 horas de gravações fornecidas por Abdulaziz, que ele disse terem sido gravadas durante as reuniões com os homens durante quatro dias em maio. Os dados do arquivo mostram que as gravações foram feitas nos horários que ele especifica. 

Mensagens do WhatsApp sobre a visita também combinam com sua história. Abdulaziz pediu que os homens não fossem identificados. Disse que não sabe se eles estavam trabalhando para a inteligência saudita ou se foram forçados pelo governo a tentar trazê-lo de volta. Os homens, ambas figuras públicas que falaram em apoio ao príncipe herdeiro, não responderam nem responderam às perguntas enviadas na quarta-feira pelo The Post. Um deles disse que enviaria uma resposta, mas não o fez. Ligações para um porta-voz do Ministério das Relações Exteriores saudita ficaram sem resposta. 

 O tom de muita conversa foi jovial e amigável. "Eles começaram com as cenouras", explicou Abdulaziz. "Tentando me convencer a voltar, trazendo meu irmão." 

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Ele acreditava, então, que eles queriam levá-lo de volta ao reino, pagar e usar seus seguidores nas mídias sociais para propaganda saudita, disse ele. Em determinado ponto da conversa, os homens pediram que visitasse a embaixada saudita para pegar um novo passaporte - um pedido que vê como potencialmente sinistro desde que Khashoggi desapareceu dentro do consulado em Istambul. 

Enquanto tomavam café, os dois homens apresentaram as opções. Um cenário em que Abdulaziz retorna à Arábia Saudita é uma situação ganha-ganha, disse um dos homens. "Omar é um beneficiário ou um vencedor, porque ele está voltando para casa", diz ele. "O segundo lado, o estado, é um vencedor e é feliz também". 

 A volta de Abdulaziz poderia ajudar a melhorar a imagem do reino, disseram eles. O governo já gastou milhões de dólares na visita do príncipe herdeiro a Washington para dar-lhe mais visibilidade. "Isto mostra que o reino está pronto para dar esse passo", diz ele. 

 Mas no segundo cenário, todo mundo perde, o homem continuou. "Omar é um perdedor porque iria para a cadeia", disse ele, acrescentando que seria "pego no aeroporto". O governo também perderia. Como Abdulaziz não é uma figura significativa da oposição, qualquer "informação" obtida dele se fosse detido "não seria muito útil para o Estado". Mas o governo seria prejudicado pela "propaganda" de grupos de direitos humanos e da mídia que cobririam sua detenção, disseram eles. 

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Em alguns momentos, a conversa gira em torno de quanto dinheiro Abdulaziz poderia receber se aceitasse a oferta. Ele diz que a Arábia Saudita deve a ele cerca de US$ 316 mil por cortar os pagamentos de mensalidades do governo por sua bolsa de estudos. "Eu vou pegar o dinheiro. Eu vou dar para os desabrigados em Montreal, dar para o hospital do câncer ou comprar um novo relógio e quebrá-lo", diz ele em outra das reuniões. "Não é da conta de ninguém." 

 Durante as discussões, Abdulaziz manteve contato com Yahya Assiri, ativista dos direitos humanos saudita em Londres. "Eu ficava perguntando a ele: 'Você quer alguma coisa? Você quer encontrar um compromisso com eles?' "Assiri disse. "Ele disse: 'Não, não, não, eu quero ver o que eles querem de mim. Na minha opinião, estava claro o que eles queriam. Eles queriam que ele voltasse. Para se livrar de seu trabalho e silenciá-lo. 

 Abdulaziz disse que nunca teve intenção de voltar. Os homens disseram que não transfeririam dinheiro antes de ele retornar. Ele recusou a oferta e os homens finalmente deixaram Montreal sem ele. 

 O recado

No início de agosto, os dois irmãos mais novos de Abdulaziz foram presos na Arábia Saudita, juntamente com oito de seus amigos, disse ele, parando para segurar as lágrimas. 

 Ele mandou uma mensagem para um dos homens que o visitaram em maio. "Eu entendo que você é um intermediário", disse ele, de acordo com as imagens da tela da mensagem. "Pergunte-lhes suas demandas."  A resposta voltou e se referiu às "abelhas". "O grupo falou muito sobre as contas de mídia social. E eles sabem que você as tem." 

Mas Abdelaziz disse que não pode desistir. "Eles hackearam meu telefone e prenderam meus irmãos, sequestraram e talvez mataram meu amigo", disse ele. "Eu não vou parar."

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