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Curitiba – Os personagens do início são os mesmos: Adão, Noé, Abraão, Ismael, Isaac, Jacó, José, Moisés e Jesus. O Deus, também, é o mesmo. Por que, então, entre as três grandes religiões monoteístas, uma, o islamismo, parece tão distante das restantes – o cristianismo e o judaísmo?

O novo livro de Ali Kamel, diretor executivo de jornalismo da Rede Globo, responde à pergunta e mostra que o Islã está muito mais próximo da tradição judaico-cristã do que o leigo poderia imaginar. Sobre o Isl㠖 A Afinidade entre Muçulmanos, Judeus e Cristãos e as Origens do Terrorismo (Nova Fronteira; R$ 34,90) é o segundo livro do autor. No ano passado, ele lançou Não Somos Racistas, livro em que se posiciona contra a política de cotas nas universidades brasileiras.

O atual livro não fica para trás em se tratando de posições pouco defendidas na imprensa brasileira. Nos últimos capítulos, após discorrer sobre as origens do terror islâmico – mestre na arte de manipular e deturpar as palavras do Alcorão –, ele defende a invasão no Iraque e trata de temas polêmicos relacionados à guerra, como as armas de destruição em massa (que nunca foram encontradas) e o petróleo (uma das supostas motivações de Bush para iniciar o conflito). Veja trechos da entrevista concedida por Kamel à Gazeta do Povo, em uma troca de e-mails durante esta semana.

Gazeta do Povo – O Alcorão, ao mesmo tempo que repele cristãos e judeus, também os acolhe. É um mistério, como você diz no livro. Cristianismo e judaísmo também têm suas contradições – ou mistérios –, mas por que no Islã isso deu brecha para uma interpretação que leva ao ódio, ao terrorismo?

Ali Kamel – O Islã não está sozinho nisso, talvez o problema seja isso se dar na contemporaneidade. Porque o Cristianismo gerou coisas muito feias, totalitárias também: a Inquisição era uma forma de terror de estado. Nenhuma religião está livre disso. O que eu digo no livro é que o terrorismo islâmico não é a prova de que o Islã é imutável e violento. Na verdade, o terrorismo é a prova de que o Islã se modifica rapidamente, porque, se não fosse assim, a reação à mudança (o terrorismo) não seria necessária. Quanto mais potencialmente forte é essa mudança mais potencialmente radical é a reação. Se o Islã fosse imutável, se não estivesse sendo transformado por dentro, reação alguma existiria.

Há um papel importante que deveria ser desempenhado pelos muçulmanos moderados na luta contra o terror, não? Fora algumas vozes dispersas, esse não é um movimento forte. Eles estão intimidados? Ou há, no fundo, uma complacência de alguns, um certo orgulho, um desejo de que a sua religião predomine no mundo – que, afinal, podemos creditar à natureza humana?

É uma boa pergunta. No livro eu digo que os muçulmanos de todo o mundo têm de enfrentar o terrorismo, tem de rechaçá-lo, tem de mostrar que a visão que ele tem do Islã é falsa e deturpada. Na verdade, você dificilmente encontrará um muçulmano na Síria ou no Egito, por exemplo, que concorde com as idéias dos terroristas, que ache que explodir aviões em prédios altos, matando inocentes seja algo que a religião permite. Mas todos os países muçulmanos são ditaduras. Ou laicas ou religiosas. E isso faz as pessoas calarem. Elas têm medo. Não abrem a boca, porque temem seus governos. Se vivem numa teocracia radical, como no Irã ou na Arábia saudita, sabem que falar a favor da liberdade que o Islã prega é impossível, porque vai contra o que os governos pensam. Se vivem em ditaduras laicas, anti-americanas, temem se posicionar contra o terrorismo e serem confundidos com inimigos do Estado. Ao mesmo tempo, nos países laicos, uma juventude iludida muitas vezes vê nos movimentos radicais religiosos o caminho para a liberdade. É um erro terrível. Porque não olham para a história. No Irã, foram os religiosos que derrubaram a ditadura sangrenta do Xá, mas a substituíram por outra. É um caminho difícil, mas que os muçulmanos moderados terão de percorrer. Com inteligência, priorizando a razão. E serão vitoriosos.

Qual é o papel da educação na luta contra o terror? Como aceitar que os terroristas islâmicos tenham tantos seguidores? Aí entra o papel da educação, não? Afinal, não há uma só fórmula para lutar contra o terrorismo. Nem toda guerra é má, como você diz, mas só guerra não adianta, certo? Plenamente de acordo. Durante a guerra fria, como o inimigo era o comunismo ateu, em muitos países islâmicos houve incentivo às escolas religiosas, como antídoto. E elas eram o veneno, como vimos depois. O Afeganistão é uma prova disso. Governos ocidentais – e não somente os EUA – estimularam os jihadistas na luta contra os soviéticos, e tudo isso resultou na Al-Qaeda. A Turquia é um grande campo de provas. Desde Atatürk, é um país secularista. Uma ditadura durante anos. Vive uma experiência democrática, em que um partido religioso – muito parecido como os democratas cristãos europeus, guardadas todas as diferenças – vence as eleições, mas mantém o secularismo. Se a Turquia avançar, se a democracia lá se mantiver estável, se ela for aceita pela União Européia, poderá ser, como se dizia na década de sessenta, ser um farol para os países islâmicos. Nos outros países, educação é fundamental, mas isso não vai acontecer nas ditaduras. Por esse motivo a minha esperança num Iraque democrático é grande.

A Guerra do Iraque não foi em vão. A queda de Saddam Hussein foi uma vitória importante para o ideal democrático e para a defesa dos direitos humanos. Mas para a luta contra o terror, qual o significado dessa guerra? O terror sai mais forte ou mais fraco? A possível vitória democrata no ano que vem tornará provável uma retirada das tropas do Iraque. Sair de lá com o "rabo entre as pernas" não fortalece ainda mais os terroristas?

Agora, no calor da disputa, os democratas podem falar em retirada imediata do Iraque, mas, quando e se um presidente democrata assumir aquela cadeira tudo mudará de figura. Vão tentar consertar o Iraque. Porque sabem que uma derrota ali será uma derrota com conseqüências funestas para os americanos. Tudo o que se tentou evitar poderá acontecer: um país rico e poderoso nas mãos dos terroristas, ou apoiando terroristas que, então, poderão lançar ataque ainda mais poderosos. Se com um Estado pária como o Afeganistão eles fizeram o que fizeram, imagina com um Iraque. Esse é o significado da guerra: evitar que o Iraque, nas mãos de Saddam, se tornassem um abrigo para terroristas. E isso era uma possibilidade. Como conto no livro, Clinton chegou a pensar uma vez em bombardear campos de treinamento no Afeganistão, mas Ricard Clark, chefe do contra-terrorismo não deixou, temendo que, num eventual fracasso, Bin Laden saísse de lá e fosse para o Iraque. "Aí é que ele sumiria", disse Clarke. Não importa que saibamos hoje que os laços entre Bin Laden e Saddam fossem bem mais tênues do que se supunha. Importa que, na época, os indícios de que os laços existiam eram grandes. E nenhum presidente conviveria com essa possibilidade. No livro eu mostro como a Al-Qaeda sempre defendeu o Iraque em suas fatwas (decretos religiosos). Ninguém pode estar hoje 100% certo de que Saddam, sem embargo, livre de amarras, não fosse rapidamente, com o dinheiro farto do petróleo, recompor seu arsenal químico e biológico e abrigar uma Al-Qaeda fugida do Afeganistão.

O anti-americanismo contribui para o terrorismo?

Sem dúvida. Hoje, esse sentimento antiamericano chega a ser ilógico. Os EUA jamais foram colonialistas. Em três vezes no século passado foi em socorro da Europa e da liberdade. Por que acreditar que ele faria diferente hoje em dia?

Os desdobramentos da charge no jornal dinamarquês e a o cancelamento da obra de Mozart na Alemanha são apenas dois exemplos de como o Ocidente está intimidado pelo terrorismo islâmico. Outros incluem aí também a vitória socialista na Espanha depois dos atentados, mas isso é discutível. O inimigo pode estar dentro do próprio Ocidente, que, cada vez mais, perde sua identidade, a consciência de seus valores?

Acho que não podemos nos acovardar. O Ocidente não pode dar bola para os intolerantes. Deve sempre reafirmar os seus valores, que são universais: democracia e liberdade. Não deve temer ferir suscetibilidades, porque estas são manipuladas pelos radicais. Os muçulmanos riem, fazem festas, contam piadas. Têm horror aos puritanos sauditas, por exemplos, vistos sempre com desdém. Esses muçulmanos têm de ser prestigiados. Sempre.

Essa é uma guerra contra toda a civilização ocidental e contra qualquer país onde haja liberdade religiosa, logo, essa é uma guerra também dos brasileiros. O que nós podemos fazer? O que o leitor, por exemplo, pode fazer?

Eu acho que nós devemos conhecer o problema. O meu livro tem esta proposta. Quem o ler conhecerá o Islã, saberá o que diz essa religião e saberá o quão "gêmea" ela é do Judaísmo e do cristianismo. Também ela começa com Adão, Eva, Caim, Abel, Noé, Abraão, Isaac, Ismael, Jacó, José, Moisés e Jesus. Quem ler o livro vai percorrer uma história de entrelaçamentos que eu acho fascinante. Vai também participar de uma discussão honesta sobre o Islã: ele é violento? É misógino? Apedreja mulheres? Por que usar o véu. Sem pílulas douradas. E, depois de mais familiarizado com o Islã, vai me acompanhar na descrição de como os teóricos do terrorismo islâmico deturpam a mensagem da religião. Tentei fazer uma abordagem sem academicismos, clara, numa linguagem simples. E, no fim, vai me acompanhar num mergulho nos documentos secretos que as várias comissões de inquérito nos Estados Unidos liberaram. E poderá ter uma surpresa.

Você tem alguma idéia para um próximo livro?

Pretendo falar sobre o fazer jornalismo. Defendendo a tese de que ele não é um campo de batalha de ideologias, mas uma forma de conhecimento da realidade.

Ali Kamel, sociólogo e jornalista

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