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Joaquin "El Chapo" Guzman é levado a um helicóptero pelas forças de segurança mexicanas, no Aeroporto Internacional do México, no México, em 22 de fevereiro de 2014 | Susana Gonzalez/Bloomberg
Joaquin "El Chapo" Guzman é levado a um helicóptero pelas forças de segurança mexicanas, no Aeroporto Internacional do México, no México, em 22 de fevereiro de 2014| Foto: Susana Gonzalez/Bloomberg

Dois meses de depoimentos em um tribunal federal ofereceram um vislumbre sem precedentes do funcionamento interno do cartel de drogas de Sinaloa, com histórias de assassinatos cruéis, pistolas incrustadas de diamantes, esconderijos de cocaína contrabandeados em latas de pimentas e, no centro de tudo, um réu que escapou da prisão duas vezes. 

O julgamento do notório narcotraficante Joaquin Archivaldo Guzmán Loera, conhecido como "El Chapo", mostrou em detalhes meticulosos como o cartel contrabandeia drogas do México para os Estados Unidos, onde alimentou uma crise mortal de overdoses em todo o país. O fluxo de drogas do cartel, segundo a promotoria, dependia de túneis subterrâneos e compartimentos escondidos em veículos – métodos que não seriam impedidos por nenhum muro na fronteira com o México. 

Os bilhões de dólares em heroína, cocaína, metanfetamina e maconha atravessaram para os Estados Unidos por túneis elaborados, incluindo um construído sob a fronteira dos EUA com o México, que começou a ser escavado debaixo de uma mesa de bilhar de uma propriedade, segunso os associados de Guzmán. As drogas eram escondidas em caminhões e trens, em meio a galões de óleo de cozinha e escondidos em pequenas latas de pimenta, passando pelos pontos de entrada oficiais. Algumas chegaram aos Estados Unidos através de navios de contêiner que atracavam nos portos do Pacífico. Tudo isso foi destinado à venda em cidades e vilarejos em toda a América. 

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Uma das casas do cartel, de acordo com os promotores do caso, tinha uma vista para a ponte do Brooklyn. Como as drogas do cartel fluíam pelos Estados Unidos, os promotores federais conseguiram processar Guzmán em vários lugares e escolheram levá-lo a julgamento no Brooklyn. 

Guzmán está sob custódia desde 2016, quando as forças de segurança mexicanas o capturaram após um tiroteio mortal. No ano anterior, ele havia escapado de uma prisão por um túnel de quase um quilômetro de comprimento, cavado sob o chuveiro em sua cela. 

Sua prisão encerrou uma surpreendente saga que, segundo as autoridades, envolve um império das drogas, funcionários públicos corruptos, inúmeros assassinatos e um foragido visitando celebridades. 

O processo foi cheio de drama: a amante de Guzmán chorou ao prestar depoimento, sua esposa combinou roupas com ele no tribunal, e o homem que gerenciava as redes de computadores do cartel traiu seu antigo chefe em depoimentos públicos. 

A ponte do Brooklyn foi fechada em todas as manhãs do julgamento para que Guzmán pudesse ser transportado com segurança de uma prisão em Manhattan para o tribunal no centro de Brooklyn. O ator que interpreta El Chapo na série Netflix "Narcos: Mexico" foi às audiências para observar o caso. Lá, como os outros presentes, ele ouviu histórias de fuga, assassinatos, AK-47 banhados a ouro e lavagem de dinheiro tão elaborados e descarados que soam mais como uma trama de filme do que a vida real. 

Montanha de evidências

Os promotores citaram "uma montanha de evidências" nos argumentos finais da audiência de quarta-feira, a pedra angular de um julgamento de 12 semanas que incluiu 14 testemunhas e 1 milhão de mensagens interceptadas entre membros de seu cartel. 

O objetivo do cartel, disse Andrea Goldbarg, advogada assistente dos EUA, era distribuir o maior volume de drogas possível em todos os Estados Unidos e coletar bilhões de dólares em lucros. El Chapo é acusado de tráfico de drogas, lavagem de dinheiro e conspiração para cometer assassinato. Ele enfrentará prisão perpétua se for condenado. 

Goldbarg começou sua discussão final descrevendo uma cena em que El Chapo estava na frente de dois homens que jaziam perto de uma fogueira, "espancados quase até a morte, mas ainda respirando", disse ela. Os homens haviam "enfurecido" El Chapo por trabalhar com um cartel rival. Ele os amaldiçoou, atirou neles e então instruiu seus capangas a jogarem seus corpos no fogo. 

Naquele momento, ela passou a descrever como, em mais de 25 anos, El Chapo se tornou o líder de um cartel de drogas enormemente lucrativo e igualmente brutal. 

Ele andava em um carro blindado, construiu um exército para lutar contra seus rivais e inimigos e grampeou sua família e seus sócios próximos, incluindo sua esposa e muitas amantes. 

Emma Coronel Aispuro, esposa de Joaquin 'El Chapo' Guzman, chegando no tribunal distrital dos EUA em Nova York, em 31 de janeiro de 2019Drew Angerer/AFP

Mas a paranoia de Guzmán ajudaria em sua ruína, disse Goldbarg. O técnico de TI do cartel, Christian Rodriguez, que montou o sistema de espionagem de El Chapo para monitorar seus associados, acabou entregando o sistema ao FBI. Depois que Guzmán soube que Rodriguez estava cooperando com as autoridades dos EUA, Goldbarg disse que ele ordenou que seus sócios encontrassem e matassem Rodriguez, que finalmente testemunhou no tribunal. 

"Felizmente ninguém sabia seu sobrenome e nunca o encontraram", disse Goldbarg sobre Rodriguez. Os sócios de Guzmán procuraram por ele no Google e no Facebook, mas sem sucesso, ela disse aos jurados. 

A própria voz de Guzmán - descrita como anasalada - frequentemente era usada contra ele no julgamento. Os promotores apresentaram ligações telefônicas gravadas entre Guzmán e seus associados discutindo remessas de drogas e esquemas de suborno. 

Goldbarg disse aos jurados que El Chapo, famoso por suas ousadas fugas, deveria finalmente ser obrigado a enfrentar seus crimes. 

"Por que o réu não quis ser pego? Eu submeto que é porque ele sabia que ele era culpado", disse ela. "Ele está sentado bem ali. Não deixe que ele escape da responsabilidade. Mantenha-o responsável por seus crimes. Encontre-o culpado em todos os aspectos”. 

Advogados de defesa criticaram o caso do governo e suas testemunhas, comparando-os com "seres humanos da sarjeta", e argumentaram que Guzmán é um bode expiatório. O advogado do réu, Jeffrey Lichtman, disse aos jurados que as testemunhas estão mentindo para se salvar. 

"São os cooperadores que deram a vida a este caso, que lhe deu fôlego", disse Lichtman, implorando aos jurados para dispensarem seus testemunhos. "Essas testemunhas disseram mentiras todos os dias de suas vidas - suas vidas miseráveis e egoístas", disse ele. Chamando os cooperadores de "escória" e "animais", Lichtman disse que eles estavam esperando "acordos vantajosos" e redução das sentenças por seus próprios crimes para que eles possam "viver entre vocês". 

"Eles atropelariam as mães deles para condenar aquele homem", disse Lichtman, referindo-se ao seu cliente. 

Avareza e derramamento de sangue

No tribunal e nos processos judiciais, os promotores detalharam a ascensão de Guzmán ao poder como uma história de avareza e derramamento de sangue que cruzou fronteiras e se baseou em "força brutal e intimidação". 

Sua habilidade em transportar drogas rapidamente para os Estados Unidos e obter recursos para os cartéis colombianos nos anos 1980 lhe valeu outro apelido - "El Rapido" - bem como mais dinheiro e poder. À medida que seu cartel crescia, ele enviava drogas para vários países e procurava corromper as autoridades em todos os "níveis" do governo mexicano, disseram promotores federais. 

Um dos ex-associados de Guzmán declarou que El Chapo se gabou de subornar o ex-presidente mexicano Enrique Pena Nieto com US$ 100 milhões, uma alegação que não foi provada e que o porta-voz de Peña Nieto chamou de "falsa e difamatória". 

O cartel de Sinaloa - assim chamado por sua base ao longo da costa montanhosa do México, no Golfo da Califórnia - cresceu e se tornou o que os promotores chamaram de "a maior e mais prolífica organização de tráfico de drogas do mundo". Guzmán e outros líderes do cartel "empregaram sicários", matadores, que realizaram centenas de atos de violência, incluindo assassinatos, assaltos, sequestros e atos de tortura" ao seu mando, escreveram os promotores em uma denúncia de 2016. 

A lenda do submundo de Guzmán inclui duas prisões seguidas por duas fugas descaradas. Ele foi capturado na Guatemala em 1993 e, em seguida, supostamente expandiu sua operação de drogas mesmo estando atrás das grades de uma prisão de segurança máxima no México. Em 2001, ele escapou para evitar a extradição para os Estados Unidos; A história conta que ele se escondeu em um carrinho de lavanderia, auxiliado por funcionários da prisão. 

El Chapo foi preso novamente em 2014 e mais uma vez ele fugiu, desta vez escapando por um túnel que levava para fora da prisão. Foi recapturado em janeiro de 2016 pelas forças de segurança mexicanas. Um ano depois, ele foi extraditado para os Estados Unidos no que uma autoridade mexicana descreveu na época como um "presente de despedida" para o presidente Barack Obama antes de ele deixar o cargo. 

Durante os anos em que esteve foragido, Guzmán procurou abrigo atrás de guardas armados e tentou esconder suas comunicações da lei. Seu cartel efetivamente tinha um exército disponível, dizem os promotores, e os sicários de Guzmán repetidamente desencadearam violências brutais às suas ordens. 

"Guzmán não conheceu outra vida além de uma vida de crime e violência", disseram os promotores depois que ele foi extraditado para os Estados Unidos. 

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Durante o julgamento, os promotores puseram em evidência que eles emolduravam como expondo o coração pulsante da operação de Guzmán. 

"O público norte-americano deveria ter recebido uma educação tremenda se prestasse atenção ao julgamento de Chapo Guzmán, porque ele fornece uma visão aprofundada das formas como esses cartéis operam", disse Mike Vigil, ex-chefe de operações internacionais do Departamento Antidroga (DEA), que passou 13 anos trabalhando no México e ao longo da fronteira. 

O julgamento também ofereceu um passeio pelo que Guzmán construiu, disse Vigil: "Ele criou uma organização transnacional que rivaliza com qualquer grande corporação". 

Aqueles que testemunharam falaram detalhes dessa organização, alegando que ela lavava dinheiro através de inúmeros países, pagava subornos maciços, era especializados na construção de túneis para fuga e contrabando, e possuíam numerosas granadas propelidas por foguetes. Havia também uma dose saudável de ciúmes e traição, que geralmente terminava em assassinato. 

"Você tem muitos indivíduos que trabalharam com Chapo Guzmán, seja como fornecedores de suprimentos ou pessoas que trabalharam diretamente com Chapo Guzmán no cartel de Sinaloa", disse Vigil. "E todos eles estão dizendo a mesma coisa sobre a violência, as coisas que eles fizeram em termos de lutar contra o governo, lutando contra outros cartéis... Os detalhes da violência são muito impressionantes". 

O julgamento também deu às pessoas a percepção sobre o modo de vida de Guzmán, disse Vigil. 

"Ele começou a... cometer muitos erros", disse Vigil. "E esses erros lidaram com as mulheres." 

Revelação

Uma reunião com o ator Sean Penn e a atriz Kate del Castillo - arranjada por del Castillo, que aparentemente chamou a atenção do infame chefe das drogas - ajudou a levar as autoridades a Guzmán. Uma das muitas amantes de Guzmán testemunhou no julgamento, e sua esposa de 29 anos de idade era uma das presenças no tribunal. 

Sanford Coats, ex-advogada dos EUA que agora trabalha em escritório privado na cidade de Oklahoma, disse que o julgamento fornece informações sobre coisas que a polícia provavelmente sabia há anos, mas não que haviam sido reveladas publicamente: "Não posso pensar em outro chefe do tráfico neste nível no país há muito tempo". 

O nível de penetração na vida e nas operações de Guzmán - incluindo fotos, depoimentos de testemunhas e mensagens de texto privadas - foi impressionante, disse John A. Horn, ex-advogado dos EUA e que atualmente trabalha em um escritório particular. 

"Pode ter havido algumas pessoas esperando uma enxurrada de histórias das testemunhas de cooperação, o que realmente ocorreu", disse Horn, promotor federal de longa data que lidou com casos de cartéis mexicanos. "Mas outras evidências, mais tradicionais, as escutas telefônicas, as chamadas gravados, a corroboração, o nível de corroboração... apenas vendo a atividade do dia-a-dia que eles foram capazes de capturar era, eu acho, realmente notável". 

A prisão de Guzmán não significa que o cartel de Sinaloa tenha sofrido um grande golpe; na verdade, continua a prosperar em sua ausência, disse Bruce Bagley, professor de estudos internacionais da Universidade de Miami que pesquisa cartéis de drogas. Sinaloa, segundo ele, é mais um modelo em que o poder é descentralizado. É, segundo ele, a melhor maneira de organizar um cartel de drogas. 

"Você não pode cortar a cabeça", disse ele. "A descentralização torna difícil rastrear, capturar e prender todos os tentáculos, e há muito dinheiro fluindo pela organização”. 

Mas é incomum e impressionante, disse Horn, que uma figura de alto nível tenha sido presa e que as operações do cartel de Sinaloa tenham sido reveladas. 

Em muitos casos, ele explicou, há materiais de investigações que o público não fica sabendo porque o alvo se declara culpado. E os líderes do cartel raramente enfrentam julgamento, momento em que as informações sobre as operações do cartel se tornam públicas. 

"Ter essa imagem completa é algo muito raro", disse Horn.

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