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Yoni Iriarte, um ativista da oposição, diz que ter o título de sua casa o fará votar de maneira independente | MERIDITH KOHUT/NYT
Yoni Iriarte, um ativista da oposição, diz que ter o título de sua casa o fará votar de maneira independente| Foto: MERIDITH KOHUT/NYT

Vinte mil pessoas vivem neste bastião de concreto construído pelo ex-presidente Hugo Chávez. Ele deu as casas e os moradores deram os votos. Contudo, Chávez fez uma promessa que nunca cumpriu de fato: os títulos de propriedade que permitiram que seus apoiadores vendessem as casas e ganhassem dinheiro.

Mas agora que os velhos adversários de Chávez tomaram conta do Parlamento da Venezuela, estão adotando sua tática e dando um passo além. Eles querem transferir os títulos de propriedade de centenas de milhares de casas construídas por Chávez e seu movimento – ganhando assim a lealdade dos pobres do país pelos próximos anos.

Essa transferência é tão grande quanto qualquer ação socialista orquestrada por Chávez, mas vem com uma pegadinha. Durante anos, a oposição reclamou da tendência de Chávez de utilizar a fortuna ganha pela Venezuela como o petróleo para dar casas aos pobres, afirmando que essa era uma ação que tinha o objetivo óbvio de comprar votos.

Agora, os novos líderes estão recorrendo às mesmas medidas populistas que passaram a vida criticando, um sinal de que a estratégia de ganhar a confiança dos eleitores às custas do dinheiro saído dos cofres públicos não acabou.

Um soldado levanta o filho para que ele olhe pela janela em um conjunto habitacional de Ciudad TiunaMERIDITH KOHUT/NYT

“A oposição está tentando imitar os aspectos populares do Chavismo”, afirmou Francisco Rodríguez, economista do Bank of America Merrill Lynch, referindo-se ao movimento político liderado por Chávez.

Depois de assumir a liderança da Assembleia Nacional pela primeira vez em 16 anos, a oposição foi rápida em tirar os retratos de líder do capitólio nacional, escrevendo em seguida uma proposta de libertação dos políticos presos pelo governo, além de ameaçar derrubar o presidente Nicolás Maduro, leal sucessor de Chávez.

Contudo, a desastrosa economia do país ajuda a aumentar a pressão para que os legisladores tomem medidas populares. O Fundo Monetário Internacional espera uma inflação de 720% ao ano na Venezuela, e a falta crônica de alimentos cria filas quilométricas nos mercados. O preço do petróleo, fundamental para a economia do país, despencou nos últimos meses. Com Maduro na presidência, o legislativo não tem controle sobre as políticas econômicas.

Assim, os legisladores voltaram a atenção para as centenas de milhares de casas que Chávez e seus seguidores construíram.

A questão de quem controla os títulos das casas vai muito além de uma simples distribuição. Chávez, que morreu de câncer em 2013, transformou os dólares do petróleo em concreto, criando um experimento que tirou o pobres da Venezuela das favelas e os colocou em arranha-céus. Maduro seguiu os passos de seu antecessor, mas até os governos anteriores ao de Chávez já tinham o hábito de conquistar votos com a oferta de casas.

Imagem de Hugo Chávez no muro de um conjunto habitacional no bairro de Bellas Artes, em Caracas MERIDITH KOHUT/NYT

“Isso levanta a questão de qual modelo econômico deve ser seguido pela Venezuela”, afirmou David Smilde, sociólogo da Universidade de Tulane que vive em Caracas, a capital do país. “Os pobres devem ter o poder de decidir sobre o que fazer com suas propriedades, ou é o governo que deve tomar essas decisões?”

Julio Borges, o político responsável pelo projeto de lei, argumenta que as casas darão capital para os pobres pela primeira vez, o que ajudará a Venezuela a sair da crise e permitirá que eles determinem seus destinos de agora em diante. “As pessoas têm sido tratadas como se fossem crianças. Com essa lei, você pode vender sua casa, ou deixá-la de herança. Agora isso é impossível.”

Os apoiadores de Maduro veem qualquer proposta de transferência dos títulos de propriedade como um golpe, uma tentativa óbvia de roubar o crédito da construção de milhares de moradias públicas. “Demos moradias dignas às pessoas. Julio Borges e a oposição nunca construíram uma única casa”, afirmou Darío Vivas, legislador do Partido Socialista Unido, de Maduro.

Vivas argumentou que o governo já havia cumprido a promessa de transferir os títulos de propriedade, uma posição igualmente defendida pelos políticos de esquerda. Contudo muitos especialistas afirmam que, se o governo alguma vez transferiu os títulos, isso ocorreu em poucos casos, o que significa que a maioria das pessoas não é dona de suas casas.

Em um discurso aguerrido realizado para a câmara dos legisladores, Maduro jurou que faria de tudo para impedir as medidas de seus oponentes. “Vocês terão de me derrubar antes de aprovar qualquer lei de privatização”, afirmou sob o aplauso dos políticos de esquerda.

Aqui em Ciudad Miranda, a cerca de uma hora de Caracas, Coromoto Carmona, desempregada de 40 anos, olhava pelas grades da janela. Ela contou como conseguiu a casa e como agora se sente presa a ela.

Coromoto perdeu sua primeira casa em um deslizamento em 1999 e passou cinco anos morando em diversos abrigos construídos pelo governo. Em 2004, recebeu uma ligação emocionante do governo: ela iria participar de um evento na mansão presidencial de Chávez, La Casona, onde ele iria pessoalmente dar uma casa a ela.

Prédios e favelas em Caracas, na Venezuela, país que aplicou parte do dinheiro conquistado com o petróleo em projetos habitacionais MERIDITH KOHUT/NYT

Ela se mudou para a casa de dois quartos com nove parentes. Mas os problemas não demoraram a aparecer. Coromoto percebeu que não havia mercados por perto, além de poucas escolas e poucos espaços públicos para os habitantes. Atualmente, a água chega ao apartamento por poucas horas a cada semana.

O governo de Chávez havia prometido o título de propriedade da casa, mas ela recebeu apenas um documento plastificado dizendo que tinha a permissão de viver no local. Caso saia do apartamento, não sabe dizer se terá outro lugar para viver. “Isso é como uma prisão”, afirmou ela.

Franco Micucci, arquiteto que trabalha em Ciudad Miranda, disse que os problemas sociais daqui não são exclusivos e que são um desafio tão grande para os novos líderes da Venezuela quanto eram para o governo de Chávez. Afirmou também que ele e seus colegas haviam originalmente feito planos para espaços públicos e serviços como escolas e supermercados para os habitantes de Ciudad Miranda. Contudo, o governo construiu apenas as casas.

“Não me surpreende que os moradores queiram sair deste lugar. Eu e muitos arquitetos fomos otimistas”, mas no fim das contas “Ciudad Miranda é como a Cidade de Deus”, acrescentou, referindo-se ao filme brasileiro sobre a favela tomada pelo tráfico no Rio de Janeiro.

Os habitantes de Ciudad Miranda afirmam que agora a área é controlada por gangues armadas, conhecidas no local como “colectivos”, que são alinhadas ao partido de Maduro. Apesar de ter perdido a maioria no legislativo, o presidente ganhou em Ciudad Miranda.

Prédio de moradias públicas em Bellas Artes, bairro da capital Caracas MERIDITH KOHUT/NYT

Marquesa Alcendra, de 68 anos, quer vender. Depois de perder a casa em um deslizamento e passar anos entre diversos abrigos temporários – inclusive vivendo por algum tempo em um arranha-céu abandonado conhecido como a Torre de Davi, que se converteu em uma favela vertical – ela recebeu uma casa em Ciudad Tiuna, um projeto habitacional criado por Chávez em uma enorme base militar de Caracas.

À primeira vista, os prédios parecem idílicos: torres novas com apartamentos de dois quartos, elevadores e áreas comuns. Do lado de fora, os moradores jogavam bola com um grupo de trabalhadores da construção civil vindos da China para erguer mais um bloco de prédios.

Ainda assim, Marquesa afirma que o único lugar onde é possível comprar comida é no mercado negro, onde os produtos básicos são vendidos a preços muito mais altos do que os controlados pelo governo. Ela cobriu as janelas como tábuas, temendo ladrões. E apesar dos soldados da base guardarem a entrada do complexo, ela afirmou temer justamente seus vizinhos. “Minha vida era melhor antes”, completou.

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