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Durante grande parte do século 20, a Rússia foi um Estado revolucionário cujo objetivo era a disseminação global da ideologia comunista. Já no século 21, ela transformou-se no mais proeminente poder contrarrevolucionário.

A escalada do conflito entre o Ocidente e Moscou é apresentada como uma questão política, militar e econômica. Na verdade, é algo mais profundo. É cultural. O presidente Vladimir Putin diz ser o guardião contra aquilo que a Rússia enxerga como uma cultura ocidental predatória e relativista.

Ouvir intelectuais russos pró-Putin é se submeter a uma ladainha de queixas contra o “revolucionário” Ocidente, com sua adesão irreligiosa ao casamento gay, ao feminismo radical, à eutanásia, à homossexualidade e a outras manifestações da “decadência”.

Segundo eles, o Ocidente pretende globalizar valores “subversivos”, muitas vezes sob o disfarce da promoção da democracia e dos direitos humanos.

A Rússia de Putin, por outro lado, é retratada por eles como um baluarte contra o abandono dos valores religiosos e também como nação cada vez mais devota ao cristianismo ortodoxo —um país convencido de que nenhuma civilização sobrevive “relativizando” verdades sagradas.

Mais do que a anexação da Crimeia por Putin ou o fato de ele ter estimulado uma guerra no leste da Ucrânia, o que indica que o confronto com a Rússia irá durar décadas é a decisão de Putin de desafiar culturalmente o Ocidente. O comunismo era uma ideologia global. O putinismo é menos do que isso. Porém, uma batalha de ideias começou, e nela a contrarrevolução contra o Ocidente ímpio e aliciante é uma pedra angular da ideologia russa.

Até certo ponto, o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, partilha da opinião de Putin sobre o Ocidente. A China, por sua vez, vê utilidade nesse pensamento.

Foi-se a ilusão do pós-Guerra Fria de uma convergência benigna pela interdependência. Algo fundamental mudou, e isso vai muito além da disputa territorial. Putin decidiu definir seu poder pelo conflito com o Ocidente. A única pergunta é se ele tem em mente um conflito total ou limitado.

A decisão russa tem implicações estratégicas que o Ocidente mal começou a digerir. Putin está atualmente mais interessado na Organização para a Cooperação de Xangai, cujo núcleo é composto por China e Rússia, do que na cooperação com o G8 (do qual a Rússia foi suspensa) ou com a União Europeia.

A China, até certo ponto, retribui esse interesse, porque uma Rússia hostil ao Ocidente é útil na defesa do seu próprio modelo político autoritário e porque ela vê oportunidades econômicas na Rússia e nos antigos países soviéticos da Ásia Central. Mas o feroz ímpeto modernizador chinês não pode ser concretizado com uma Rússia retrógrada. Há limites claros para a atual reaproximação sino-russa.

Como comentou um alto funcionário europeu que participava de uma conferência organizada pelo Centro Weatherhead de Assuntos Internacionais, da Universidade Harvard, a Rússia representa um “desafio do perdedor” para o Ocidente, porque ela desistiu da modernização e da globalização, ao passo que a China constituiu potencialmente um “desafio do vencedor”, porque está apostando tudo numa tecnologia moderna e altamente tecnológica.

Claro que, sendo irracionais e quixotescos, os desafios feitos pelos derrotados são particularmente perigosos. Putin engoliu um pedaço da Ucrânia depois de tentar selar um acordo comercial com a União Europeia. Ele diz que está somando 40 mísseis balísticos intercontinentais ao arsenal russo. Ele aumentou os voos de bombardeiros com capacidade nuclear. A mensagem é clara: estamos nos inclinando pelas armas nucleares.

Como o Ocidente deve reagir? Ele não pode alterar a atração que o resto do mundo sente por seus valores —basta ver as hordas de pessoas que morrem tentando entrar na União Europeia (e os russos ricos que também afluem ao Ocidente em busca do Estado de direito). Por isso, o que a Rússia enxerga como “subversão” ocidental vai —e precisa— continuar.

O Ocidente deve proteger o direito dos povos nas terras que ficam entre o Leste e o Oeste. Os cidadãos de Ucrânia, Moldávia, Armênia, Geórgia e outros Estados têm o direito de alcançar a prosperidade ocidental por meio de instituições ocidentais, se assim desejarem. A Polônia e os Estados bálticos, agora protegidos pela Otan, inevitavelmente funcionam como ímãs para eles.

Essa nova proteção deve se basear nas políticas que guiaram a proteção da Alemanha durante a Guerra Fria: firmeza aliada ao diálogo. O Ocidente, nas palavras de Tomasz Siemoniak, ministro polonês da Defesa, está sendo “excessivo” em sua cautela.

Já é alguma coisa realizar exercícios da Otan na Letônia, criar uma nova força de reação rápida da aliança, com 5.000 soldados para servirem como “ponta de lança”, e deslocar 250 tanques e outros equipamentos para bases temporárias em seis países do Leste Europeu.

No entanto, para mandar uma mensagem a Putin, é necessário mobilizar armas pesadas na região, de forma permanente e em volume significativo, além de ampliar o gasto europeu em defesa e assumir um claro compromisso de manter sanções enquanto a Ucrânia não for reconstituída integralmente, com controle total sobre suas fronteiras.

No fim das contas, as próprias ideias e instituições ocidentais que Putin despreza serão a maior força do Ocidente para o longo combate à contrarrevolução russa que se prenuncia.

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