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Pessoas participam da janta Iftar, a refeição que tradicionalmente encerra o jejum diário dos muçulmanos, na praça Taksim, em Istanbul | Kostas Tsironis/Bloomberg
Pessoas participam da janta Iftar, a refeição que tradicionalmente encerra o jejum diário dos muçulmanos, na praça Taksim, em Istanbul| Foto: Kostas Tsironis/Bloomberg

É o Ramadã, mês sagrado para os muçulmanos, mas os fumantes se amontoam fora dos escritórios, casais bebem cerveja e, desde as varandas, prostitutas chamam os jovens. 

O contraste com alguns países árabes que punem pessoas por romper o jejum de comida e bebida do amanhecer ao anoitecer não poderia ser mais impressionante na praça central da cidade, conhecida como Taksim. E apoiadores desta forma de viver dos turcos querem mantê-la assim. 

Choque entre culturas

A colisão entre a Turquia secular e a Turquia Islâmica não é uma novidade. Sob a liderança de 16 anos do presidente Recep Tayyip Erdogan, o Islã tem assumido um papel mais relevante no país, ficando mais próxima de suas raízes religiosas com o Oriente Médio e mais distante do Estado secular, no modelo Europeu, criado há quase um século. 

Mas o choque entre essas duas Turquias está sendo sobreposto por um crescente confronto entre autoritarismo e democracia, com os adeptos do Estado secular sentindo que sua cultura está cada vez mais em risco. 

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Erdogan, que revogou a proibição de que mulheres muçulmanas cobrissem a cabeça, retirou a teoria da evolução dos livros escolares e proibiu a propaganda do álcool, está procurando reforçar seu poder no país, que tem eleições marcadas para o dia 24. Milhares de opositores foram presos. 

“Eu sei que irei olhar para trás e verei o dia de hoje com nostalgia”, disse a funcionária pública Efsun, que preferiu não dizer o seu sobrenome. “Sou muçulmana, mas como e bebo álcool durante o Ramadã”, disse ela, após almoçar uma berinjela recheada com carne e arroz com creme de caramelo. “Muitas das regras islâmicas faziam sentido nos desertos árabes há séculos atrás, mas não são aplicáveis hoje em dia.” 

Disputa política vinculada à economia

A disputa política dos próximos dias estará fortemente vinculada à economia, após a lira turca perder 16% de seu valor frente ao dólar neste ano. O país também enfrenta a inflação e um crescente déficit em conta corrente. A preocupação iminente para alguns é a promessa de Erdogan criar uma geração mais piedosa. 

Muitas pesquisas mostram Erdogan bem distante de seus rivais na corrida presidencial, embora esteja distante dos 50% necessários para uma vitória no primeiro turno. Uma ampla coalização está concorrendo contra o partido de Erdogan nas eleições parlamentares, incluindo líderes islâmicos que dizem que o presidente traiu os seus princípios ao envolver-se em casos de corrupção. 

Distância em relação ao Oriente Médio

O secularismo tem mantido a Turquia distante de seus vizinhos do Leste. Sob a Constituição, os parlamentares e o presidente tem de defender os princípios e as reformas estabelecidas por Mustafa Kemal Ataturk. Ele fundou o estado secular, abandonou o alfabeto árabe e garantiu o direito de voto às mulheres, antes mesmo de países como a França e a Itália. 

Dentro do Grande Bazar de Istanbul, um dos centros de comércio mais antigos do mundo, o vendedor de tapetes Cemal Aydin diz que é vital a Turquia defender sua tradição. Ele jejua durante o Ramadã, mas bebe álcool no resto do ano. 

Aydin disse que votará nos adversários de Erdogan, porque o presidente ignorou aqueles que não o elegeram. “Respeito a população mais religiosa, mas eles não me respeitam e é por isso que vou enviar esta mensagem a eles.” 

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“Meu voto será baseado no estilo de vida que desejo manter – a cultura de Ataturk”, disse. “Erdogan está esquecendo-se de uma coisa: somos turcos, não somos árabes. Ele não pode transformar este país em uma república islâmica.” 

Uma caminhada em algumas áreas de Istambul, com sua história romana, bizantina e otomana, sinaliza que isto não está acontecendo com a rapidez que muitos críticos atribuem. 

Lojas com forte apelo erótico, proibidas no mundo árabe, são claramente sinalizadas com luzes vermelhas piscantes, No mínimo, metade dos clientes são árabes, principalmente da Arábia Saudita e de países do Golfo, de acordo com comerciantes de duas lojas. A prostituição é legalizada e regulada pelo governo. Durante o Ramadã, alguns restaurantes localizados em áreas mais conservadores fecham as portas devido à baixa movimentação ou em respeito às tradições culturais, não porque são forçadas pela lei. 

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Na Jordânia, um país árabe relativamente mais liberal do que os do Golfo, o ministério do Interior determinou que os restaurantes fechassem de dia e as lojas de bebidas durante todo o mês. Aqueles que forem pegos comendo e bebendo em público são punidos. 

A implementação otomana das leis islâmicas foi diferente, diz Ozgur Unluhisarcikli, gerente do escritório de Ancara do German Marshall Fund, um think tank. A Turquia tem quase um século de secularismo, está direcionada para a Europa e é integrante da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). 

Erosão do secularismo

“Quando se fala da erosão do secularismo na Turquia, estamos falando dentro dos padrões turcos”, disse Unluhisarcikli. “Não acredito que a Turquia se tornará similar a outros países muçulmanos do Oriente Médio”. 

Erdogan e seu partido, o AK, que surgiu a partir do movimento político islâmico, chegaram ao poder em 2002, na onda de uma crise financeira que levou as pessoas às ruas. Seu governo derrubou as leis que impediam que mulheres que seguissem as tradições muçulmanas – que cobrissem a cabeça – de assistir aulas nas universidades, trabalharem como funcionárias públicas ou como militares. 

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Também houve mudanças na educação, com a proliferação de escolas religiosas. Havia 1,3 milhão de estudantes matriculados em 2017, contra 71 mil quando Erdogan chegou ao poder. Muitos formandos lutam para entrar na universidade e em áreas científicas, diz Ilter Turan, professor emérito de ciência política da universidade Bilgi, em Istanbul. 

O Ministério da Educação retirou a teoria da evolução do currículo escolar, disse ele. Isto compromete a capacidade de os estudantes turcos estarem de acordo com as exigências necessárias em uma era de mudanças tecnológicas, diz o professor emérito. Ele complementa, afirmando:

Ter uma educação que coloca a submissão e a conformidade em seu centro é altamente questionável,

O vice-presidente do partido AK, Mustafa Atas, diz que os secularistas tem espalhado todo tipo de mentiras desde que Erdogan chegou ao poder, como a proibição de que ônibus possam ser usados simultaneamente por homens e mulheres e que as mulheres que não estiverem com a cabeça coberta seriam expulsas dos trens. 

“Pelo amor de Deus, qual dessas coisas tornou-se realidade?”, disse Atas. Segundo ele, seu partido não discriminou ninguém por causa da crença. “Não se tratou mal a ninguém que não seja partidário do AK”, disse. 

Ebubekir Ozturk, um partidário de Erdogan e engenheiro mecânico na indústria têxtil, diz que turcos devotos foram oprimidos durante anos pelos secularistas, especialmente com a proibição de as mulheres cobrirem a sua cabeça. “Agora temos um governo conservador, mas não há restrições.” 

Divisão na população

Conversar com turcos no liberal bairro financeiro de Levent e na vizinhança conservadora de Fatih Carsamba mostra o quanto a Turquia está dividida em relação à religião. 

Fora da mesquita Fatih, com sua cúpula azulada, muitas mulheres andam com a cabeça coberta e poucas caminhavam com capas pretas, seguindo o estilo saudita. 

Usando um turbante e vestido com uma túnica escura até os joelhos, seguindo um padrão dos muçulmanos devotos, o jovem Omer Serhat Adiguzel disse que gostaria que o governo turco adotasse a sharia, a lei islâmica. Ele gostaria que fosse implantada uma legislação que forçasse os restaurantes a permanecer fechados até o Iftar, a refeição que os muçulmanos comem para acabar com o jejum do Ramadã. “No Império Otomano havia poucos roubos e estupros devido a sharia”, diz ele. 

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Mas, 13 quilômetros ao Norte, o engenheiro da computação Ugur bebe cerveja na varanda de um bar, olhando para uma rua movimentada no bairro financeiro. Poucas mulheres estão cobertas. Algumas vestem shorts curtos. Casais abraçados passam pela rua. 

Ugur disse que nunca iria a Faith, especialmente à noite. “Nós vivemos em bolhas. Eu odeio viver fora da minha”, disse ele, que não revelou seu sobrenome por ser um crítico do governo de Erdogan. “O país nunca esteve tão divido.”

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