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A presidente da Comissão Europeia, Ursula von Der Leyen, abraça a vice-presidente executiva da Comissão Europeia para uma Europa adequada à era digital, Margrethe Vestager (à esquerda), no início de uma reunião extraordinária sobre a agressão russa contra a Ucrânia no Parlamento Europeu em Bruxelas, Bélgica, 1 de março de 2022: a Guerra na Ucrânia aproximou a Europa. A união será duradoura?
A presidente da Comissão Europeia, Ursula von Der Leyen, abraça a vice-presidente executiva da Comissão Europeia para uma Europa adequada à era digital, Margrethe Vestager (à esquerda), no início de uma reunião extraordinária sobre a agressão russa contra a Ucrânia no Parlamento Europeu em Bruxelas, Bélgica, 1 de março de 2022: a Guerra na Ucrânia aproximou a Europa. A união será duradoura?| Foto: EFE/EPA/STEPHANIE LECOCQ

Desde que a Rússia lançou sua ofensiva contra a Ucrânia no dia 24 de fevereiro, a Europa se viu na curiosa posição de sentir-se, ao mesmo tempo, ameaçada e fortalecida. A invasão, é claro, gerou preocupações de que o conflito pudesse se alastrar para outros países europeus além de causar mais transtornos à economia do continente. Putin deixou a situação ainda pior quando ordenou que as forças nucleares de seu país fossem colocadas em alerta máximo poucos dias após o início do conflito. Embora a situação tenha sido e continue sendo temerária, a guerra parecia trazer ao menos uma boa notícia: a união dos países europeus após alguns anos de desgastes e conflitos internos.

O símbolo máximo deste desgaste interno havia sido a decisão tomada pelo Reino Unido de sair da União Europeia, mas não parou por aí. O futuro da OTAN também foi colocado em questionamento após Donald Trump chegar ao poder nos EUA em 2017. Para o então presidente americano, os EUA deveriam se afastar da agenda de cooperação multilateral e dar prioridade à posição de “America First”. Ao mesmo tempo, Trump também criticava diversos países europeus por não cumprirem a meta de investimento mínimo na organização (2% do PIB). Segundo relatório de 2021, apenas sete dos trinta Estados-membros investem ao menos 2% de seu PIB no orçamento de defesa da OTAN (são eles Grécia, EUA, Polônia, Reino Unido, Croácia, Estônia, Letônia e Lituânia).

Embora esta política americana fosse vista com maus olhos e criticada por ser isolacionista e nacionalista, a própria recusa dos europeus de investir o mínimo necessário em defesa demonstrava um desinteresse frente ao futuro da instituição. Emmanuel Macron, que sempre defendera o fortalecimento dos poderes da União Europeia, por sua vez, tampouco parecia muito comprometido com a OTAN, afirmando que ela sofria de “morte cerebral” em 2019. É certo que o presidente francês não criticava a OTAN pelos mesmos motivos que Trump. Seu objetivo, ao contrário, era a criação de um exército europeu que daria mais autonomia estratégica ao continente.

Ainda assim, o protagonismo dado por Macron à União Europeia não mudou o fato de que ela estava dividida internamente. Na Europa ocidental, ainda prevaleciam os políticos favoráveis ao bloco, mas os eurocéticos continuavam deixando os burocratas de Bruxelas – sede da UE – em estado de constante alerta. Se os ditos nacionalistas e populistas da Europa ocidental representavam um potencial de ameaça à coesão do organismo, em parte do Leste Europeu, por sua vez, eles já haviam alcançado o poder. Polônia e, principalmente a Hungria, são exemplos disto.

Tanto a OTAN quanto a União Europeia continuam existindo, mas conversas sobre “Frexit” e “Polexit” (saída da França e da Polônia, respectivamente, do bloco europeu) certamente não eram bons sinais de vitalidade das organizações. A guerra na Ucrânia, no entanto, pareceu renovar ambas as entidades, sobretudo a OTAN. O motivo para isto, no fundo, é muito simples: a Rússia é um gigante frente aos países europeus. Sua economia pode até ser menor que a da Alemanha, da França, do Reino Unido e mesmo da Itália. Seu poder, porém, reside em como ela utiliza seus ativos. Ao passo que a maior parte dos europeus abandonaram parte considerável do controle sobre o setor energético, tão importante para a soberania nacional, há anos a Rússia utiliza suas reservas de gás natural para abastecer seus vizinhos ocidentais de forma estratégica: permitindo que os países mantenham suas luzes acesas e indústrias funcionando, ao mesmo tempo em que restringe ações vigorosas contra a própria Rússia por medo de que o abastecimento seja cortado. Ademais, a Rússia tem quase o dobro de habitantes que o maior país europeu (145 milhões de cidadãos frente aos 83 milhões da Alemanha), além de ser uma potência nuclear.

Se a OTAN servia como escudo de proteção contra uma ameaça potencial da Rússia, ela passou a ser vista, principalmente por países do Leste e do Norte da Europa, como uma necessidade após a invasão à Ucrânia. Finlândia e Suécia são exemplos claros disso. Ambos os países foram militarmente neutros durante a Guerra Fria, mas estão prestes a abandonar sua antiga política de não-alinhamento ao pedir para entrar na OTAN — algo que não deve tardar a acontecer. Como escreve Timothy Marshall no livro 'Prisioneiros da Geografia', os países do Leste europeu conhecem uma verdade geográfica vital: “se você não está na OTAN, Moscou está próximo e Washington D.C. está distante”. A atual guerra só deu mais razão a esta frase.

Ao mesmo tempo que a invasão russa deixou toda a Europa em estado de alerta, no entanto, ela também trouxe como consequência algo que Putin talvez não tenha calculado: a revitalização da razão de ser da OTAN. Se antes a Europa estava dividida internamente e o Tratado do Atlântico Norte parecia sem propósito, agora passou a haver um motivo concreto e urgente para os diversos países europeus buscarem políticas comuns a fim de conter o ressurgimento da Rússia como ameaça militar. A questão a ser pensada é a seguinte: essa união é real ou apenas circunstancial? Assim que a guerra terminar, é possível esperar que a Europa permaneça unida ou as velhas rachaduras de antes deverão voltar a aparecer?

Um continente dividido entre globalismo e nacionalismo

A União Europeia, em muitos sentidos, é uma organização contraditória. Ao mesmo tempo que ela busca manter o continente unido e em paz, suas políticas cada vez mais centralizadas tem resultado, na prática, em um crescente conflito entre nações que buscam manter um maior grau de soberania e outras — incluindo a própria UE — que desejam concentrar mais poder no âmbito supranacional (uniões políticas multinacionais cujo poder é delegado pelos Estados-membros)

Esta queda de braço entre o poder local e o poder supranacional, por sua vez, permitiu que partidos políticos contrários à União Europeia tenham ganhado relevância por dar voz a um sentimento negligenciado — e até mesmo atacado — pelos partidos tradicionais. O caso mais claro de sucesso foi o UKIP (UK Independence Party, ou Partido de Independência do Reino Unido), que conseguiu pressionar o então Primeiro-Ministro britânico David Cameron a levar adiante o referendo que resultou no Brexit. Embora a saída da União Europeia tenha sido aprovada por voto direto da população, não faltaram acusações ao UKIP de ser radical, nacionalista, populista e até mesmo xenófobo.

Antes que isso acontecesse, entretanto, o acadêmico português João Carlos Espada já alertava para o crescente apelo dos movimentos políticos e populares eurocéticos. Em edição de 2014 do Journal of Democracy, ele chegou a concordar que muitos destes partidos eram de fato radicais, mas seu apelo crescia entre os eleitores não por causa do radicalismo, mas por serem os únicos que davam voz a um sentimento popular latente e legítimo:

“O motivo para o seu sucesso (partidos eurocéticos) reside menos na radicalização dos eleitores europeus do que naquilo que todos estes partidos têm em comum: darem voz a uma reinvindicação ignorada pelos partidos liberais-democráticos. Esta reinvindicação consiste no apelo para descentralizar mais poderes ao nível ‘local’ (o que significa, no contexto da União Europeia, ao nível nacional), e para devolver poderes para as mãos dos parlamentos nacionais.”

Por trás deste fenômeno está o fato de que a descentralização da política europeia é considerada um assunto ilegítimo por grande parte da classe política do continente. É comum que partidos políticos concordem a defendam as normas constitucionais de seus respectivos países (ou mesmo de uma organização supranacional como acontece na Europa). Mas respeitando este ordenamento jurídico, muitas discordâncias podem existir entre os representantes democraticamente eleitos. Desta forma, é legítimo e até benéfico que haja debate sobre questões como gastos públicos, privatização de empresas, políticas migratórias, desde que elas não interfiram no arranjo constitucional de determinada nação.

O problema na Europa é que a discussão sobre a descentralização dos poderes adquiridos pela União Europeia não é aceita como parte do debate legítimo da política. Ao contrário, tal assunto é frequentemente rejeitado de forma dogmática, como se fosse assunto constitucional inviolável e indiscutível. Assim, praticamente todos os partidos tradicionais da política europeia tem se ausentado e mesmo lutado para impedir este debate de acontecer, gerando um vácuo de representação que vem sendo preenchido apenas por partidos e políticos “outsiders” rapidamente acusados de ameaçar a estabilidade democrática do continente com seu populismo, radicalismo e nacionalismo. Ora, a marginalização de um debate legítimo e democrático em nome da própria democracia não é apenas uma incoerência, mas também uma violação aos princípios que tornam qualquer país livre. Ademais, este posicionamento também é perigoso como bem aponta Espada:

“Entregar a tais partidos políticos (eurocéticos) um assunto poderoso ao tratar a posição de ‘mais Europa’ (em contrapartida à defesa de mais autonomia aos estados-nação) como um princípio sacrossanto é um erro múltiplo: faz destes partidos mais fortes; semeia confusão ao permitir que preferências normais pela descentralização sejam identificadas com uma agenda iliberal; expõe qualquer um que exprima ligeiras tendências pela descentralização a suspeitas de ‘extremista’”.

Desta forma, o que se vê no continente europeu não é, necessariamente, uma radicalização de partidos e eleitores céticos quanto à União Europeia, mas a acusação de radicalismo por parte de grupos políticos que se negam a aceitar a discussão sobre mais autonomia ao estado-nação como algo legítimo. Na falta, portanto, de meios para debater este assunto sem sofrer rapidamente a pecha de radical, e sem que haja maneiras efetivas de reduzir o poder adquirido nas últimas décadas pela UE, resta à parcela considerável do eleitorado abraçar a marginalização imposta justamente pelos partidos tradicionais. Quanto mais assuntos são retirados da esfera do debate legítimo, mais limitada se torna a democracia, uma vez que as demandas outrora razoáveis passam a ser acusadas, com cada vez mais frequência, de serem radicais.

A União Europeia continua sendo defendida pela maior parte dos europeus. A sua taxa de aceitação permanece alta em países como Espanha, Portugal, Alemanha, Itália e mesmo algumas nações do leste europeu como a Polônia. Não há razão, portanto, em negar que as vozes eurocéticas sejam ouvidas, já que elas sequer constituem a maioria do eleitorado nos principais países do bloco. No entanto, ao adotar esta postura, os partidos tradicionais acabam, eles próprios, gerando um radicalismo que não tinha razão para existir e que corrói a Europa internamente.

União substancial ou circunstancial?

É preciso reconhecer que o propósito da OTAN e da União Europeia são diferentes. Enquanto a primeira organização é essencialmente militar, a segunda existe para fins de cooperação econômica e política. Os motivos que fazem uma prosperar ou naufragar, portanto, não necessariamente afetam a outra. Ainda assim, ambas só existem enquanto houver unidade entre os países que as compõem. Desta forma, uma maior união em torno da OTAN, causada neste momento pela guerra na Ucrânia, pode representar uma maior união entre todas as nações. Mesmo que a UE não forneça benefícios militares tão urgentes neste momento, ela representa um ponto de unidade entre países que não se viam tão claramente ameaçados desde o fim da Guerra Fria.

O problema para a Europa é que toda esta união é circunstancial. Passada a guerra, as mesmas rachaduras que vinham crescendo nos últimos anos devem voltar a aparecer. A guerra na Ucrânia, afinal, não resolveu nenhum dos problemas existentes no seio do continente, isto é, o conflito entre aqueles que desejam delegar mais poderes à União Europeia e entre os que preferem resgatar a autonomia de suas nações, bem como os atritos frequentes entre as constituições de cada país e as decisões supranacionais vindas de Bruxelas.

Se a falta de unidade europeia é, essencialmente, um problema interno, não há por que esperar que um elemento externo vá solucionar tal questão. A disputa entre o poder supranacional e o poder local existe no mundo todo. Na Europa, esta problemática é ainda mais presente, uma vez que a União Europeia exerce sua autoridade diretamente em cada um dos Estados-membros. Enquanto os governos locais e as entidades supranacionais não interferem uma na outra, os conflitos permanecem adormecidos. Conforme a poder internacional cresce, entrando em rota de colisão com a soberania nacional, no entanto, mais estes conflitos se fazem presentes.

A guerra aberta contra a Ucrânia mostrou ao Ocidente, de forma franca, que ainda existem adversários dispostos a confrontar a ordem liberal por eles promovida. Embora este seja um desafio urgente para os europeus, é preciso lembrar que as feridas que dividem o continente não deixaram de existir e devem voltar a ficar aparentes assim que a guerra terminar. Quando isto acontecer, será necessária uma análise interna profunda. O Reino Unido já decidiu sua posição: entre delegar poderes à União Europeia ou resgatar sua soberania nacional, optou pela segunda. A Europa continental eventualmente terá de fazer o mesmo questionamento acerca do âmbito onde o poder político deve ser depositado. A guerra promovida pela Rússia pode influenciar os países europeus a adotar uma posição ou outra, mas no final, o futuro do continente deve ser decidido principalmente pelo resultado desta tensão entre os governos locais e o poder supranacional.

João Arantes Junqueira Payne é formado em jornalismo e mestrando em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa

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