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 | Ilustração: Robson Vilalba/Thapcom
| Foto: Ilustração: Robson Vilalba/Thapcom

Em 1999 os Estados Unidos estiveram muito próximos de estabelecer um acordo duradouro de paz com a Coreia do Norte, um regime ditatorial em vigor desde o fim da Guerra das Coreias em 1953. William Perry, então Secretário de Defesa do governo do presidente Bill Clinton, liderou a primeira visita oficial de um membro do exército norte-coreano para os Estados Unidos; o objetivo era impedir que a Coreia do Norte extraísse de seu reator nuclear plutônio suficiente para produzir seis bombas nucleares. 

Após mais de cinco anos de negociação, Perry finalmente foi recebido pelo governo norte-coreano e guiou uma visita do alto escalão do ditador Kim Jong-il aos Estados Unidos. Eles se encontraram com o presidente Clinton, mas também fizeram visitas a diversas fábricas americanas e a outros coreanos que residiam no país. 

Para além de qualquer acordo comercial ou político, o plano americano era vender as vantagens de ser parte de um mundo globalizado, com acesso à tecnologia e à cultura exterior – essa abordagem, conhecida na Coreia do Sul como “Política da Luz do Sul”, crê que mostrar para a Coreia do Norte as vantagens de ser um regime aberto e inserido na política global seria mais eficiente do que combater o regime ditatorial com sanções ou ameaças militares. 

Ponto em comum 

O ditador Kim Jong-un, atual líder supremo da Coreia do Norte, filho de Kim Jong-il, cresceu em escolas de elite na Suíça e, segundo seus ex-colegas de sala, era fã da cantora Whitney Houston, das músicas de Michael Jackson e do basquete americano, mais especificamente do astro Michael Jordan e de seu time, o Chicago Bulls. Vendo em Kim Jong-un um apreciador da cultura ocidental, os Estados Unidos acreditavam que, quanto mais aberto estivesse seu governo à política internacional e à indústria cultural, mais rápido seria o caminho para o fim de seu regime. 

Mas a estratégia, já em estado avançado, acabou interrompida quando George W. Bush assumiu o governo dos Estados Unidos em 2001. Considerando a Coreia do Norte um país perigoso demais para participar de qualquer negociação, Bush encerrou as tratativas de paz, fortaleceu as sanções econômicas ao país e cortou todas as relações diplomáticas: de um dia para o outro, nenhum americano tinha contato direto com a distante Coreia do Norte. 

Isso mudou em 2013 quando o site Vice organizou uma viagem ao redor do mundo para divulgar o basquete dos Estados Unidos e incluiu a Coreia do Norte como uma de suas paradas. A comitiva incluía o famoso time de basquete especializado em malabarismos, os Harlem Globetrotters, além do ex-jogador da NBA, cinco vezes campeão da liga americana, Dennis Rodman. 

Como fã do Chicago Bulls e, consequentemente, de Dennis Rodman, Kim Jong-un não apenas recebeu a comitiva com pompas dignas de chefes de estado como também estabeleceu imediatamente uma amizade com o ex-jogador da NBA. Desde então, enquanto Estados Unidos e Coreia do Norte vivem uma escuridão diplomática, Dennis Rodman é constantemente recebido por Kim Jong-un, a quem considera um “amigo pessoal”. 

Vestido de noiva 

A relação incomum fica ainda mais acentuada se levamos em consideração que Dennis Rodman também não era um jogador comum durante sua carreira no basquete profissional. Após uma tentativa de suicídio em 1993, Rodman decidiu “matar sua parte tímida” e tornar-se a pessoa que sonhava, sem amarras. 

De jogador discreto, tornou-se um dos primeiros atletas profissionais a cobrir o corpo de tatuagens. Brincos, piercings e cabelos coloridos tornaram-se a marca registrada de sua figura. No cinema, fez ponta no filme MIB – Homens de Preto como se fosse um alienígena infiltrado na Terra. Nas quadras, passou também a jogar de maneira mais agressiva, distribuindo cabeçadas, discutindo com árbitros e se recusando a abandonar a quadra quando era expulso. Após um incidente com um câmera, em que o agrediu fisicamente, foi suspenso pela NBA por 11 jogos – e usou o “tempo livre” para participar de campeonatos de luta livre. 

Sua vida pessoal também acompanhou as mudanças: passou a frequentar festas famosas e colecionar casos de embriaguez, além de um breve, porém notório, relacionamento com a atriz e cantora Madonna em 1994. 

Dennis Rodman foi certamente um grande jogador de basquete e múltiplas vezes campeão, mas seu comportamento sempre lhe rendeu mais notoriedade do que as quadras. Mais do que o uniforme vermelho dos Bulls, a imagem marcante de Rodman é certamente uma fotografia em que aparece vestido de noiva para o lançamento de seu livro autobiográfico. 

É essa figura polêmica do esporte americano, aproximada por acaso de Kim Jong-un há alguns anos, que se tornou uma das esperanças para evitar aquilo que se apresenta como uma possível guerra de escala global. 

Desde o rompimento de relações do governo americano com a Coreia do Norte em 2001, acredita-se que Kim Jong-un, em meio a terríveis embargos econômicos e comerciais, produziu plutônio suficiente para a construção de 15 a 20 bombas nucleares, além de uma bomba de hidrogênio com poder equivalente a mais de uma centena de bombas nucleares convencionais. 

Além disso, desde que a presidência dos Estados Unidos foi assumida por Donald Trump, o governo americano cortou o envio de verbas para a Ucrânia – o dinheiro mantinha “ocupadas” fábricas que antes produziam mísseis de longo alcance para a antiga União Soviética. 

Diversos especialistas em mísseis afirmam sem maiores dúvidas que os testes mais recentes da Coreia do Norte com esse tipo de projétil mostram os mesmos traços dos mísseis ucranianos, colocando a comunidade internacional em polvorosa frente ao poder de fogo do país asiático associado à capacidade de fazer uso desse poder para muito além de suas fronteiras. É cada vez mais evidente que a política de sanções e a ausência de comunicação com a Coreia do Norte fracassou. Sem nada a perder a não ser a manutenção de seu regime, Kim Jong-un não teve receio em quebrar todos os acordos internacionais que regulam a produção de armas nucleares. 

Os Estados Unidos propuseram à ONU a mais pesada série de sanções na história, cortando completamente o envio de petróleo e gás natural para a Coreia do Norte, que chegam principalmente da China e da Rússia, mas a ONU teme por um desastre humanitário – frente ao rigoroso inverno norte-coreano, uma sanção dessas proporções levaria milhões de civis à morte. Sem essas sanções, a Coreia do Norte não enfrenta maiores resistências. Nas últimas décadas, já aprendeu a conviver com as duras penalidades da comunidade internacional. Nem mesmo as ameaças de Donald Trump, que afirmou que Kim Jong-un receberia “fogo e fúria como o mundo jamais viu”, parecem assustar um regime que agora possui um arsenal nuclear e a tecnologia necessária para lançá-lo do outro lado do globo. 

Esperança 

Por isso Dennis Rodman, o jogador de basquete coberto de polêmicas, se apresenta como uma esperança. Amigo pessoal de Kim Jong-un, mas também de Donald Trump, que conheceu ao participar de um de seus muitos reality shows, Rodman já se ofereceu como uma ponte entre os dois países, restabelecendo um canal diplomático que está fechado há quase duas décadas. 

O governo americano afirmou ser contrário a uma visita de Dennis Rodman à Coreia do Norte em momento tão delicado e certamente não quer confiar tarefa tão importante nas mãos de um jogador que deve muito de sua fama ao seu temperamento, digamos, peculiar. 

O problema é que todos os demais canais foram fechando-se e a “Política da Luz do Sol” parece cada vez mais distante. Longe de qualquer possibilidade de luz, no escuro completo, Kim Jong-un criou um arsenal. Talvez seja hora de tentar a outra opção, aproximá-lo da comunidade internacional, deixar que o regime transforme-se aos poucos através do contato com o mundo exterior. 

Rodman visitou a Coreia do Norte em dezembro. A intenção é “abrir uma porta” de diálogo entre os dois países por meio do que o ex-jogador chama de “diplomacia do basquete”. 

Para Suzanne DiMaggio, diretora da agência de inovação New America, o envolvimento de Rodman com a Coreia do Norte pode ser uma ponte de comunicação com o governo Trump. “Trump elogiou uma viagem anterior de Rodman. Rodman apoiou Trump. Há alta probabilidade de alguma comunicação e até mesmo coordenação”, escreveu em junho de 2017, pouco antes de umas das últimas viagens de Rodman para o país asiático. 

A análise é uma mudança otimista em relação às visitas anteriores. Em 2013, uma das primeiras visitas de Rodman à Coreia do Norte levantou a controvérsia de que estaria ajudando a legitimar o regime ditador no cenário mundial – foi na ocasião que Rodman começou a se referir a Kim Jong-un como “um grande amigo”. Essa ideia foi refutada pelo International Crisis Group (ICG), uma das primeiras organizações a apostar na veracidade da relação entre Rodman e o ditador coreano. 

“Algumas pessoas podem dizer que Dennis Rodman oferece legitimidade política para o regime, ou que isso pode ser visto como um golpe de propaganda”, disse Daniel Pinkston, especialista na Coreia do Norte no ICG, em entrevista ao jornal The Guardian. “Acredito que isso é um grande exagero. Se fosse um ex-presidente dos Estados Unidos, isso seria um fator muito maior. Mas alguém como Dennis Rodman não pode fazer isso. Ele não pode retirar sanções – ele não tem esse poder nem autoridade”. 

As vantagens do acesso de Rodman à Coreia do Norte ainda são pontuais e podem ter uma influência pequena no cenário estratégico. É o que ressalta Stephan Haggard, especialista em Coreia do Norte e professor na Universidade da Califórnia em San Diego: “Não me oponho à diplomacia esportiva. Mas esses esforços não têm mostrado efeito em um nível estratégico mais amplo, embora Rodman possa ter ajudado com a libertação de Otto Warmbier”, diz Haggard em entrevista à Gazeta do Povo. Warmbier acabou morrendo seis dias depois de retornar aos EUA, após passar 15 meses em uma prisão norte coreana. 

Para Haggard, a diplomacia olímpica parece mais promissora. “A comunicação entre a Coreia do Norte e do Sul foi cortada há muito tempo e agora está sendo retomada”, avalia. 

Mas o fato de Rodman não ser um político ou diplomata pode ser um ponto favorável na sua relação com Kim Jong-un. Sem os riscos políticos, sua presença no país pode destacar o intercâmbio cultural. 

“De um lado, um dos sujeitos mais dissidentes possíveis. Do outro, o líder aceitando-o. Isso é um sinal implícito – um sinal de que está tudo bem em ser diferente”, disse Pinkston. “Os riscos e os custos são muito, muito baixos, e isso está criando um canal para a troca de ideias. É um canal muito pequeno, mas ele está lá”. 

Esse canal de comunicação, ainda que pequeno, pode ser o que Coreia do Norte precisa nesse momento das relações internacionais. “Acho que a maioria das pessoas concorda que as possibilidades de uma desnuclearização rápida são remotas. A questão agora é se os diálogos podem ou não começar”, aponta Haggard. 

Se um ex-jogador de basquete famoso pelas suas cabeçadas for o caminho para que isso aconteça, Rodman será mais importante para a política internacional do que jamais foi para o Chicago Bulls e o basquete americano.

Ilustração: Robson Vilalba/Thapcom
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