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| Foto: ALEXANDER NEMENOVAFP

A tensão entre Ocidente e Rússia está em constante crescimento desde 2014, quando a Crimeia foi anexada pela Rússia. O episódio central das últimas semanas é a acusação de envolvimento do Estado russo no envenenamento de Sergei Skripal e sua filha Yulia. Ambos estão hospitalizados em estado grave, assim como um policial britânico. 

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Lideranças britânicas, como a Primeira-ministra Theresa May e o Ministro de Relações Exteriores Boris Johnson, foram explícitos na acusação, endossada por outros países. Além disso, expulsaram vinte e três diplomatas russos, medida acompanhada por seus aliados. Tal escalada de tensão e de medidas sancionatórias costuma gerar a pergunta: o mundo vive uma nova Guerra Fria? 

Expulsões 

No total, 146 diplomatas russos foram expulsos por 29 países e pela OTAN, que expulsou sete observadores russos. Além dos 23 expulsos pelo Reino Unido, 60 foram expulsos pelos EUA e 13 pela Ucrânia; parte considerável da Europa e a Austrália também expulsaram diplomatas russos. Essa ação coletiva é provavelmente a maior sanção de representação política já feita contra um país em situações de paz. 

Como medida de reciprocidade, a Rússia anunciou a expulsão de igual número de diplomatas dos EUA e que medidas similares serão adotadas em relação aos outros países. Além disso, o consulado dos EUA em São Petersburgo foi fechado, em consequência do fechamento do consulado russo na cidade de Seattle, banhada pelo Oceano Pacífico. 

A palavra diplomata remete à uma pessoa de considerável grau de instrução e que serve civilmente seu país no serviço exterior. É um termo que muitas vezes é ligado aos conceitos de polidez e cortesia. Na realidade, o termo diplomata pode significar uma miríade de cargos, funções e posições. Pode ser uma adaptação mal feita de funcionários de uma embaixada, que incluem muitas pessoas locais em posições de trabalho de manutenção ou funcionamento cotidiano. E também pode significar militares no serviço exterior e pessoas das áreas de coleta de informação e de inteligência. Popularmente, espiões. 

Os números são evidentes. Em 2016, ainda sob administração Obama, o governo dos EUA expulsou 35 diplomatas russos como consequência da investigada interferência russa nas eleições dos EUA. Em 28 de julho de 2017, o governo russo determinou que, em nome da reciprocidade, o total de pessoal dos EUA na Rússia deveria ser equivalente aos 455 funcionários russos nos EUA. Com isso, o impressionante número de 755 funcionários do serviço exterior de Washington tiveram que ser demitidos ou remanejados. 

Os números da relação entre EUA e Rússia não são expressivos, considerando as proporções. O comércio bilateral entre os dois países no ano de 2017 foi de apenas 24 bilhões de dólares. Cerca de trinta mil estadunidenses residem na Rússia e três milhões de russos residem nos EUA, incluindo descendentes. A soma do número de turistas de ambos os países com o outro como destino não chega na casa dos 600 mil. Comparativamente, esse é o número apenas de alemães que visitam a Rússia anualmente, em média, e ainda longe do milhão e meio de turistas chineses anuais. 

Tais números dificilmente justificariam um pessoal diplomático de mais de mil e duzentas pessoas, também considerando todos os postos cotidianos possivelmente abarcados, como cozinheiros. Mesmo as centenas de funcionários atuais de ambos os países deixa clara a natureza de parte dessas funções. 

A localização dos consulados obedece critérios tanto demográficos como geopolíticos, como pontos de contato e investimentos. Atualmente, a Rússia possui uma embaixada em Washington e consulados em Nova York, região com grande comunidade russa, e Houston, maior cidade do fértil em petróleo Texas.  

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Os consulados russos de Seattle e de São Francisco, cidades banhadas pelo Oceano Pacífico, foram fechados. Ambas representações possuem histórico de espionagem, citando até uso de antenas para comunicação com submarinos. 

Já os EUA, além de sua embaixada em Moscou e do consulado com prazo de validade em São Petersburgo, possuem consulados em Vladivostok e em Yekaterinburgo. A cidade de Vladivostok, “Soberana do Leste”, é sede da Frota do Pacífico da marinha russa, e o principal porto russo em águas oceânicas, localizada perto da tríplice fronteira com China e Coreia do Norte. Já Yekaterinburgo, no lado oriental dos Urais, é a “Janela para a Sibéria”, elo de conexão entre a Rússia europeia e sua parte asiática.  

Diálogo 

Não se deve desmerecer os impactos em cooperação e diálogo que as expulsões representam. Os governos envolvidos certamente usarão os episódios para justificar eventuais atrasos em vistos e demais serviços burocráticos, ainda mais considerando a vindoura Copa do Mundo de Futebol na Rússia. Em um cenário mais amplo, entretanto, boa parte dessas expulsões significa uma diminuição na comunidade de inteligência do outro país no seu. Muitas das expulsões, embora possa-se apenas especular, foram de nomes específicos, com atividades conhecidas. Quando da expulsão de diplomatas russos pelos EUA em 2016, um dos nomes era o chef da cozinha do consulado em São Francisco. Ao menos no papel era sua função. 

As relações entre EUA e Rússia foram estabelecidas logo após a independência dos EUA e formalizadas em 1809. Diversos episódios de cooperação e de diálogo entre os dois países são registrados no século XIX e início do século XX, como a mediação do presidente Theodore Roosevelt para o fim da Guerra Russo-Japonesa de 1905. Em 1917 as relações foram rompidas. 

As atuais relações remontam ao ano de 1933, durante a presidência de Franklin D. Roosevelt. Isso inclui o fornecimento de material bélico pelos EUA aos soviéticos, a aliança durante a Segunda Guerra Mundial e o período da Guerra Fria.  

Ao contrário do que filmes, propagandas ou sentimentos possam tentar mostrar, as relações entre EUA e URSS nunca foram rompidas. Simplesmente pois seria uma decisão burra, de qualquer das partes. As relações entre Estados é regida pelos interesses e pelo pragmatismo, não por rusgas ideológicas. Exemplo disso era o anticomunismo de Eurico Gaspar Dutra, que rompeu as relações entre Brasil e URSS em 1947. As relações foram retomadas apenas em 1961, com nenhum ganho brasileiro que justificasse os catorze anos de distensão. 

Durante a Guerra Fria, dezenas de encontros entre os chefes de Estado das duas potências ocorreram, além de conversas e consultas informais ou por terceiros. Desde Dwight Eisenhower e Nikita Khrushchev em 1955 até George H. W. Bush com Mikhail Gorbachev em Outubro de 1991. As pautas eram desde temas pacíficos, como refugiados do pós-guerra, até evitar uma guerra mundial nuclear. 

Mesmo em episódios quando a Terceira Guerra Mundial parecia iminente, como a Crise dos Mísseis de Cuba, relações não foram rompidas. Ou seja, a expulsão de funcionários de serviço exterior em meio a manutenção de relações não significa necessariamente que a possibilidade de um conflito é alarmante.  

Nova Guerra Fria

O mundo está em um interregno desde 1991. Naquele ano, saiu da era da disputa geopolítica e ideológica entre EUA e URSS, cujas bases remontam ao século XIX. O entusiasmado (e precipitado) Francis Fukuyama declarou o “Fim da História”, o nascer de uma nova era baseada nos que seriam os ideais vencedores da Guerra Fria. Seu professor, Samuel Huntington, afirmou que o choque de ideias políticas e econômicas seria substituído pelo choque de civilizações, com diferentes culturas buscando se preservar de interferências alheias, em que a identidade étnica e religiosa terá um papel decisivo. Os eventos de 11 de Setembro de 2001 pareceram lhe dar razão. 

Diversos outros autores e autoras analisam como e o quê é o mundo pós-Guerra Fria. Algo que deve ser notado e muitas vezes negligenciado é que a comunidade internacional do século XXI é organizada de acordo com as regras criadas em 1945. Embora eventualmente revisadas, o cenário internacional torna-se cada vez mais contraditório, com potências enfraquecidas perante o que eram ainda mantendo grande influência, e países em ascensão sem a devida representação. 

A negligência em se abordar as contradições cria um efeito bola de neve, quando tais contradições e conflitos de interesses levam à uma crise internacional de grandes proporções. Como no ano de 1914. 

Estaria o mundo em uma nova Guerra Fria? Talvez não. Para o diplomata John Bolton, dos EUA, atual Conselheiro de Segurança Nacional de Donald Trump, o mundo após a Guerra Fria é unipolar. Existe apenas uma superpotência, os EUA, que pode se impor perante a comunidade internacional em nome de seus interesses, quando conveniente. Por um lado, a imensa diferença de orçamento militar e o tamanho da economia dos EUA referenda essa visão, além da influência cultural do país pelo mundo. Por outro lado, as recentes reações russas mostram que essa visão, no mínimo, não é unânime. 

Existem também a perspectiva de um mundo multipolar. Se a Guerra Fria era bipolar, com duas superpotências regendo os demais Estados em suas órbitas, agora o cenário internacional seria marcado por diversos pólos, com diferentes esferas de influência e interesses. Tais interesses podem ser concertados ou não, dependendo da ocasião. Um mundo dividido entre EUA e URSS teria dado lugar ao mundo disputado por EUA, Rússia, Europa, Brasil, Nigéria, Turquia, Conselho do Golfo, Irã, Índia, China.

A crescente interação e diminuição de distâncias entre diferentes países, tradicionalmente distantes, pode ser vista cotidianamente no noticiário. Base militar turca no Sudão, acordos bilaterais entre Brasil e Índia, expansão da infraestrutura chinesa pela América Latina, tradicional zona de influência dos EUA. Simultaneamente, a discrepância de poder de barganha, seja militar, econômico e cultural, entre os diferentes e novos pólos é gritante, o que depõe contra essa perspectiva. 

Finalmente, a geopolítica clássica baseia a interpretação de que não estamos em uma nova Guerra Fria pois ela nunca acabou. Na verdade, a Guerra Fria seria um período com características ideológicas de um conflito geopolítico que já existia e continua existindo. O geógrafo britânico Halford Mackinder e o almirante Alfred Thayer Mahan dos EUA, dois dos fundadores da geopolítica, ainda no século XIX propunham a teoria de que a influência internacional era disputada por dois pólos. Um deles é a potência marítima, que controle as vias navais. Outro é a potência terrestre, que controle a região central da Eurásia, a ponte entre Ásia e Europa. 

Na época, respectivamente, o Reino Unido e o Império Russo. A disputa por influência geopolítica entre os dois impérios era muitas vezes simbolizadas por um leão contra um urso, ou uma baleia contra um urso. Os papéis opostos nas décadas finais do império Otomano, a disputa pela Ásia Central no que é chamado de Grande Jogo, e as diferentes posturas nos rumos da Europa Ocidental são alguns dos exemplos desse antagonismo. Com a aliança da Relação Especial e a Primeira Guerra Mundial, o Reino Unido passa o posto de potência marítima aos EUA. O país é, até hoje, a maior potência naval do mundo, com uma capacidade de projeção de força baseada em suas forças-tarefa de porta-aviões nucleares. 

A Guerra Fria seria, então, um período ideológico do choque geopolítico clássico, entre a potência marítima e a potência terrestre, agora a União Soviética. Após o fim da Guerra Fria e o declínio do poder russo, o mundo testemunha outra “passagem de bastão”. Uma grande proximidade entre russos e chineses, com influência cada vez maior na Ásia Central e no Oriente Médio. Crimeia, Cáucaso, Golfo Pérsico, Afeganistão, Bálcãs. Todas essas localidades foram focos de tensão no século XIX e também nos anos desde 1991. Isso não é uma mera coincidência, mas resultado desse cenário geopolítico. 

A possibilidade de “nova Guerra Fria”, em uma perspectiva política e internacional, ainda é debatida e não é unânime, com diferentes interpretações. No cenário geopolítico, a Guerra Fria foi apenas recorte dentre uma disputa maior. O uso da expressão, entretanto, costuma significar a preocupação com um conflito de proporções nucleares, uma Terceira Guerra Mundial. Essa possibilidade, dada a garantia de destruição generalizada causada pelo uso de armas de destruição em massa, requer o total esgotamento de outras possibilidades para resolução das contradições. Impedir que isso ocorra que deve ser a grande preocupação da comunidade internacional no século XXI.

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