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Manifestantes protestam em Kiev contra maior autonomia a territórios separatistas, parte do plano para encerrar o conflito com a Rússia, 6 de outubro de 2019
Manifestantes protestam em Kiev contra maior autonomia a territórios separatistas, parte do plano para encerrar o conflito com a Rússia, 6 de outubro de 2019| Foto: Genya SAVILOV / AFP

Os Estados Unidos estão envolvidos em uma investigação de impeachment, a Ucrânia está lutando para se manter fora da briga - e ainda há a Rússia, observando tudo isso com uma satisfação que mal pode esconder.

Se algum país pode lucrar com a turbulência em andamento, dizem analistas e políticos em Kiev, esse país é a Rússia. E eles esperam que o governo do presidente Vladimir Putin explore todas as oportunidades que encontrar.

"Não tenho dúvidas de que [os russos] tentarão tirar proveito dessa situação", disse Bohdan Yaremenko, ex-embaixador ucraniano na Turquia que agora tem um assento no parlamento. "Eles são mestres no jogo por baixo dos panos".

Em uma das frentes, as autoridades russas já estão dizendo publicamente aos ucranianos (e ao resto do mundo) que os Estados Unidos se mostraram um amigo não confiável, com a divulgação do relato pela Casa Branca do telefonema embaraçoso entre o presidente Donald Trump e o novo presidente da Ucrânia, Volodimir Zelensky, em 25 de julho.

A divulgação muda "o formato das relações entre Estados, entre líderes, entre políticos", disse a porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Rússia, Maria Zakharova, na televisão russa. "Porque agora todos entendem que é perigoso ligar para Washington, manter conversas e realizar encontros".

Mais importante na Ucrânia é que a Rússia provavelmente usará o escândalo para caracterizar Zelensky como um líder menor e a Ucrânia como um país incorrigivelmente mal administrado.

E, como esse é mais um escândalo ucraniano relacionado ao setor de gás natural, os analistas em Kiev preveem que a Rússia vai argumentar com os países da Europa Ocidental que eles agora devem avançar com o gasoduto Nord Stream 2. O projeto enviaria gás natural russo para a Europa, dispensando as redes atuais via Ucrânia.

A presidente da Câmara dos Deputados dos EUA, a democrata Nancy Pelosi, disse em 27 de setembro que a Rússia - acusada de ajudar Trump a conquistar a presidência em 2016 e presa a um conflito armado de baixo grau com a Ucrânia em suas regiões orientais - pode ter "ajudado" a levantar acusações contra Kiev dentro do círculo de Trump.

Trump exigiu que a Ucrânia investigasse Joe Biden e seu filho Hunter, bem como o lançamento em 2016 do "livro negro" que implicou Paul Manafort, gerente de campanha de Trump, em ações ilegais. Trump também parece acreditar, com base em nenhuma evidência, que os servidores de e-mail do Partido Democrata que foram invadidos estão sob custódia ucraniana.

O advogado pessoal de Trump, Rudy Giuliani, se reuniu com uma série de ex-funcionários e empresários ucranianos, incluindo alguns envolvidos em empresas de gás e petróleo - o que inevitavelmente os vincula a fornecedores russos. Entre eles destaca-se Pavel Fuks, que atualmente não pode viajar para a Rússia devido à sua oposição à agressão russa no leste da Ucrânia, mas que diz que participou de negociações para construir uma Trump Tower em Moscou em 2008. Ele também foi proibido em 2017 de viajar para os Estados Unidos por cinco anos, ele disse nos registros do tribunal, mas não explicou o porquê.

"Nós acompanhamos quem está conduzindo a luta política dentro dos [Estados Unidos], é claro, mas interferir não é uma boa ideia", disse Putin na quarta-feira. "Por que precisaríamos disso? É contra nossos interesses, princípios e a prática da política externa russa".

Insinuar o contrário é "paranoia, evidente para todos", disse o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, ecoando as repetidas negações de Moscou às avaliações de inteligência dos EUA sobre as amplas tentativas russas de interferir nas eleições presidenciais dos EUA em 2016 e em outras disputas.

Mas é o que a Rússia está fazendo agora e fará nas próximas semanas que alarma políticos e analistas na Ucrânia.

Há "definitivamente uma pegada russa no momento", disse Ivanna Klympush-Tsintsadze, membro da Rada, o parlamento da Ucrânia, e ex-vice-primeira-ministra da integração europeia. Moscou, ela disse, está tentando impor "um impacto negativo na imagem da Ucrânia, no futuro da Ucrânia e nas relações da Ucrânia com os Estados Unidos".

A Rússia tem uma capacidade incomum, disse ela, de "amplificar a mensagem", até porque seus "aprendizes" espalham a notícia pelas mídias sociais americanas.

O Kremlin, disse Grigory Frolov, chefe de uma organização chamada Free Russia Foundation, está trabalhando em uma espécie de aposta tripla. Sobre esse escândalo, ele disse: "A Rússia está interessada em deixar Trump mais fraco, Zelensky mais fraco, Biden mais fraco".

Na quarta-feira, Zelensky decidiu endossar um plano que estabeleceria as bases para a solução do conflito no leste da Ucrânia, chamado de Fórmula Steinmeier, em homenagem ao ex-ministro das Relações Exteriores da Alemanha que o propôs em 2015. Ele foi imediatamente condenado pela oposição por capitular à Rússia, que apoia o plano. Mais tarde, os assessores de Zelensky tentaram deixar claro que muitos detalhes significativos ainda precisam ser elaborados.

Segundo a proposta, eleições seriam realizadas em regiões atualmente sob controle de fato da Rússia, e essas regiões ganhariam um certo grau de autonomia na Ucrânia. Zelensky está insistindo que as forças armadas teriam que se retirar primeiro e que a Ucrânia teria que retomar o controle da fronteira com a Rússia nessas regiões - mas seus críticos temem que essa seja apenas a sua posição de negociação inicial, e que ele pode finalmente concordar com as eleições em condições muito menos satisfatórias.

Seu antecessor, Petro Poroshenko, resistiu à Fórmula Steinmeier por três anos, argumentando entre outras coisas que tais eleições, se ocorressem algum dia, estariam contaminadas por anos de propaganda russa.

Mas Zelensky, para mostrar que não está envolto pelo escândalo de Trump, precisa seguir em frente, disse Frolov. O presidente, disse ele, pode procurar pequenas vitórias onde possa encontrá-las. Em setembro, ele organizou uma troca de 70 prisioneiros com os russos, algo que Poroshenko nunca conseguiu. Outra troca está por vir.

Ele está jogando uma mão fraca, no entanto.

No mês passado, Zelensky se encontrou com Trump em Nova York. "Eu realmente espero que você e o presidente Putin se reúnam e possam resolver seu problema", disse Trump a ele. "Uma tremenda conquista, e eu sei que você está tentando fazer isso."

Esse comentário, disse Konstantin Batotsky, analista em Kiev, foi "um desastre" para a Ucrânia. Ele indicou a Putin, disse ele, que a Ucrânia não podia contar que os EUA estivessem sempre ao lado seu lado. Foi pior do que o telefonema, ele disse.

A perda de Kurt Volker, enviado especial dos EUA à Ucrânia que renunciou após a revelação da pressão do governo Trump a Kiev, foi outro golpe, disse Batotsky.

"Ele era o jogador" que poderia ter ajudado a Ucrânia a encontrar uma maneira de sair dessa bagunça, disse ele. "Os russos estão extremamente felizes com isso".

Zelensky tem uma característica a seu favor: o Kremlin não sabe o que pensar sobre o ex-comediante que interpretava um presidente ucraniano em um programa de TV.

Ele quer alcançar a paz e parece não ter uma ideologia forte além do desejo de um governo limpo. Ele é do leste da Ucrânia e é popular por lá - o que complica a abordagem da Rússia. As pessoas gostam de seu otimismo. Putin preferiria lidar com um presidente oligárquico pró-Ocidente em Kiev que pouco faz para melhorar a vida das pessoas, disse Frolov. É fácil jogar esse tipo de oponente contra o público.

A chegada do inexperiente Zelensky, que tem total controle do parlamento, não diz respeito à diferença entre progressistas e conservadores, disse Frolov, mas entre novos velhos. "E essa não é uma discussão que Putin quer na Rússia", disse ele.

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